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  • O CONTO DO GRAAL, CHRÉTIEN DE TROYES
    domingo, setembro 17, 2006
    O mais antigo dos manuscritos conservados sobre o Graal, do início do século XIII



    Título original: Le Conte du Graal
    Autor: Chrétien de Troyes

    NOTA PRELIMINAR

    Escassos são os dados que possuímos sobre a personalidade de Chrétien de Troyes, cuja obra literária se conservam cinco extensas novelas de atribuição segura: Erec, Cligés, Le chevaliers au lion (intitulada também Yvain), Le chevaliers de la charrete (a qual, às vezes, se dá o título de seu protagonista, Láncelot) e Le Conté du Graal. Com certa verossimilhança lhe atribui também outra novela de caráter cavalheiresco e piedoso, Guillaume d'Angleterre (da qual existe uma tradução em prosa castelhana do século XIV), uma adaptação de uma fábula ovidiana sobre o mito de Filomela. Das seis poesias líricas que os cancioneiros atribuem à Chrétien de Troyes, duas são com segurança obra de nosso escritor. Este, por outra parte, confessa, nos versos iniciais de “Cligés”, ter traduzido os “Remedia Amoris” e o “Ars Amatoria” de Ovídio; composto uma narração sobre o mito de Tántalo e Pélope (sem dúvida baseado nas Metamorfoses ovidianas); e um relato sobre "o rei Marc e Iseut la rubia", ou seja, a lenda de Tristão, todo o qual se perdeu. Tendo em conta as pessoas às quais dedica suas obras, chegamos à conclusão de que a produção de Chrétien de Troyes desenvolveu-se entre os anos 1159 e 1190.
    Trata-se, pois, de um escritor da segunda metade do século XII que, como os homens de cultura de seu tempo, possui uma sólida preparação clássica, posta de manifesto não tão somente em suas versões dos tratados eróticos do Ovídio e em suas adaptações de fábulas mitológicas, mas também em bom número de detalhes retóricos e estilísticos que aparecem em sua obra. Todas as novelas de Chrétien de Troyes conservadas, estão escritas em verso: emparelhados de oito sílabas (nove, contando à castelhana) de rima consoante, forma que desde a metade daquele século tinha adotado a narrativa francesa culta, tão distinta da narrativa tradicional das gestas. Antes de Chrétien de Troyes os narradores franceses cultos, precursores e criadores do román, ou seja, da novela, empregavam os emparelhados octosilábicos em suas versões de obras clássicas (a “Tebaida” de Estado, “Eneida”, algumas fábulas tiradas de “Metamorfose” de Ovídio, etc.) e na famosa tradução da “História regum Brittanniae”, de Godofredo de Mon mouth, feita por Wace e intitulada “Román de Brut”. Esta tradução, que Chrétien de Troyes revela conhecer bem, contribuiu para colocar a moda nos ambientes cultos e aristocráticos o mundo fantástico do fabuloso “rei Artur da Bretanha e dos cavaleiros da Távola Redonda”, recolhendo velhas lendas bretãs, mas estruturando-as em uma narração que pretendia ser histórica. São de tema artúrico algumas das narrações breves que, antes ou contemporaneamente à Chrétien, tinha escrito, também em verso octosílabo, María da França e que revistam intitular-se “Lais”. Artúricas são as cinco novelas conservadas de nosso escritor, embora o “Cligés” só parcialmente, pois sua trama principal tem caráter bizantino.
    “Le chevaliers de charrete”, ou “Lancelot”, é dedicado por Chrétien à sua senhora, a condessa María de Champagne, filha de Luis VII da França e de Leonor de Aquitania, esposa do conde Enrique de Champagne, que estava acostumado a residir em seu palácio de Troyes, capital do condado, e, sem dúvida, cidade em que nasceu nosso escritor. Tanto María de Champagne como sua mãe Leonor de Aquitania desempenharam um papel muito importante no florescimento da literatura chamada cortesã. Contribuíram para instaurar na França os achados e as novidades da poesia dos trovadores, de sorte, que a aventura cavalheiresca uniu-se ao sentimentalismo amoroso, união que constitui uma das características da novela do século XII. Entretanto, Chrétien de Troyes não se limitou, em suas novelas, a direta narração de uma peripécia cavalheiresca, com seus lances heróicos; seus episódios "maravilhosos e a exaltação das virtudes militares de seres extraordinários; nem adotou a aventura de um conteúdo amoroso; esboça uma hábil e acertada caracterização psicológica dos personagens principais da ação. Além de tudo isto, pretendeu dar à suas novelas o transcendente valor de uma lição moral e espiritual destinada ao aperfeiçoamento da sociedade na qual vivia, de modo principal, da aristocracia que lia suas obras. Tal propósito é decisivo e deliberado em nosso escritor, pois nos versos iniciais de “Le chevaliers de charrete” distingue, em sua obra literária, a matéria (matière), que é o assunto, ou argumento da narração, o simples relato de feitos novelescos, do sentido (sans), que deve ser a interpretação doutrinal da obra, o que chamaríamos sua tese. De uma afirmação feita no “Erec” desprende-se que a ordenação e articulação da matéria com o sentido, ou seja, a acomodação da intriga do relato à uma tese, constitui a junta (conjointure) da novela. O criar novelas de Chrétien de Troyes é, pois, algo que ambiciona ser muito mais que o simples narrar, colocando uma rica trama de aventuras a serviço de uma tendência à exaltação dos valores morais do cavaleiro.
    Esta intenção superior não deve ser esquecida quando se lê “O conto do Graal” (Le Conté du Graal), pois se nos ativermos, exclusivamente, a sua matéria, em alguns trechos poderia parecer um ingênuo conto, ou uma insignificante novela de aventuras. Correríamos o perigo de valorizá-lo só em atenção a seus inegáveis méritos literários. A obra vai precedida de uma dedicatória ao conde Felipe de Flandes, ou seja, Felipe de Alsacia, quem, desde 1168, foi conde de Flandes; partiu para Ultramar como cruzado em setembro de 1190 e morreu em Acre em junho seguinte. Entre 1168 e 1191, pois, iniciou Chrétien de Troyes a redação do conto do Graal, e os intentos feitos para precisar mais a data se revelaram pouco firmes. Esta dedicatória surpreende, por seu caráter religioso; glosa nela vários versículos neo-testamentários e disserta sobre a caridade; o que dá à estas páginas introdutórias, um acusado matiz cristão que por força tem que corresponder com o profundo sentido que o autor pensa dar em sua obra.
    Chrétien escolheu como protagonista de sua narração um moço em plena adolescência, forte, hábil caçador e ingênuo; vivendo em uma "erma floresta solitária" isolado do resto do mundo. Unicamente entregue à caça e sem outra relação humana a não ser sua mãe e os lavradores que cultivam suas terras, situadas em Gales. Este moço pertence à uma ilustre linhagem de cavaleiros; tanto seu pai, como seus dois irmãos maiores, foram vítimas das guerras e dos combates; devido a isso, sua mãe o criou em completa ignorância de tudo quanto acontece no mundo, principalmente da cavalaria. Todavia, a força do sangue se impõe aos planos maternos; assim que o moço, no início da novela, encontra-se com alguns cavaleiros, decide irrevogavelmente ser um deles encaminhando-se à corte do rei Artur para que lhe arme; o qual produz tal desgosto a sua mãe que cai morta ao vê-lo partir de seu lado. Desta sorte, Chrétien pode expor a seus leitores as etapas da formação cavalheiresca, que seu jovem herói percorre numa velocidade vertiginosa. Ao sair da solitária morada materna, o herói está na plenitude de suas forças físicas; é robusto e valente, condições naturais, indispensáveis, para tudo o que tenha que exercer na cavalaria. Sua chegada à corte do rei Artur provoca dois maravilhosos vaticínios, pois, tanto a donzela que jamais sorriu, quanto o bufão, prognosticam que aquele galhardo e ingênuo jovem está destinado a ser o melhor cavaleiro do mundo. A vitória do moço sobre o cavaleiro Vermelho, deve-se à primária habilidade daquele no lançamento de flechas, adquirida em suas caçadas: é um tipo de luta que se acha muito distante do sábio tecnicismo da nobre arte das armas. Por esta razão, depois desta primeira vitória, Chrétien leva seu protagonista ao castelo de Gornemant de Goort, cavaleiro amadurecido e experiente, que gosta muito das virtudes e da simpatia do jovem selvagem. Ensina-lhe lições de cavalaria, que o moço aprende com grande precisão e rapidamente, por fim, consagra-o cavaleiro. Nosso protagonista já é um cavaleiro; os episódios da defesa do castelo de Belrepeire demonstram seu acerto e sua maestria no manejo das armas; mas ali também, como corresponde a todo cavaleiro, nasce no jovem herói, seu amor pela formosa Blancheflor.
    Entretanto, há nele um remorso que o tortura: a sorte de sua mãe, que viu cair desvanecida ao abandonar sua morada solitária. Não sabe ainda que morreu, embora o suspeita, isso tortura seu ânimo com a consciência do pecado. Esta situação, quer dizer, com a alma manchada por ele ter pecado, oferece-lhe a mais alta de suas aventuras: a prova do castelo do Graal, episódio culminante da novela. Convidado pelo Rico Rei Pescador, ou Rei Aleijado, o jovem cavaleiro janta na ampla e suntuosa sala quadrada do castelo. Vê desfilar ante si um singular cortejo em que figuram um pajem, que empunha uma lança de cuja ponta emana uma gota de sangue; uma formosa donzela que leva em suas mãos um Graal; e outra com um prato de prata. O herói, temendo revelar sua rusticidade, não se atreve a perguntar por que sangra a lança, nem a quem se serve com aquele Graal. A razão de seu mutismo —o esclarece depois Chrétien— é mais profunda: o fato de achar-se em pecado travou-lhe a língua. Isso constitui o fatal engano do moço, pois, se tivesse formulado aquelas duas perguntas, teria reparado uma série de males que afligiam precisamente a sua linhagem; já que, averiguaremos logo, que o Rico Rei Pescador, prostrado pela paralisia e sem a posse de suas terras, teria recuperado saúde e domínios se aquelas duas perguntas tivessem saído dos lábios do moço. Chrétien de Troyes não nos esclarece isso pontualmente — veremos que a novela ficou inacabada—, mas, não cabe dúvida de que a lança que sangra é a de Longinos, ou seja, aquela com a qual foi ferido o flanco de Jesus Cristo. O Graal, nome que se dava a certos recipientes, é um riquíssimo cálice sagrado no qual se leva diariamente uma hóstia ao Rei do Graal —pai do Rico Rei Pescador e irmão da mãe do protagonista—, o qual há anos vive exclusivamente graças ao alimento que lhe proporciona a Eucaristia. Este tipo de milagre deu-se, com freqüência, na Idade Média e, ainda hoje em dia, entusiasma aos cristãos. O prato de prata é, sem dúvida alguma, a bandeja que fica debaixo do queixo, no qual comunga para evitar que, por um acidente, a sagrada forma caia ao chão. O tema das perguntas não formuladas, conduzindo à maus danos, não é estranho no folclore; mas, em nosso caso, oferece uma surpreendente similitude com a cerimônia da Páscoa dos judeus, cujo rito não pode iniciar-se, até que o mais jovem da família, tenha feito umas ingênuas perguntas. Não é estranho que Chrétien tenha adaptado a seu episódio este rito judaico, sobretudo se tivermos em conta a importância da comunidade israelita de Troyes no século XII. A formosa donzela portadora do Graal é, com toda segurança, uma figura simbólica: a Igreja personificada, que em representações artísticas da época está acostumada achar-se à direita da cruz, recolhendo em um rico cálice o sangue do Salvador que emana da ferida produzida pela lança de Longinos. A lança empunhada pelo pajem, que desfila em nosso episódio, emana sem cessar, para significar, sem dúvida, a persistência do sacrifício do Gólgota, que redime constantemente.
    Nosso herói, se dá conta de seu grande fracasso no castelo do Graal, no dia seguinte, ao encontrar na solidão do bosque sua prima, quem lhe faz ver seu engano. Então, quando por seu engano se faz responsável, o jovem herói da novela adivinha seu nome e o averigua pela primeira vez o leitor: chama-se Perceval. O nome vai unido à personalidade, enquanto nosso herói não significou nada para o mundo, viveu anonimamente; agora que, por sua culpa e por seu pecado, impediu que se realizasse um bem e não evitou o mal, sua responsabilidade lhe fez adivinhar seu nome. O episódio das gotas de sangue sobre a neve, uma das mais belas páginas da literatura francesa medieval, demonstra, por um lado, a idealização do amor de Perceval pela formosa Blancheflor, a cor rosada, de cuja face lhe rememora, ao ver a branca neve colorida pelo vermelho sangue; grandiosa metáfora investida, que tentou mais de uma vez, grandes poetas, desde Ovídio até Góngora. Por outro lado, este episódio, na economia da novela, supõe o cumprimento dos augúrios da donzela que jamais tinha sorrido e do bufão, graças ao qual, fica manifesto que Perceval, quinze dias antes era um ingênuo moço selvagem, sendo agora o melhor cavaleiro do mundo.
    O “Conto do Graal” interrompe-se bruscamente, depois do verso 9234, deixando em suspense um episódio. Deve-se a interrupção, que a morte surpreendeu Chrétien de Troyes em plena redação da novela; quando a ação principal desta, distava o bastante, sem dúvida, de ter chegado a seu desenlace. Isso motivou que tema do Graal se fizesse logo, algo misterioso e vago. Os continuadores anônimos da novela, que iniciaram seu trabalho ainda no século XII, não acertaram a lhe dar um final congruente, nem digno do grande tema criado pelo escritor de Champagne. Inclusive a crítica moderna, até a mais recente, debateu-se em engenhosas e, às vezes, fantásticas lucubrações sobre o Graal e as intenções de Chrétien de Troyes, o qual morreu levando à tumba o profundo e secreto de sua novela, do mesmo modo que o marinheiro do romance castelhano do conde Arnaldos se joga ao mar sem nos dizer sua canção.
    O leitor observará que a ação principal da novela, ou seja, as aventuras de Perceval, vê-se concorrida, a partir de certo momento, por outra trama muito distinta, que tem por herói Gauvain, o sobrinho do rei Artur. Esta dualidade de assunto quis explicar o caso do autor pretender contrapor o cavaleiro inexperiente, Perceval, ao cavaleiro veterano, Gauvain. Não obstante, há nas duas tramas contradições tão acusadas que não é inverossímil acreditar que Chrétien de Troyes, no momento em que lhe surpreendeu a morte, estava escrevendo duas novelas muito distintas: uma dedicada a narrar as aventuras de Perceval e outra, contar as façanhas de Gauvain; sendo que seus rascunhos foram mesclados e absurdamente fundidos por quem os arrumou, a fim de lhes dar uma forma, que hoje diríamos publicável, acreditando que pertenciam à mesma novela. Seja como for, a parte dedicada à Gauvain é de grande beleza e revela a maestria de Chrétien como narrador. Constitui um magnífico livro de cavalarias, no qual se destacam episódios tão notáveis como o da “Donzela das Mangas Pequenas”, de uma delicadeza pouco comum; o do “Castelo das Rainhas”, com seu ambiente de magia e de mistérios; e os da “Orgulhosa de Logres”, que põe à prova o cavalheirismo de Gauvain.
    A presente tradução foi feita sobre o texto da edição de William Roach, Chrétien de Troyes, “Le román de Perceval”, ou “Conté du Graal”, em "Texte littéraires français", Genève-Lille, 1959 (segunda impressão). Em algumas passagens me separei de sua leitura, que é a do manuscrito “T”, para ater-me na edição crítica de Alfons Hilka, “Der Perceval Roman” (Le conte do Graal) em "Christian von Troyes sämtliche erhaltene Werke", V, Halle, 1932. Foi de grande utilidade a consulta da prosa de 1530 (editada pela Hilka em apêndice) e da tradução em prosa francesa moderna de Lucien Foulet, Chrétien de Troyes, “Perceval de Gallois”, ou o “Conté du Graal”, em "Cent romans français", Paris, 1947. Procurei ser o mais literal que permite a correção idiomática; conservei certas repetições do texto original e as freqüentes mudanças de tempos verbais. O leitor não deve esquecer que o que está lendo é tradução de um relato escrito em versos curtos de rima consoante; implicando ao autor ver-se, às vezes, obrigado à rodeios um pouco forçados que, embora no original do século XII amoldem-se a uma determinada técnica narrativa, ao converter-se em prosa moderna pode surpreender. A fim de que em todo momento se possa comparar minha versão, com o texto de Chrétien de Troyes, na parte superior das páginas indico os versos franceses que correspondem a seu conteúdo.
    Martín de Riquer











    CONTO DO GRAAL

    DEDICATÓRIA À FELIPE DE FLANDES

    Quem pouco semeia, pouco colhe e o que queira colher algo, que jogue sua semente em lugar onde Deus lhe conceda o cêntuplo; pois, em terra que nada vale, a boa semente seca e deteriora. Chrétien semeia e joga a semente de uma novela que começa. Semeia-a em lugar tão bom que não pode ficar sem grande proveito, pois, o faz para o mais prudente que existe no império de Roma. Trata-se do conde Felipe de Flandes, que vale mais que Alejandro, de quem se diz que foi tão bom. Eu demonstrarei que o conde vale muito mais, pois, aquele reuniu em si todos os vícios e todos os defeitos dos quais o conde está limpo e isento.
    O conde é de tal condição que não escuta nem vis grosserias nem palavras néscias, e lhe pesa ouvir falar mal de outro, seja quem for. O conde ama a reta justiça, a lealdade e a Santa Igreja e abomina toda vilania. É mais dadivoso do que se supõe, pois, dá sem hipocrisia e sem engano, segundo o Evangelho, que diz: "Não saiba sua esquerda os benefícios que faça sua direita". Que saiba quem os recebe e Deus, que vê todos os segredos e conhece o mais escondido que há nos corações e nas vísceras.
    (VS. 13-107)
    Sabem por que diz o Evangelho "esconde os benefícios da sua esquerda"? Porque, segundo o relato, a esquerda significa vanglória, que procede de falsa hipocrisia. E o que significa a direita? A caridade, que não se envaidece de suas boas obras, mas sim se esconde para que só as saiba aquele que se chama Deus e caridade. Deus é caridade. Quem segundo a Escritura vive em caridade, diz São Paulo, e eu o tenho lido, que mora em Deus, e Deus nele. Saibam, na verdade, que as dádivas que faz o bom conde Felipe são de caridade; nunca fala disso com ninguém a não ser com seu bom coração generoso, que lhe aconselha obrar bem. Não vale, pois, ele mais que Alejandro, a quem não lhe importou a caridade, nem nenhum benefício? Sim, não o duvidem. Bem empregado estará, pois, o trabalho de Chrétien, que se esforça e trabalha em excesso, por ordem do conde, em rimar o melhor conto que foi contado na corte real: é o “Conto do Graal”, sobre o qual o conde lhe deu o livro. Ouçam como cumpre seu encargo.

    NA ERMA FLORESTA SOLITÁRIA

    Era o tempo em que as árvores florescem, a erva, o bosque e os prados verdes, os pássaros cantam docemente em seu latim pela manhã e toda criatura se inflama de alegria, quando o filho da Dama Viúva se levantou na Erma Floresta Solitária, e sem preguiça pôs a sela em seu corcel, pegou três flechas e saiu assim da morada de sua mãe. Pensou que iria ver os lavradores de sua mãe, que lhe rastelavam a aveia; tinham doze bois e seis rastros. Assim entrou na floresta. De repente o coração se alegrou nas entranhas pela doçura do tempo, ao ouvir o canto gostoso dos pássaros: tudo isto lhe agradava. Pela benignidade do tempo sereno tirou o freio do corcel e deixou que pastasse pela verde erva fresca. Ele, que sabia lançar muito bem as flechas que levava, ia em torno, disparando-as ora para trás, ora para frente, ora para baixo, ora para cima, até que ouviu, vindo pelo bosque, cinco cavaleiros armados com todas as suas armas. Enorme ruído faziam as armas dos que chegavam, pois, freqüentemente, chocavam-se com os ramos dos carvalhos e dos arranjos. As lanças entrechocavam-se com os escudos; as armaduras chiavam; ressonava a madeira, ressonava o ferro, tanto dos escudos, como das armaduras.
    (VS. 108-191)
    O moço ouvia e não via os que a ele caminhavam passo a passo, e muito assombrado disse:
    — Por minha alma! Razão tinha minha mãe, minha senhora, quando me disse que os diabos são as coisas mais feias do mundo; e para me instruir disse que ante eles terei que benzer-se. Mas, eu desdenharei este ensino e não me benzerei de modo algum, antes bem, atacarei em seguida, ao mais forte, com uma destas flechas que levo e não se aproximará de mim nenhum outro, conforme acredito.
    Deste modo o moço falou para si, antes de vê-los. Todavia, quando os viu abertamente, assim que o bosque os descobriu, viu as armaduras cintilantes; os cascos claros e reluzentes; o branco e o vermelho resplandecerem contra o sol, o ouro, o azul e a prata; pareceu-lhe muito formoso e muito agradável, e disse:
    — Ah, senhor Deus, perdão! São anjos os que aqui vejo. Realmente, pequei agora muito e obrei muito mal, ao dizer que eram diabos. Contou-me uma fábula, minha mãe, quando me disse que os anjos eram as coisas mais belas que existem, exceto Deus, que é mais belo que tudo. Aqui, acredito que vejo nosso Senhor, pois, contemplo a um tão formoso, que os outros, valha-me Deus, não têm nem a décima parte de beleza. Minha mesma mãe me disse que se deve adorar, suplicar e honrar a Deus sobre todas as coisas. Eu adorarei a este, e depois a todos os anjos.
    Imediatamente atira-se ao chão e diz todo o credo e as orações que sabia, porque sua mãe as tinha ensinado. O principal dos cavaleiros, vê e diz:
    — Fiquem para trás. O moço que vimos, caiu no chão de medo. Se formos todos juntos para ele, parece-me que será tal seu espanto que morrerá, e não poderá responder a nada que perguntemos.
    Todos param e ele se adianta galopando até o moço. Saúda-o e o tranqüiliza dizendo:
    —Moço, não tenha medo.
    —Não o tenho —diz o moço—, pelo Salvador em quem acredito. São vocês, Deus?
    —Não, a minha fé.
    —Quem são, pois?
    —Sou um cavaleiro.
    —Jamais conheci um cavaleiro —responde o moço—, nem vi, nem ouvi falar nunca de nenhum, mas vocês são mais formosos que Deus. Oxalá fosse eu assim, tão reluzente e feito deste modo!
    Enquanto isso o cavaleiro aproximou-se dele perguntando-lhe:
    —Viu hoje, por estas bandas, cinco cavaleiros e três donzelas?
    Ao moço interessa averiguar e perguntar outras coisas. Com a mão toca a lança, agarra-a e lhe diz:
    —Bom senhor amável, você que o chamam cavaleiro, o que é isto que leva?
    (VS. 192-265)
    - Agora sim...Parece que vou por bom caminho! —responde o cavaleiro—. Eu que pensei, meu doce amigo, saber novas de ti, e as quer ouvir de mim. Já lhe direi: isto é minha lança.
    - Dizem que se lança —disse ele— como eu faço com minhas flechas?
    - Não, moço. É muito tolo! Ataca-se com ela sem soltá-la.
    —Assim, pois, vale mais uma destas três flechas que vêem aqui, porque sempre que quero com elas mato pássaros e animais a meu prazer, e os mato de tão longe como se poderia fazer com uma lança.
    —Moço, isto não me importa nada. Mas, responda-me sobre os cavaleiros. Diga-me se souber, onde estão e se viu as donzelas.
    O moço agarra a ponta do escudo e lhe diz francamente:
    - O que é isto e do que lhes serve?
    - Moço —diz ele— isto é uma brincadeira. Leva-me à questões distintas das quais eu peço e pergunto. Eu supunha, assim Deus me prospere, que você me daria novas em vez de que as soubesse de mim, e você quer que lhe dê isso. Como é, eu lhe direi isso, pois eu gosto de agradar. Isto que levo se chama escudo.
    - Chama-se escudo?
    - Sim —diz ele—, e não devo desprezá-lo porque me é tão fiel que, se alguém lança ou dispara sobre mim, interpõe-se a todos os golpes. Este é o serviço que me faz.
    Entretanto, os que estavam atrás vieram a toda corrida para seu senhor, e lhe disseram pouco tempo depois:
    —Senhor, o que lhe diz este gaulês?
    —Desconhece as maneiras —disse o senhor—, assim Deus me perdoe, pois, nada do que lhe perguntei respondeu direito nenhuma só vez, mas sim pergunta como se chama tudo o que vê e o que se faz com isso.
    —Senhor, saiba de uma vez para sempre, que os gauleses são, por natureza, mais tolos que as bestas que pastam, e este é como uma besta. É ignorante quem se detém com ele, senão quer entreter-se com bobagens e gastar o tempo em tolices.
    — Não sei —diz ele—, mas, assim seja Deus, com tanto que me ponha no caminho lhe direi tudo o que queira saber; de outro modo não partirei.
    Logo, pergunta-lhe uma vez mais:
    —Moço, apesar dos pesares, diga-me dos cinco cavaleiros e também se hoje encontrou, ou viu as donzelas.
    O moço pega pela armadura e estica-a.
    —Diga-me agora —disse ele —, bom senhor, o que é isso que têm vestido?
    —Moço, não sabe?
    —Não sei.
    —Moço, é minha armadura, e é tão pesada como o ferro.
    —É de ferro?
    —Bem o pode ver.
    (VS. 266-345)
    —Não sei nada disto —disse ele—, mas é muito bela, valha-me Deus. O que fazem com ela e do que lhes serve?
    —Moço, é muito simples de explicar. Se fosse me atirar um dardo, ou me lançar uma flecha, não me faria nenhum dano.
    — Senhor cavaleiro, de tais armaduras preserve Deus, às corças e aos cervos, pois não poderia matar a nenhum nem correria nunca mais atrás deles.
    O cavaleiro replicou:
    — Moço, valha-o Deus, pode me dar novas dos cavaleiros e das donzelas?
    Ele, que tinha muito pouco critério, disse-lhe:
    —Nasceram assim?
    —Não, moço, é impossível que alguém possa nascer assim.
    —Quem, pois, embelezou-lhes desta sorte?
    —Moço, eu te direi quem.
    —Diga, pois.
    — Com muito prazer. Ainda não se cumpriram cinco anos em que o rei Artur, armou-me cavaleiro, deu-me toda esta guarnição. E agora me diga de uma vez, o que foi feito dos cavaleiros, que passaram por aqui, levando as três donzelas. Iam passeando ou fugiam?
    Ele disse:
    — Senhor, olhe para o bosque mais alto que rodeia aquela montanha. Ali estão os desfiladeiros de Valbona.
    —Bem, é o que, bom irmão?
    —Ali estão os lavradores de minha mãe, que semeiam e aram suas terras. Se esta gente passou por ali e eles viram, dir-lhes-ão isso.
    Respondem-lhe que irão com ele, se os guiar, aos quais rastelam a aveia. O moço monta em seu corcel e vai onde os lavradores rastelavam as terras aradas, nas quais semearam a aveia. Assim que viram seu senhor ficaram tremendo de medo. Sabem por que razão? Porque viram que com ele vinham cavaleiros armados. Sabiam bem que se lhes perguntassem por seu ofício e de sua condição, eles queriam ser cavaleiro; sua mãe perderia o juízo, pois queria evitar que vissem cavaleiros e se inteirassem nesse ofício. O moço disse aos trabalhadores:
    — Viram passar por aqui cinco cavaleiros e três donzelas?
    —Em todo o dia de hoje passearam por estes desfiladeiros —respondem os trabalhadores.
    O moço disse ao cavaleiro que tinha falado tanto com ele:
    — Senhor, os cavaleiros e as donzelas passaram por aqui; mas, agora me fale mais do rei que faz cavaleiros, e do lugar onde ele está com mais freqüência.
    —Moço —respondeu ele—, direi que o rei mora em Carduel. Ainda não passaram cinco dias que ele residia ali, pois, eu estive lá e o vi. Senão o encontrar ali, haverá quem indique aonde se encaminhou. Mas, agora rogo que me diga com que nome devo chama-lo.
    (vs. 346-422)
    - Senhor —disse ele —, já lhes direi isso: eu me chamo "bom filho".
    - "Bom filho"? Suponho que tem algum outro nome.
    —Senhor, a minha fé, meu nome é "bom irmão".
    —Acredito. Bem, mas se quer saber a verdade, queria saber seu nome verdadeiro.
    - Senhor —disse ele — , posso dizer isso bem, porque meu verdadeiro nome é "bom senhor".
    - Valha-me Deus! É um bom nome. Tem algum mais?
    - Não, senhor, jamais tive outro algum.
    - Valha-me Deus! Ouvi as coisas mais surpreendentes que jamais ouvi e que nunca penso ouvir.
    Imediatamente o cavaleiro parte galopando, pois, tinha pressa em reunir-se com os outros. O moço não demonstrava pressa em voltar para sua morada, onde sua mãe tinha o coração enfermo e escurecido por sua demora. Assim que o vê, experimenta grande alegria, não pode escondê-la, porque, como mãe que muito o quer, corre para ele e lhe chama "Bom filho, bom filho!", mais de cem vezes:
    —Bom filho, meu coração esteve muito torturado por sua demora. A dor me afligiu tanto, que por pouco morro. Onde esteve hoje tanto tempo?
    —Onde, senhora? Já lhe direi isso, sem mentir em nada, pois tive grande alegria por uma coisa que vi. Mãe, não costumava dizer que os anjos e Deus Nosso Senhor, são tão formosos que jamais a natureza criou tão formosas criaturas, nem há nada tão belo no mundo?
    - Bom filho, e lhe digo isso outra vez; digo-lhe isso, porque é verdade e lhe repito isso.
    - Cale-se, mãe! Acaso não acabo de ver as coisas mais formosas que existem, que vão pela Erma Floresta? Imagino que são mais formosos do que Deus e todos os seus anjos.
    A mãe toma-o em seus braços e lhe diz:
    - Bom filho, a Deus o encomendo, pois, sinto grande temor por ti. Você viu, penso, aos anjos dos que a gente se lamenta, que matam tudo que alcançam.
    - Não, mãe, não, não é isto! Dizem que se chamam cavaleiros.
    Ao ouvir pronunciar a palavra “cavaleiros” a mãe deprime-se; e assim que se repôs, disse como mulher aflita:
    (VS. 423-521)
    — Ai, desventurada, que infeliz sou! Doce bom filho, queria lhe preservar de ouvir falar de cavalaria e de que visse algum destes. Tivesse sido cavaleiro, bom filho, se tivesse agradado ao Nosso Senhor que seu pai velasse por você e por seus amigos. Em todas as ilhas do mar não houve cavaleiro de tão alto mérito, nem tão temido, nem aterrador, bom filho, como foi seu pai. Bom filho, pode se orgulhar de que não desmentem em nada sua linhagem, nem a minha, pois, eu procedo dos melhores cavaleiros desta comarca. Em meus tempos não houve linhagem melhor que as minhas nas ilhas do mar; mas os melhores decaíram, e se viu em muitas ocasiões, que as desditas ocorrem aos nobres que se mantêm em grande honra e em dignidade. Maldade, vergonha e preguiça não decaem, pois não podem, mas aos bons os deixam decair. Seu pai, se não sabe, foi ferido no meio das pernas, de sorte que seu corpo ficou aleijado. As grandes terras e os grandes tesouros que como homem principal tinha, perderam-se completamente, e caiu em grande pobreza. Empobrecidos, deserdados e arruinados foram injustamente os gentis homens depois da morte de Uter Pendragon, que foi rei e pai do bom rei Artur. As terras foram devastadas e os pobres abatidos, fugiu o que pôde fugir. Seu pai tinha esta morada nesta Erma Floresta; não pôde fugir. Apressadamente, trouxeram-no aqui em um beliche, pois, não sabia outro local no qual se refugiar. Você era pequeno, e tinha dois formosos irmãos; também pequenos, um menino de peito, tinha pouco mais de dois anos. Quando seus dois irmãos eram maiores, com a licença e conselho de seu pai foram à corte real para conseguir armas e cavalos. O maior foi ao rei de Escavalón, e o serve tanto que foi armado cavaleiro. O outro, que era menor, foi ao rei Ban de Gomeret. Ambos os moços foram consagrados cavaleiros no mesmo dia. No mesmo dia retornariam para casa, porque queriam dar alegria a mim e a seu pai, que já não os viu mais, pois, foram vencidos pelas armas. Pelas armas ambos foram mortos, pelo que eu senti grande dor e grande pena. Do maior chegaram novas terríveis: os corvos e as gralhas lhe arrebentaram os olhos; assim encontraram-no morto. Pela dor do filho morreu seu pai, e eu sofri vida muito amarga desde que ele morreu. Vocês eram todo o consolo e todo o bem que eu tinha, nunca ficava sem os meus. Deus só me deixou você para que estivesse alegre e contente.
    O moço escuta muito pouco o que sua mãe vai dizendo.
    —Dê-me de comer —diz—; não sei do que me fala. Com muito gosto iria ao rei que faz cavaleiros; e eu irei, que pese a quem pesar.
    A mãe o retém e o cuida tanto como lhe é possível. Prepara e confecciona uma grossa camisa de cânhamo e calças à guisa de Gales; onde se fazem, conforme acredito, calças e meias de uma peça; e uma capa com capuz, de pele de cervo, fechada ao redor. Assim o equipou a mãe. Só três dias o reteve, pois, para mais não foram eficazes suas adulações. Então, sentiu a mãe uma estranha dor; beijou-o e o abraçou chorando e lhe disse:
    (VS. 522-613)
    —Agora sinto uma dor muito grande, bom filho, quando o vejo partir. Vá a corte do rei e diga-lhe que lhe dê armas. Não haverá nenhum inconveniente, pois, bem sei que dará. Todavia, quando chegar o momento de levar as armas, o que ocorrerá então? Como poderá dar conta, ao que jamais fizera, nem vira fazer a outros? Realmente, temo que mal. Entretanto, será pouco destro, parece-me, porque não é de admirar, que não se saiba, o que não se aprendeu; o admirável é que não se aprenda o que vê e ouve freqüentemente. Bom filho, quero lhe dar um conselho que deve compreender muito bem, e, se lhe agrada recordá-lo, poderá lhe chegar grande bem. Filho, se agradar a Deus, e eu assim acredito, dentro em pouco, será cavaleiro. Perto ou longe se encontrar dama que tenha necessidade de amparo, ou donzela desconsolada; preste-lhe sua ajuda, se ela lhe requerer isso, pois toda a honra radica nisso. Quem não rende honra às damas, sua honra deve estar morta. Sirva à damas e donzelas, e será honrado em toda parte; mas, se zangar alguma, não guarde nada que lhe desagrade. Muito consegue de donzela quem a beija. Se lhe consente que a beije, eu lhe proíbo o resto, se por mim quer deixá-lo. Se ela tiver anel no dedo, ou caritativa em seu cinturão; e por amor ou por rogo lhe der isso, parecerá bom e gentil que leve seu anel. Dou-lhe permissão para tomar o anel e a caritativa. Bom filho, quero lhe dizer algo mais: nem a caminho, nem em estalagem, não tenha por muito tempo companheiro sem lhe perguntar seu nome; e saiba, em resolução, que pelo nome se conhece homem. Bom filho, converse-se com os mestres e esteja em sua companhia; os mestres não aconselham mal nunca os quais têm ao seu lado. Rogo, sobretudo, que reze a Nosso Senhor em igreja e em monastério, para que lhe dê honra neste século e permita-lhe comportar de tal sorte que chegue a bom fim.
    —Senhora —disse ele —, o que é igreja?
    —Filho, ali onde se faz o serviço de Deus, Aquele que fez céu e terra; e pôs nela homens e mulheres.
    —E o que é monastério?
    —Filho, o mesmo: uma casa formosa e muito santa na qual há corpos de Santos e tesouros; ali se sacrifica o corpo de Jesus Cristo, o santo profeta, a quem os judeus fizeram tantos insultos. Foi traído e julgado injustamente; sofreu angústias de morte pelos homens e pelas mulheres; pois, as almas vão para o inferno quando se separavam dos corpos, e Ele as resgatou dali. Foi preso à um poste, açoitado, sacrificado; e levou uma coroa de espinhos. Para ouvir missa, orações e para adorar a este Senhor lhe aconselho a ir ao monastério.
    —Irei, pois, de muito bom grado às Igrejas e aos monastérios —disse o moço— de agora em diante. Assim lhe prometo isso.
    Então já não se entretém mais; despede-se e a mãe chora. A sela já estava posta. Ia vestido à maneira e guisa do Gales; levava nos pés calçados com adorno, e por toda parte onde ia, estava acostumado a levar três flechas. Quis fazê-lo, mas, sua mãe lhe fez deixar duas, para que não parecesse muito gaulês, e, se pudesse, com muito prazer lhe faria desprender-se das três. Levava uma vara na mão direita para fustigar o cavalo.
    (VS. 614-695)
    A mãe, que tanto o amava, chorando beija-o. Ao separar-se dele, roga a Deus que o encaminhe.
    —Bom filho —disse ela—, Deus lhe guie, e onde quer que vá, dê-lhe mais gozo do que para o que fica.
    Quando o moço se afastou já a pouca distância olhou para trás; viu sua mãe de cabeça baixa sobre a ponte; estava desvanecida como se tivesse morta de cansaço. Ele fustiga com a vara a garupa do cavalo, o qual parte, sem tropeçar, e o leva a galope pela grande floresta escura. Cavalgou da manhã até que declinou o dia. Aquela noite dormiu no bosque até que amanheceu o claro dia.
    A DONZELA DA TENDA

    Pela manhã, com o canto dos pássaros, levantou-se o moço. Montou e cavalgou até que viu uma tenda levantada em uma bela pradaria, perto do arroio de uma fonte pequena. A tenda era maravilhosamente formosa: uma metade era vermelha e a outra bordada de orifrés, em cima havia uma águia dourada. O sol, claro e avermelhado, batia na águia, reluzindo todos os campos pelo resplendor da tenda. Ao redor dela, que era a mais formosa do mundo, havia cabanas de ramos e folhas; e se levantaram choças gaulesas. O moço foi para a tenda, e disse antes de chegar:
    —Deus, agora vejo sua casa. Obraria com menosprezo se não o adorasse. Realmente teve razão minha mãe ao me dizer que monastério era a coisa mais formosa que existe; e acrescentou que, sempre que encontrasse um monastério, entrasse para adorar ao Criador em quem acredito. Com fé pedir-lhe-ei que me dê hoje de comer, que o necessitarei muito.
    Logo vai à loja a qual encontra aberta; vê no meio uma cama coberta com uma colcha de seda; e na cama estava deitada, sozinha, uma donzela dormindo. Seu acompanhante estava no bosque, aonde fora colher flores frescas com as quais queria atapetar a loja, como estava acostumado a fazê-lo.
    Quando o moço entrou, seu cavalo soprou tão forte que a donzela o ouviu e despertou estremecida. O moço, que era simples, disse-lhe:
    —Donzela, saudação! Como minha mãe me ensinou a fazê-lo. Minha mãe me aconselhou e recomendou que saudasse às donzelas em qualquer lugar que as encontrasse.
    A donzela treme de medo pelo moço, que lhe parece bobo, e se tem por loucura comprovada porque a encontrou sozinha.
    —Moço —diz ela—, segue seu caminho. Foge, antes de que meu amigo o veja.
    —Antes lhe beijarei, por minha cabeça —diz o moço—, pese a quem pesar, pois minha mãe me recomendou isso.
    (VS. 696-783)
    —Eu não o beijarei —disse a donzela—, se posso evitá-lo. Foge, para que meu amigo não o encontre aqui, porque senão o matará.
    O moço, que tinha os braços fortes, abraçou-a muito simples, pois não soube fazê-lo de outro modo. Colocou-a debaixo dele toda estendida, ela se defendeu muito e revolveu-se quanto pôde; mas não adiantou de nada, pois o moço violentamente, tanto se ela o queria como se não, beijou-a sete vezes, conforme diz o conto, até que viu em seu dedo um anel com uma esmeralda muito clara.
    —Também me disse minha mãe —acrescentou ele—, que tomasse o anel de seu dedo, e que não lhe fizesse nada mais. Dê-me o anel, que o quero!
    —De modo algum terá meu anel —disse a donzela —, sabe-o bem, senão me arrancar do dedo a força.
    O moço agarra a mão a força, estende o dedo, tira-lhe o anel e o põe no seu, e diz:
    —Donzela, passe bem. Agora partirei bem pago, e é muito melhor beijar você do que a quaisquer garçonetes da casa de minha mãe, pois não tem a boca amarga.
    E ela chora e diz:
    —Moço, não leve meu anel. Por isso eu seria maltratada e você, cedo ou tarde, perderia a vida, asseguro-lhe isso.
    Ao moço não lhe chega ao coração nada do que ouve; mas como estava em jejum morria penosamente de fome. Encontra uma garrafa cheia de vinho e a seu lado um copo de prata, e vê sobre um feixe de junco um guardanapo branco e novo. Levanta-o e debaixo encontra três bons bolos de coisa tenra, e não lhe desagrada tal manjar. Pela fome que fortemente lhe angustia parte um dos bolos e o come com grande apetite; na taça de prata verte vinho, que não era mau, e o bebe com freqüentes e longos goles; e diz:
    —Donzela, estes bolos não serão hoje consumidos por mim. Venha comer, que são muito bons. Cada um terá bastante para si e ainda sobrará um inteiro.
    Enquanto isso ela chora, e por muito que ele a negue e exorte, não lhe responde nenhuma palavra, mas sim chora mais ainda e retorce as mãos com muita dureza. Ele comeu tanto quanto, bebeu até ficar satisfeito, tampou o que sobrava e se despediu imediatamente, encomendando a Deus aquela a quem não gostou de sua saudação:
    —Deus lhe guarde —disse—, formosa amiga; mas, por Deus, não se aborreça que leve seu anel, pois antes de que eu mora de morte lhe recompensarei isso. Vou com sua licença.
    Ela chora e diz que não o recomendará a Deus, pois por sua culpa terá mais vergonha e mais falta de sorte que jamais teve nenhuma desgraçada; e enquanto viva não terá socorro, nem ajuda; que saiba bem, que a traiu.
    Ela ficou assim chorando, e não passou muito tempo seu amigo voltou do bosque; viu os rastros do moço, que seguia seu caminho, e isso lhe indignou. Ao encontrar chorando sua amiga, disse-lhe.
    (VS. 784-864)
    —Senhora; acredito, pelos sinais que vejo, que aqui esteve um cavaleiro.
    —Não, senhor, asseguro-lhe isso; esteve um moço de Gales, irritante, vilão e tolo, que bebeu tanto vinho seu como lhe agradou e comeu seus três bolos.
    —E por isso chora, formosa? Queria que o tivesse bebido e comido tudo.
    —Há algo mais, senhor —disse ela—. Está em jogo meu anel, que me tirou e o leva. Preferiria estar morta do que o tivesse levado assim.
    Aqui ele se turva, com o coração angustiado e diz:
    —Por minha fé, isto é um ultraje. Desde o momento que o leva e que fique. Porém, acredito que terá feito algo mais. Se houve algo mais, não o esconda.
    —Senhor —disse ela—, beijou-me.
    —Beijou-lhe?
    —Seriamente, já lhe digo isso. Mas foi contra minha vontade.
    —Ao contrário: vocês gostaram e você cedeu; não encontrou nisso oposição alguma —responde aquele a quem o ciúmes tortura—. Pensa que não lhe conheço? Sim, certo; conheço-lhe bem. Não sou tão tonto, nem tão vesgo, que não veja sua falsidade. Entrou em mau caminho, em má desdita: seu cavalo não comerá aveia, será sangrado até que eu me vingue. E quando perder as ferraduras, não voltará a ser ferrado; e se morrer, seguir-me-ão a pé. Jamais trocarão as roupas as quais vestem, me seguirá a pé e nua até que lhe tenha talhado a cabeça. Esta será minha justiça.
    E então sentou e comeu.

    NA CORTE DO REI ARTUR

    O moço cavalgou até que viu um carvoeiro, que levava um asno adiante, e lhe disse:
    —Camponês que leva um asno adiante, ensina-me o caminho mais reto para ir ao Carduel. Quero ver o rei Artur, o qual dizem que ali faz cavaleiros.
    —Moço — responde-lhe — nesta direção há um castelo edificado ao lado do mar. Se você for a este castelo, doce bom amigo, encontrará ao rei Artur alegre e triste.
    —Agora satisfará meu desejo me dizendo por que o rei tem alegria e tristeza.
    —Direi isso em seguida — responde-lhe—. O rei Artur, com toda sua hoste, lutou com o rei Rión. O rei das ilhas foi vencido e, por isso, o rei Artur está alegre; mas está zangado com seus companheiros que partiram de seu castelo, onde vivem mais amplamente, e não sabe o que é deles; e esta é a tristeza que tem o rei.
    O moço não aprecia as novas artimanhas dadas pelo carvoeiro; encaminhando-se na direção indicada, até que ao lado do mar viu um castelo muito bem situado, forte e formoso.
    (VS. 865-951)
    E vê sair pela porta um cavaleiro armado que levava uma taça de ouro na mão; com a esquerda sujeitava a lança, o freio e o escudo, e na direita levava a taça de ouro. Assentavam-lhe muito bem as armas, que eram todas vermelhas. O moço viu aquelas armas tão belas, que eram muito novas, gostou e se disse:
    —Com minha fé, as pedirei ao rei; se me der, estarei muito bem, e maldito seja quem procura outras.
    Corre para o castelo, pois está impaciente para chegar a corte; mas quando passa ao lado do cavaleiro, este o reteve um momento e pergunta:
    —Aonde vai, moço? Diga-me.
    —Vou à corte —responde— para pedir ao rei estas armas.
    —Moço —disse o cavaleiro—, fará muito bem; vem, pois, em seguida, e volta. E dirá ao malvado rei que se quer ter sua terra sujeita a meu senhorio, que me entregue isso, ou que envie quem a defenda contra mim, afirmo que é minha. E acreditará quando lhe disser que recentemente lhe tirei esta taça que levo com todo o vinho que bebia.
    Que se busque outro mensageiro, porque este não entendeu nenhuma palavra. Não parou até a corte, onde o rei e os cavaleiros estavam sentados para comer. A sala estava ao mesmo nível terra, pavimentada, e era tão larga como longa, e o moço entrou nela a cavalo. O rei Artur estava sentado pensativo à cabeceira da mesa, e todos os cavaleiros riam e brincavam uns com outros, salvo ele, que estava pensativo e mudo. O moço se adianta sem saber a quem saudar, porque não conhece o rei, e para ele vai Yonet, que levava uma faca na mão, ao que diz:
    —Vassalo, você que vem aqui levando uma faca na mão, ensina-me quem é o rei.
    Yonet, que era muito cortês, responde-lhe:
    —Amigo, veja ali.
    Ele em seguida foi para ele e o saudou como soube. O rei, pensativo, não lhe disse uma palavra, e ele outra vez o interpelou; o rei continua muito pensativo e não pronuncia palavra.
    —A minha fé —disse o moço então—, este rei não fez jamais nenhum cavaleiro. Como poderia fazer cavaleiros se não lhe pode tirar nenhuma palavra?
    Então se dispõe a partir e fez dar a volta a cabeça de seu corcel; mas, como homem de pouco julgamento, tão perto do rei o tinha conduzido, que diante dele, e isso não é fábula, atirou-lhe sobre a mesa um chapéu de feltro que levava. O rei volta para o moço a cabeça, que tinha inclinada, e abandonando toda sua preocupação, diz-lhe:
    —Bom irmão, seja bem vindo. Rogo que não leve a mal que não tenha respondido a sua saudação; não lhe pude responder por desgosto; pois o pior inimigo que tenho, quem mais me odeia e mais me consterna, veio disputar minha terra; e é tão néscio que diz que, queira ou não, a possuirá toda, livremente. Chama-se o cavaleiro Vermelho da Floresta de Quinqueroi. A rainha veio sentar-se aqui, diante de mim, para consolar e ver os cavaleiros feridos. Não estivesse indignado com o muito que o cavaleiro disse, ainda diante de mim agarrou minha taça e a levantou tão néscio que derramou sobre a rainha todo o vinho que continha. Foi isso um insulto tão feio e tão vil que a rainha, inflamada de cólera e de indignação, encerrou-se em sua câmara, onde morre; e não acredito, Deus me perdoe, que saia viva disso.
    (VS. 952-1038)
    Ao moço não importa nada o que o rei diz e conta, nem sua dor, nem sua afronta, e tanto faz sua mulher. Diz:
    —Faça-me cavaleiro, senhor rei, que quero partir.
    Claros estavam os olhos na face do moço selvagem de arma. Ao contemplá-lo ninguém o teria por sensato, mas todos os que o viam o consideravam formoso e galhardo.
    —Amigo —disse o rei—, desmonte e dê seu corcel a um pajem, que o guardará e fará seu gosto. Dentro de pouco será cavaleiro, para minha honra e seu proveito.
    E o moço responde:
    —Não foram desmontados aqueles que encontrei por estas bandas, e vocês querem que eu desmonte. Não desmontarei, por minha cabeça. Mas, apresse-se, tenho que ir.
    —Ah! —disse o rei—, bom amigo amável, farei com muito gosto para seu proveito e para minha honra.
    —Pela fé que devo ao Criador —disse o moço—, bom senhor rei, em meus dias serei cavaleiro se não for cavaleiro vermelho. Dê-me as armas iguais as daquele que leva sua taça de ouro, o qual encontrei diante da porta.
    O mordomo, que estava ferido, e que se zangou pelo que tinha ouvido, disse:
    —Amigo, é justo. Vai agora mesmo pegar as armas porque são suas. Não procedeu como parvo quando veio aqui em busca disto.
    O rei ao ouvi-lo, indignou-se e disse ao Keu:
    —Muito injustamente zomba deste moço; isso é uma grande mácula em um mestre. Porque se o moço é simples, isso deve-se: se for nobre, à sua educação, a qual teve um mau professor, e ainda pode chegar a ser um digno vassalo. É vilania burlar-se de outro e prometer sem dar. O mestre não deve prometer a outro nada que não possa, ou não queira lhe dar, pois ganharia a má vontade de quem, sem lhe prometer nada, é seu amigo; e desde que o prometeu, aspira ter a promessa. Saibam, portanto, que é preferível negar uma coisa que fazê-la esperar em vão. Para falar a verdade, de si mesmo se burla; a si mesmo engana, quem faz uma promessa e não cumpre, e aliena o coração de seu amigo.
    (VS. 1039-1123)
    Assim falava o rei ao Keu; e ao moço que partia vinha uma donzela, formosa e gentil avisando-o e sorrindo diz o seguinte:
    —Moço, se viver longo tempo, penso e acredito no interior de meu coração que em todo mundo não existirá, nem haverá, nem se conhecerá melhor cavaleiro que você; assim o penso, estimo e acredito.
    A donzela não sorria desde há mais de seis anos e disse tão alto que todos ouviram. Keu, a quem tais palavras zangaram muito, saltou e com a palma lhe deu um bofetão tão rude na tenra cara, que a fez cair no chão. Depois de esbofetear a donzela encontrou, junto a uma chaminé, um bufão, e com indignação e cólera, deu um chute no fogo ardente, já que este bufão estava acostumado a dizer: "Esta donzela não sorrirá até que veja aquele que alcançará todo o senhorio da cavalaria."
    E assim, enquanto ele grita e ela chora, o moço não se entretém e parte, sem conselho de ninguém, atrás do Cavaleiro Vermelho.





    LUTA COM O CAVALEIRO VERMELHO
    Yonet, conhecia os melhores atalhos e com muito prazer levava novas à corte. Ia sozinho por um jardim que havia ao lado da sala e saia por uma porta até que chegou diretamente ao caminho no qual o cavaleiro esperava cavalaria e aventura.
    O moço chegou para ele com grande pressa para lhe tirar suas armas; e o cavaleiro, pela espera, tinha deixado a taça de ouro em um degrau de rocha granítica. Quando estava próximo o suficiente para que pudesse ouvir, o moço gritou:
    —Deixe suas armas. Já não as levará mais, porque o rei Artur lhe manda isso.
    E o cavaleiro lhe pergunta:
    —Moço, vem alguém aqui para manter o direito do rei? Se vem alguém, não me esconda isso.
    —Como, diabo! Está zombando de mim, senhor cavaleiro, que ainda não tirei as armas? Tire-as! É isso o que mando.
    —Moço —responde ele—, eu pergunto se vem alguém da parte do rei que queira combater comigo.
    —Senhor cavaleiro, tire as armas. Que não tenha que ser eu quem as estorve, pois não tolero que as tenha mais. Saiba que lhe atacarei se me fizer falar mais.
    Então o cavaleiro se irritou; levantou com as duas mãos a lança e, pela ponta que não tinha ferro, deu-lhe tal golpe ao longo das costas, que o fez agachar-se até o pescoço do cavalo. O moço se encolerizou ao sentir-se ferido pelo golpe que tinha recebido; aponta o melhor que sabe no olho do cavaleiro e atira-lhe o dardo, sem adverti-lo, nem ouvi-lo, do meio do olho lhe atravessou até o cérebro, de modo que pela nuca escorria sangue e os miolos. Pela dor o coração parou. Inclina-se e cai estirado ao chão.
    (VS. 1124-1217)
    O moço desmonta, deixa a lança de lado e tira-lhe o escudo do pescoço. Todavia, não sabe como arrumar-lhe com o elmo que leva na cabeça, pois ignora como separá-lo. Tem vontade de descer-lhe a espada; porém, não sabe como fazê-lo, nem consegue tirar da bainha que leva a arma. Agarra, sacode e estira.
    Yonet, ao vê-lo em tais apuros, fica rindo e lhe diz:
    —O que é isto, amigo? O que faz?
    —Não sei. Pensei que seu rei me tinha dado estas armas. Todavia, antes conseguirei esquartejar ao morto para fazer chuletas, do que levar uma de suas armas; pois, estão tão pregadas ao corpo, o de dentro está tão unido ao de fora, parecendo-me que são tudo um só.
    —Não se preocupe com nada, pois eu as separarei muito bem, se quiser —disse Yonet.
    —Faça logo, pois —respondeu o moço—, e me dê isso imediatamente.
    Yonet põe mãos à obra e o descalça até a junta; não deixou no corpo nenhum armamento ou proteção, nem elmo na cabeça, nem nenhuma outra armadura.
    Entretanto, o moço não quer tirar a vestimenta, por mais que Yonet o diga, prefere deixar uma cômoda capa de tecido de seda felpuda, a qual o cavaleiro vestia debaixo da armadura, quando estava vivo. Nem autoriza que tire as botas que calça. Replica:
    —Diabo! Que brincadeira é esta? Trocaria minhas boas roupas, que minha mãe me fez outro dia, pelas deste cavaleiro? Minha grossa camisa de cânhamo pela sua, que é sutil e delicada? Queria que trocasse meu couro, que não penetra água, por este, que não suportaria nenhuma gota? Maldito seja o cangote de quem, agora e sempre, troque suas boas vestimentas por outras tão más.
    Dura tarefa é instruir a um néscio. Por mais rogos que lhe façam, só quer ficar com as armas. Yonet ata os armamentos e sobre as botas calça as esporas. Depois observou a armadura: era tal qual nunca houve outra melhor; sobre a touca coloca o elmo, que lhe assentou muito bem. Ensina-lhe rodear a espada folgada e pendente, logo após põe o pé no estribo e monta no corcel. Jamais tinha visto estribos, quanto às esporas, só conhecia o látego e a vara. Yonet lhe traz o escudo e a lança dando-os e, antes que se vá, o moço lhe diz:
    —Amigo, tome meu corcel e leve-o, é muito bom e lhe dou porque já não o necessito mais. Leve ao rei sua taça e saúdem-no de minha parte. Diga à donzela que Keu pegou na bochecha, que se puder, antes de morrer, penso surrar àquele banana, de tal modo, que ela se considerará vingada.
    Ele responde que devolverá ao rei sua taça e transmitirá a mensagem entendida. E assim separam-se e segue cada um para um lado.
    Yonet entra pela porta da sala onde estão os barões, entrega ao rei sua taça e lhe diz:
    —Senhor, alegre-se, pois, o seu cavaleiro que esteve aqui, devolve-lhe sua taça.
    —De que cavaleiro me fala?
    (VS. 1218-1304)
    Responde Yonet:
    —Daquele que a pouco saiu daqui.
    —Refere-se ao moço gaulês —diz o rei— que me pediu as armas na reunião em nosso acampamento, daquele cavaleiro que você fez tantos insultos quanto pôde?
    —Refiro-me a ele, senhor, verdadeiramente.
    —E como conseguiu minha taça? Ama-o e aprecia-o tanto, que amavelmente a deu?
    —Ao contrário, o moço pagou tão caro, que morreu.
    —E como foi isto, bom amigo?
    —Senhor, não sei. Mas, vi que o cavaleiro o golpeou com a lança, zangando-o muito. O moço por sua vez deu com um dardo na viseira, de modo que lhe fez sair o sangue por detrás, derramando o cérebro e deu com ele em terra.
    Então disse o rei ao mordomo:
    —Ah, Keu, que mal obrastes hoje! Por culpa de sua injuriosa língua, proferiu tantas inconveniências, arrebatando o moço que hoje tanto me ajudou.
    —Senhor —disse Yonet ao rei—, por minha cabeça: ele manda dizer por mim à donzela da rainha que Keu golpeou por despeito, por aversão e ódio a ele, que a vingará, se encontrar ocasião para isso.
    Quando o bufão, que estava sentado ao lado do fogo, ouviu estas palavras, ficou em pé e muito contente foi ante o rei, com tanta alegria que saltava e saltava, e disse:
    —Senhor rei, assim Deus me salve, agora se aproximam nossas aventuras. Com freqüência as verão dolorosas e duras. E eu lhes prognostico que Keu pode estar seguro de que em má hora viu seus pés, suas mãos, sua língua néscia e vilã; pois, antes de que transcorra uma quinzena, o cavaleiro terá vingado o chute que me deu, será bem devolvida, comprada e paga cara, a bofetada que deu à donzela, porque lhe quebrará o braço direito entre o cotovelo e o sovaco. Meio ano o terá pendurado do pescoço, muito justo e é tão certo que obrará assim quanto tem que morrer.
    Tanto arderam estas palavras ao Keu que por pouco arrebenta de indignação e de cólera, por pouco esteve de maltratá-lo diante de todos até matá-lo. Mas não o atacou porque desagradaria ao rei, o qual disse:
    —Ai, ai, Keu, quanto me zangou hoje! Se alguém tivesse dirigido e adestrado nas armas ao moço, de modo que tivesse aprendido um pouco a servir do escudo e da lança, tínhamos, sem dúvida alguma, um bom cavaleiro; mas não sabe de armas, nem de nenhuma outra coisa, nem pouco, nem muito; nem sequer saberá desembainhar a espada se o precisar. Agora vai armado em seu cavalo, se encontrar algum vassalo que, para ficar com suas arreios, não duvidará em aleijá-lo. Logo o matará, ou o aleijará, pois, não saberá defender-se, de tão simples e bruto como é, e facilmente perderá a partida.
    Assim o rei lamenta e deplora ao moço tendo o rosto entristecido. Todavia, como não pudia reparar nada, deixa de continuar falando.

    COM O GORNEMANT DE GOORT

    (VS. 1305-1389)
    O moço sem demora vai cavalgando pela floresta, até que chega numa terra plana; pela qual discorre um rio que, em suas partes mais largas, tem um campo suspenso; e na extensão do leito se acumulou toda a água. Atravessa toda uma pradaria para o grande rio que ressona. Todavia, não entrou na água porque a viu muito veloz e negra; mais profunda que a de Loira. Segue ao longo da borda, perto de uma grande rocha viva, sobre a qual, um declive descia por volta do mar e havia um castelo muito rico e resistente. Quando o rio chegava à desembocadura, o moço se voltou para a esquerda e viu nascer as torres do castelo, pois lhe pareceu que nasciam e que surgiam da rocha. No meio do castelo se erguia uma torre sólida e grande. Em frente à baía, um poderoso muro que combatia com o mar e o mar batia a seu pé. Nas quatro paredes do muro, cujos blocos de pedras eram duros, havia quatro baixas torres que eram muito compactas e belas. O castelo estava muito bem situado e bem disposto em seu interior. Frente ao redor do muro havia uma ponte de pedra, areia e cal suspensa sobre a água. Era alto, firme, sólido e cercado por pilastras. No meio da ponte havia uma torre, adiante uma ponte elevada, que parecia estabelecida para o que justamente lhe compete: de dia era ponte e de noite porta.
    O moço caminha para a ponte, pelo que se entretém num mestre vestido com roupas de cor púrpura. Eis aqui aquele que vem fazer a ponte. Para mostrar autoridade, o mestre leva um bastão na mão, e detrás dele seguem dois pajens guardiães. O moço recorda bem o que sua mãe lhe ensinou, pois, cumprimenta e diz:
    —Senhor, isto me ensinou minha mãe.
    —Deus te abençoe, bom irmão —respondeu o mestre, que ao falar conheceu que era simples e tolo —. Bom irmão, de onde vem?
    - De onde? Da corte do rei Artur.
    - E o que fazia?
    —O rei, que boa ventura haja, fez-me cavaleiro.
    — Cavaleiro! Deus me proteja! Não suspeitava que agora, precisamente, lembrasse disto; imaginava que lhe preocupavam coisas muito distintas para fazer cavaleiros. Diga-me, amável irmão, quem te deu estas armas?
    —O rei me deu —responde isso.
    —Deu-lhe isso? Como?
    E lhe conta o que já ouvistes no conto. Se o contasse eu outra vez seria irritante e aborrecido, e com isso nenhum conto ganha nada.
    E o mestre lhe pergunta o que sabe fazer com o cavalo.
    — Faço-o correr acima e abaixo, como fazia com o corcel que tinha antes, que trouxe da casa de minha mãe.
    (VS. 1390-1468)
    —Diga-me também, bom amigo, o que sabe fazer com suas armas?
    — Sei prepara-las e arrebatar, do modo como me armou com elas o pajem que diante de mim desarmou o cavaleiro que matei; e as levo com tanta agilidade que não me pesam nada.
    —Por minha fé —disse o mestre—, aprovo-o e me agrada. Todavia, diga-me senão o molesta, o que lhe traz por aqui?
    — Senhor, minha mãe ensinou aproximar-me dos mestres em qualquer lugar que os encontrasse, e que acreditasse o que me dissessem, pois muito proveitos ganham os que os escutam.
    E o mestre responde:
    — Bom irmão, bendita seja sua mãe, que tão bem lhe aconselhou. Porém, quer me dizer algo mais?
    —Sim.
    —O que?
    - Uma coisa somente: que me albergue hoje.
    - Com muito gosto —diz o mestre — , mas, com a condição de que me outorgue um dom do qual verão seguir-se grande benefício.
    - Qual? —diz ele.
    - Que seguirá os conselhos de sua mãe e os meus.
    —Por minha fé, outorgo-o —disse ele.
    —Pois, desmonte.
    E ele desmonta. Um dos dois pajens que o acudiu toma seu cavalo, e o outro o desarma. Assim ficou em seu rústico traje, com as botas e a capa de cervo, mal feita e mal cortada, que lhe tinha dado sua mãe. O mestre fez calçar as esporas cortantes de aço que o pajem havia trazido, monta em seu cavalo, pendura no pescoço o escudo, toma a lança e diz:
    — Amigo, aprenda agora a dirigir as armas. Fixa bem como se deve levar a lança, espetar e reter o cavalo.
    Logo desdobra a insígnia, mostra e ensina como se deve pegar o escudo. Joga-o um pouco para frente, para que alcance o pescoço do cavalo, afirma a lança e espeta o cavalo, o qual valia cem marcos; que corria mais elegante, mais rápido e com mais vigor que nenhum.
    O mestre conhecia muito de símbolos, de cavalos e de lanças, pois, aprendeu na sua infância. Concedia muito ao moço, o qual se fixou em tudo o que fez. Quando demonstrou tudo, bem e garboso, ante o moço, que tinha estado muito atento, volta com a lança erguida e lhe pergunta:
    — Amigo, saberiam dirigir assim a lança, o escudo, espetar e conduzir o cavalo?
    E ele responde decidido que não quer viver, nem um só dia mais, nem possuir fazenda, até sabê-lo fazer assim.
    — O que não se sabe pode aprender, se a gente puser nisso afã e entendimento, amável amigo —diz o mestre—. Em todo ofício convém, ter coração, trabalho e costume. Com estes três meios se chega a conhecê-lo, como você jamais o fizera, nem o vira fazer a ninguém, não merece desprezo, nem censura por não saber fazê-lo.
    Logo o mestre o fez montar, ele começou a levar tão distraído a lança e o escudo como se sempre tivesse vivido entre torneios e guerras; tivesse percorrido todas as terras em demanda de batalhas e aventuras; pois lhe vinha da natureza; quando a natureza o ensina fica em todo o coração, nada pode ser árduo para o esforço da natureza e do coração.
    Tudo desempenhava tão bem, que o mestre estava muito satisfeito; dizendo em seu interior que se toda sua vida se aplicasse e ocupasse em armas, não o teria aprendido tão bem. Quando o moço acabou sua trajetória, retornou ao mestre com a lança erguida, como lhe tinha visto fazer, e lhe diz:
    _Senhor, tenho-o feito bem? Crê que convém mais esforço, se quero fazê-lo? Jamais viram meus olhos nada que tanto desejasse; mas queria saber tanto como sabe você.
    - Amigo —responde o mestre—, se puser seu coração nisso, conseguirá; não deve se inquietar de modo algum.
    Três vezes o mestre montou, e três vezes lhe ensinou tudo quanto pôde lhe ensinar em matéria de armas, e três vezes o fez montar. A última lhe disse:
    — Amigo, se encontrasse um cavaleiro que lhe atacasse, o que faria?
    —Atacaria-o por minha vez.
    —E se sua lança rompesse?
    —Depois disto não teria mais receio de lhe atacar a murros.
    —Amigo, não faça isto.
    - O que farei, pois?
    - Deve lhe obrigar a esgrimir a espada.
    Então, o mestre que tanto deseja lhe ensinar armas e lhe instruir de modo que saiba bem defender-se com a espada; obrigando-se a isso a atacar quando se apresente a ocasião, finca no chão a lança muito direita, logo lança mão à espada e diz:
    —Amigo, deste modo se defenderá se o atacarem.
    —Nisto, Deus me valha —responde—, ninguém sabe tanto como eu, pois me exercitei com os almofadinhas e as faíscas da casa de minha mãe, ao ponto de fatigar-me em algumas ocasiões.
    —Assim, pois, vamos pra casa, porque já não sei que mais ensinar —diz o mestre—, e esta noite, em que pese a quem pesar, São Julião nos dará bom albergue.
    E assim se vão, um ao lado do outro, e o moço diz a seu anfitrião:
    - Senhor, minha mãe me recomendou que soubesse o nome de todo aquele com quem fora ou com quem fizesse longa companhia. E se o que me recomendou é sensato, quero saber seu nome.
    - Amável amigo —diz o mestre—, eu me chamo Gornemant do Goort.
    (VS. 1549-1638)
    Assim, um ao lado do outro, chegaram ao castelo. Ao início da escada aproximou-se um agradável pajem levando um manto curto, com o qual correu a abrigar ao moço para que, depois do calor, o frio não lhe fizesse mal. O mestre tinha ricas estadias, formosas, grandes e bons servidores. A comida boa, agradável e bem preparada, estava disposta. Os cavaleiros lavaram-se e sentaram-se à mesa. O mestre sentou ao lado do moço e comeu com ele na mesma tigela. Não é preciso que faça relação de quantos manjares houve nem de sua qualidade, pois comeram e beberam o suficiente, e já não falo mais da comida.
    Quando levantaram da mesa, o mestre, que era muito cortês, rogou ao moço que esteve sentado a seu lado, que ficasse um mês; de bom grado o acolheria se quisesse um ano inteiro, e enquanto isso lhe ensinaria, se lhe parecia bem, coisas que lhe seriam úteis em uma necessidade. E o moço lhe respondeu:
    —Senhor, não sei se estamos perto da morada onde minha mãe vive, mas peço a Deus que conduza a ela para que ainda a possa ver, pois a vi cair deprimida ao pé da ponte, diante da porta, e não sei se estava viva, ou morta. Sei bem que caiu deprimida pela dor que lhe produzi quando a deixei; e por esta razão não é possível que me ausente muito até saber seu estado. Irei amanhã ao amanhecer.
    O mestre vê que de nada serve insistir. Não diz nada mais, sem outra conversa vão se deitar, pois, as camas já estavam feitas. O mestre se levantou de manhã e foi à cama do moço o qual encontrou deitado, e lhe fez levar, doando-lhe camisa e calças muito finas como véu; calças importadas do Brasil e capa de tecido de seda indiana, uma malha que se faz na Índia. Orientou-o para que se vestisse com aquelas vestimentas e disse:
    —Amigo, se me crê, vestirá estas roupas que vê aqui.
    E o moço respondeu:
    - Bom senhor, por muito que me diga, acaso as roupas que fez minha mãe não valem mais que estas? E quer que ponha isso?
    -Moço, por minha cabeça e pela fé que devo a meus olhos, estas valem muito mais.
    Replicou o moço:
    —Valem menos.
    - Você disse, bom amigo, quando o trouxe aqui dentro, que obedeceria todos os meus mandatos.
    - E assim o farei —disse o moço—, e não o decepcionarei em nada.
    Apressa-se a colocar as roupas e deixa as de sua mãe. O mestre agacha-se e calça a espora direita, pois era costume ao presentear um cavaleiro calçar a espora neste. Havia muitos outros moços, e todos os que podem aproximar querem intervir em armá-lo. O mestre pegou a espada rodeou-a e beijou-a; dizendo que com a espada, tinha-lhe dado a mais alta ordem que Deus tenha feito e instaurado: é a ordem da cavalaria, que deve ser sem vilania. E acrescenta:
    (VS. 1639-1721)
    —Bom irmão, se por acaso precisar combater com algum cavaleiro, lembre-se do que agora quero dizer e rogar: se você vencer, de modo que ele já não possa defender-se de você, nem se opor à você, ou seja obrigado a ficar à sua mercê, tenha compaixão e apesar de tudo não o mate. Não me agrada falar muito: se a gente for muito falador, às vezes, diz coisas consideradas desnecessárias, pois, o sábio diz e repete: "Quem fala muito, machuca-se a si mesmo." Por isso, o aconselho, bom amigo, que não fale demais. Também rogo que se encontrar homem, ou mulher; seja órfão, ou seja dama, desorientados, aconselhe-os; fará grande bem se souber aconselhá-los e se tiver autoridade para tal. Recomendo-lhe outra coisa que não deve desdenhar, porque não deve ser desdenhada: vá de bom grado ao monastério para pedir Àquele que tudo tem feito, que tenha piedade de sua alma e que neste século terreno, guarde-o como cristão dele.
    O moço disse ao mestre:
    —Por todos os apóstolos de Roma seja abençoado, bom senhor, pois, o mesmo ouvi dizer minha mãe.
    —Não diga nunca, bom irmão —acrescenta o mestre—, que sua mãe o ensinou, diga apenas que fui eu. Saiba que não o reprovo por havê-lo dito até agora, todavia, daqui em diante, por favor, rogo que se emende; pois, continuar dizendo é desnecessário. Rogo-lhe, pois, que guarde este conselho.
    —Como direi, pois, doce senhor?
    —Poderá dizer que quem lecionou e ensinou isso, foi quem o presenteou e calçou sua espora.
    O moço dá sua palavra, promete ao mestre que pode ficar seguro, enquanto viva, só falará dele, pois parece muito certa tal instrução.
    Então o mestre o benze, com sua mão levantada para o alto e diz:
    —Posto que quer partir, vai com Deus e que Ele o guie, já que o intranqüiliza ficar aqui.


    NO BELREPEIRE

    O novo cavaleiro separa-se de sua hospedagem, pois, tem muita pressa em chegar para ver sua mãe e encontrá-la viva e sã. Adentra por florestas solitárias, pois nelas se encontra melhor que na terra plana, porque estava acostumado aos bosques. Cavalga até que vê um castelo forte e bem situado; fora dos muros não havia nada, salvo mar, água e terra erma. Apressa-se em caminhar para o castelo até que chega à porta, porém, antes de alcançá-la, teve que passar por uma ponte tão fraca que duvida que possa sustentá-lo. O moço sobe a pontezinha e cruza sem que lhe ocorra dano, vergonha, nem inconveniente algum. Quando chegou ante a porta a encontrou fechada com chave; golpeia-a não brandamente e grita não muito baixo. Tanto chamou que se aproximou da janela da sala uma donzela fraca e pálida, que disse:
    —Quem chama?
    (VS. 1722-1805)
    Ele olhou para a donzela, viu-a e disse:
    - Boa amiga, sou um cavaleiro rogando-lhe que me faça entrar aqui e albergue-me esta noite.
    - Senhor —contesta ela—, posso consenti-lo, mas, me agradecerá muito pouco por isto; não obstante lhe albergaremos o melhor que pudermos.
    A donzela retira-se. Ele, que espera diante da porta, receia fazer muito tempo que está ali e chama de novo. Em seguida chegaram quatro servidores com tochas, cada um dos quais rodeava uma boa espada. Abriram a porta e lhe disseram:
    —Entre!
    Se os servidores desfrutassem de prosperidade, talvez tivessem sido muito mais gentis; entretanto, padeceram de tanta miséria entre jejuns e vigílias, que um não ficaria assombrado caso um caísse. Além disso, o moço observou, que por fora, a terra estava nua e deserta; muito pouco encontrou dentro. Por qualquer lugar que ia, achava desfeitas as ruas e via as casas arruinadas, sem que as habitasse homem nem mulher. Havia na vila dois monastérios, que foram duas abadias: uma de monjas aterrorizadas e a outra de monges desamparados. De modo algum encontrou bem adornados, nem paramentados aqueles monastérios; antes, bem viu arrebentados e fendidos seus muros e as torres destruídas. As casas estavam abertas tanto de dia como de noite. Em nenhum lugar de todo o castelo havia moinho para molar, nem forno para cozer; ali não havia nem vinho, nem pão, nem nada à venda que se pudesse adquirir com dinheiro. Tão desprovido encontrou o castelo, que não havia nem pão, nem massa, nem vinho, nem cidra e nem cerveja.
    Os quatro servidores levam-no a um palácio coberto de tábua, onde o fazem desmontar e o desarmam. Em seguida, desce um pajem por uma das escadas da sala com um manto pardo que põe nas costas do cavaleiro. Outro leva seu cavalo ao estábulo no qual havia muito pouco trigo, feno e aveia, pois, na casa não ficava mais. Outros pajens fazem-no subir por uma escada de uma sala muito formosa. Saem ao seu encontro dois mestres e uma donzela. Eles tinham os cabelos grisalhos, embora não completamente branco; teriam todo o sangue da juventude e todas as suas forças, se não padecessem dor e desgosto. A donzela aproximou-se mais graciosa, mais elegante e mais atrativa que gavião, ou papagaio. Seu manto e sua estola eram de púrpura escura, adornada de ouro, e as peles de arminho não estavam puídas. O colarinho do manto estava bordado com enfeites negros e chapeados. Se alguma vez me agradou descrever a beleza que Deus pôs em corpo ou em face de mulher, agora agrada-me em fazê-lo de novo sem mentir nem em uma só palavra. Ia descoberta, e eram tais seus cabelos que aquele que os visse imaginaria que eram de ouro puro, pois eram loiros e com muito brilho. A frente era alta, branca e lisa como se tivesse sido obrada por mão de homem acostumado a esculpir pedras preciosas, marfim ou madeira. Sobrancelhas perfeitas e amplo sobrecenho; na face os olhos brilhantes, claros e rasgados; tinha o nariz reto e aquilino; e em seu rosto melhor se advinham o branco sobre o vermelho do que o sinople (verde) sobre a prata. Na verdade, para roubar os corações da gente, fez Deus dela um prodígio, depois não criou outra semelhante, nem antes a tinha criado. Assim que o cavaleiro a viu, saudou-a e seus dois acompanhantes saudaram-no. A donzela amavelmente o pega pela mão e diz:
    (VS. 1806-1900)
    —Bom senhor, em verdade, seu albergue esta noite aqui, não será como conviria a um mestre. Se agora lhe dissesse qual é nossa situação e nosso estado, poderia parecer que o fazia com má intenção para partir daqui; mas, se lhe agradar, venha e aceite o albergue tal qual é, e Deus lhe dê um melhor manhã.
    Conduzindo-o pela mão até uma câmara retirada, que era muito formosa, larga e ampla. Sentam-se os dois sobre uma colcha de seda estendida em cima de uma cama. Também chegaram outros cavaleiros, que se sentaram em grupos de quatro, cinco e seis, permanecendo calados, olhando àquele que estava ao lado de sua senhora e não dizia uma palavra. Abstinha-se de falar porque recordava o conselho dado pelo mestre, enquanto isso, todos os cavaleiros debatiam em voz baixa, e diziam:
    — Deus! Muito me surpreende que este cavaleiro seja mudo. Seria grande lástima, pois, jamais nasceu de mulher cavaleiro tão gentil. Agrada-nos muito estar ao lado de minha senhora, e a minha senhora também estar ao lado dele, se não fossem ambos mudos. Tão formoso é ele e tão formosa é ela, que nunca houve cavaleiro e donzela tão adequados para estar juntos, e parece que Deus fez um para o outro, para que juntos estivessem.
    Assim comentavam entre eles todos os que estavam ali. A donzela esperava que lhe falasse algo, até que se deu conta de que ele não pronunciaria uma palavra enquanto ela não se dirigisse primeiro; deste modo disse-lhe muito amavelmente:
    -Senhor, de onde vêm hoje?
    -Senhora —respondeu—, dormi em casa de um mestre, num castelo onde fui bem e gentilmente albergado. Há cinco torres fortes e excelentes, uma grande e quatro pequenas; poderia descrever todo o edifício, porém, não sei o nome do castelo; sei, entretanto, que o mestre se chama Gornemant do Goort.
    - Ah, bom amigo! —disse a donzela—, muito agradáveis são suas palavras e fala de modo muito cortês. Que o soberano Deus lhe premie por havê-lo chamado mestre, pois, jamais disseram uma palavra mais certa. Posso lhe assegurar, por São Riquier, que ele é mestre. Saibam que sou sobrinha dele, todavia, faz muito tempo que não o vejo. É bem certo que, desde que saíra de sua casa, não conheceu, assim acredito, ninguém mais mestre que ele. Muito brilhante e alegre albergue lhe deve ter dado, pois, sabe fazê-lo bem, como mestre, amável, poderoso, acomodado e rico. Mas aqui dentro só há cinco miseráveis pães que um tio meu, prior, homem muito santo e religioso, enviou-me para jantar esta noite junto com uma tina de vinho fermentado. O único alimento que temos é um corço, morto nesta manhã, com uma flecha de um dos meus servidores.
    (VS. 1901-1992)
    Então ordena que ponham as mesas e, depois disso, sentam-se para jantar. Pouco tempo ficaram sentados comendo, todavia, com grande apetite. Após cearem separaram-se em dois grupos: os que a noite passada velaram foram dormir e prepararam-se os que deviam aquela noite velar o castelo. Eram cinqüenta servidores e cavaleiros. Os demais trabalharam em excesso acomodando seu hóspede; ocupando-se da cama, põem brancos lençóis, colchas muito rica e um travesseiro na cabeceira. O cavaleiro desfrutou naquela noite, toda a comodidade e todo o deleite que se pode imaginar em uma cama, exceto o prazer da donzela, se a agradasse, ou o da dama, se lhe fosse permitido; entretanto, ele não sabia nada sobre o amor, nem de coisa alguma. Assim, dormiu pouco depois, pois, não havia nada que lhe preocupasse.
    Porém, a que o albergara não repousa, encerrada em sua câmara. Ele dorme tranqüilamente e ela considera uma batalha que se dá em si mesmo e contra a qual não tem defesa. Agita-se muito, muito se sobressalta, volta-se muitas vezes, muito se intranqüiliza. Coloca sobre a camisola um manto de seda de cor de grão, lançando-se à aventura como audaz e atrevida. Não é precisamente uma vã empreitada, porque tem o propósito de ir ao seu hóspede e lhe dizer parte de seu pensamento. Afasta-se de sua cama. Ao sair da câmara tem tal medo que todos os seus membros tremem e o corpo sua. Saiu chorando. Vai para a cama onde ele dorme lamentando-se e suspirando muito. Inclina-se, ajoelha-se e chora até molhar toda a cara com suas lágrimas; não tem ousadia para fazer mais.
    Chorou tanto, que ele acordou. Surpreso e admirado ao sentir sua cara molhada; ajoelhada ante sua cama e estreitamente abraçada nele pelo pescoço. Faz-lhe a cortesia de tomá-la imediatamente entre seus braços e atrai-la para si; dizendo:
    —Formosa, o que lhe acontece? Por que veio aqui?
    (VS. 1993-2093)
    —Ah, gentil cavaleiro, piedade! Rogo-lhe por Deus e por seu Filho que não me considere vil porque vim aqui. E embora esteja quase nua, de modo algum imaginei loucura, maldade, nem vilania; porque no mundo não existe criatura tão desgraçada, nem tão desventurada que eu não o seja mais. Nada do que tenho me satisfaz, nem passei um só dia sem dano. Sou tão desventurada que nunca mais virei outra noite depois da de hoje, nem mais dia que o de amanhã, porque me matarei com minhas próprias mãos. Dos trezentos e dez cavaleiros com os quais estava guarnecido este castelo, só ficaram aqui cinqüenta; porque duzentos e sessenta foram levados, mortos e aprisionados por um cavaleiro muito mau, Anguinguerón, mordomo de Clamadeu das ilhas. Tanto me pesa os quais estão na prisão, quanto os mortos, porque sei bem que morrerão e nunca poderão sair. Tantos mestres morreram por mim que justo é que esteja desconsolada. Anguinguerón passou todo um inverno e um verão em assédio, daqui pra frente, sem mover-se, sempre aumenta sua força. A nossa está minguada, as provisões esgotadas, a ponto de não ficar nem para alimentar uma abelha. Agora estamos tão perdidos porque amanhã, se Deus não o remediar, este castelo lhe entregará, pois, já não pode defender-se, me levará com ele como cativa. Porém, antes que me leve viva, matar-me-ei. Morta, pouco me importará que me leve. Clamadeu, que quer me ter, não me terá de modo algum, a não ser sem vida e sem alma. Guardo em meu porta-jóia uma faca de fino aço, que afundarei em meu coração. Isto é o que tinha para dizer; e agora retomarei meu caminho e lhe deixarei repousar.
    Logo, se se atrever, poderá o cavaleiro fazer-se digno de elogio, porque ela unicamente foi chorar sobre sua cama, embora lhe desse a entender outra coisa, para lhe colocar no ânimo de empreender à batalha, se o fizer por ela, a fim de defender sua terra. Ele responde:
    — Amiga querida, coloque nesta noite um semblante mais belo. Console-se, não chore mais, aproxime-se mais de mim e enxugue as lágrimas de seus olhos. Deus, se o quiser, fará amanhã mais bem do que o que me disse. Deite-se comigo nesta cama, que é bastante larga para os dois. Hoje não me deixará.
    E ela diz:
    —Faria-o se pudesse.
    Ele a beijava e a tinha estreitada entre seus braço. Muito brandamente e com cuidado a põe debaixo da colcha. Ela permite ser beijada e não acredito, que isto lhe zangue. Assim estiveram toda a noite deitados, um ao lado do outro, boca com boca, até a manhã que traz o dia. A noite foi tão agradável, porque boca com boca, braço com braço, dormiram até que amanheceu.
    Ao amanhecer a donzela retornou a sua câmara, sem criada, nem garçonete, vestiu-se e se compôs, pois, a ninguém despertou. Os que de noite velaram, assim que puderam ver o dia, despertaram os que dormiram e os fizeram levantar da cama, o que efetuaram sem tardança. Naquele mesmo momento a donzela foi a seu cavaleiro e lhe disse amavelmente:
    — Senhor, Deus lhe dê bom dia. Acredito que não fará longa estadia aqui, pois seria em vão. Irá e não me pesa, porque não seria cortês que isso me pesasse, já que aqui não lhe honramos, nem o tratamos bem. Peço a Deus que lhe proporcione melhor albergue, onde haja mais pão, mais vinho e mais boas coisas do que neste.
    (VS. 2094-2179)
    Ele contestou:
    —Formosa, não será hoje o dia que procure outro albergue, pois, antes de partir daqui, deixarei toda sua terra em paz, se me for possível. Caso encontre seu inimigo lá fora, pesar-me-á que fique ali mais tempo, embora nenhum dano lhe faça. Todavia, se o matar e vencer, peço-lhe, como galardão, que seu amor seja meu. Não aceitarei nenhuma outra recompensa.
    Responde-lhe com muito puritanismo:
    —Senhor, pede-me coisa muito pobre e muito pequena, porém se lhe recusasse tomaria como orgulho, por isso, não lhe quero negar isso. Não obstante, não diga que eu sou sua amiga com a condição e o trato de que você tenha que morrer por mim, seria um grande dano; porque saiba, de certo seu corpo e sua idade não são tais que lhe permitam opor-se, nem sustentar combate, nem batalha com cavaleiro tão duro, tão forte e tão robusto, como o que lá fora espera.
    —Isto já veremos hoje — diz — porque irei combater com ele, sem que nenhum conselho me impeça.
    Ela fica em tal transe, que por um lado o reprova e por outro o instiga; porque ocorre, às vezes, de alguém resistir renunciar ao que deseja, quando a outro é desejoso fazer toda sua vontade, a fim de que o deseje mais ainda. Ela obrou sabiamente, pois lhe colocou no ânimo o que tanto o está reprovando. Ele diz que lhe tragam as armas que pediu; trazem-nas, armam-no e o fazem montar em um cavalo que lhe prepararam no meio da praça. Não há quem não lastime dizendo:
    — Senhor, Deus o ajude neste dia, e dê grande mal ao servidor, Anguinguerón, que destruiu todo este país.
    Assim oram todas e todos. Acompanham-no até a porta, e quando o vêem fora do castelo, gritam todos a uma só voz:
    — Gentil senhor, que a verdadeira cruz na qual Deus permitiu que padecesse seu Filho, guarde-lhe hoje de perigo de morte, de desgraça e da prisão. Devolva-o sem machucado, ao lugar onde seja feliz, deleitando-se e satisfeito.
    Assim todos oravam por ele.
    Quando os da hoste o viram chegar, mostraram-no, em seguida, à Anguinguerón, que estava sentado diante de sua tenda. Parecia que lhe entregariam o castelo antes de anoitecer, ou que alguém sairia do castelo para lutar com ele corpo a corpo. Já tinha empacotado os armamentos. Sua gente estava muito contente porque acreditava ter conquistado o castelo e todo o país. Anguinguerón, assim que o viu, armou-se rapidamente. Foi até ele mais compassado em um corcel forte e robusto, e lhe disse:
    —Moço, quem o envia? Diga-me o motivo de sua vinda. Deve buscar paz ou batalha?
    (VS. 2180-2287)
    — E você o que faz nesta terra? —responde ele—. Você me dirá primeiro por que matou aos cavaleiros e devastou todo o país.
    Ele responde todo orgulhoso e arrogante:
    —Quero que hoje me esvaziem este castelo. Rendam a torre, que muito me resistiu e meu senhor terá a donzela.
    — Malditas sejam tais novas e quem te disse isto! —responde o moço—. Será necessário renunciar a quanto disputa.
    —Por São Pedro —diz Anguinguerón—, que me está dizendo boas necessidades. Às vezes ocorre pagar os danos, quem não tem culpa.
    Então o moço se zangou e afirmou a lança na bainha da cinta; e ambos deixaram que os cavalos corressem quanto podiam um contra outro. Pela indignação e a sanha que tinham e pela força de seus braços fazem voar por aqui e por lá as peças e as lascas das lanças. Só caiu Anguinguerón, ferido através do escudo, que sentiu dolorosamente o braço e o flanco. O moço, que não sabia atacá-lo a cavalo, fica de pé na terra, toma a espada e o ameaça. Não saberia lhes descrever mais detalhadamente o que se passou, nem todos os golpes um por um, mas a batalha durou muito e muito rudes foram os encontros até que Anguinguerón caiu.
    O moço avançou ferozmente sobre ele, até pedir misericórdia. O moço diz que não concederia nem pouca, nem muita. Todavia, lembrou-se de que o mestre lhe tinha aconselhado que vencendo não matasse o cavaleiro vencido e submetido. E aquele lhe dizia:
    —Doce amigo, não seja tão desumano, a ponto de não me outorgar misericórdia. Confesso-te e te concedo que você é o melhor. Na verdade é um bom cavaleiro, mas não até onde acreditava. Quem não tenha visto nosso combate e conheça ambos, não acreditará que você, só com suas armas, matou-me em batalha. Porém, se eu der testemunho, ante minha gente e em minha tenda mesmo, que me derrotou com suas armas, minha palavra será o suficiente. Sua honra crescerá tanto que jamais cavaleiro a deixou maior. Pensa: se houver algum senhor o qual tenha feito benefício, ou algum serviço, do qual não lhe tenha recompensado; envie-me a ele, eu irei de sua parte. Contarei como me venceu com suas armas e entregar-me-ei à ele na qualidade de prisioneiro para que faça comigo quanto lhe pareça.
    —Maldito seja quem procura algo melhor! —disse ele—. Sabe aonde irá você? A este castelo, e dirá à formosa, que é minha amiga, que em toda sua vida não lhe fará mal algum e ficará total e completamente a sua mercê.
    E ele responde:
    —Mate-me! Porque também ela me mataria, já que nada deseja tanto como minha desonra e minha dor. Tomei parte na morte de seu pai, lhe fui tão danoso, que neste ano matei e prendi seus cavaleiros. Caso me enviasse à ela, má prisão me daria e não poderia me fazer nada pior. Mas se tiver algum outro amigo, ou alguma outra amiga, que não tenha desejos de me fazer malefício, envie-me à algum deles, pois esta, se me tivesse em seu poder, sem dúvida alguma me tiraria a vida.
    (VS. 2288-2373)
    Então lhe diz que vá à um castelo, a morada de um mestre; entretanto, do mestre não lhe diz o nome. Não há no mundo pedreiro que melhor descrevesse a construção do castelo como ele o fez. Falou detalhadamente do rio, da ponte, das torres menores, da torre maior e dos muros exteriores que o circundam, até que o outro se deu conta, inteirou-se bem, de que lhe queria enviar prisioneiro ao lugar onde mais odiava; e disse:
    —Não há salvação para mim onde você me envia. Valha-me Deus! Quer colocar-me em maus caminhos, em mãos más; pois, nesta guerra matei um de seus irmãos. Doce amigo, mate-me você antes de me obrigar a ir até ele. Se ali me empurrar, ali será minha morte.
    Ele contestou dizendo:
    —Irá, pois, à prisão do rei Artur, saudará ao rei e lhe dirá de minha parte que te ofereça àquela golpeada pelo mordomo Keu, porque me sorriu; à ela entregará como prisioneiro e lhe dirá, se te agradar, que oxalá Deus não permita que eu mora até que a tenha vingado.
    Ele responde que fará bem e com muito prazer este serviço. Então, o cavaleiro vencedor volta ao castelo. O outro encaminha-se à prisão e faz que levem seu estandarte. A hoste levanta o acampamento, de modo que ali não ficou nem moreno, nem loiro.
    Todos do castelo saem para receber ao que volta, mas têm um grande desgosto porque não cortou a cabeça do cavaleiro vencido e não a traz. Desmontam-no com grande alegria, desarmam-no em um degrau e todos lhe dizem:
    —Por que não trouxe Anguinguerón e por que não lhe cortou a cabeça?
    Ele responde:
    —A minha fé, senhores, porque acredito que não tivesse procedido bem. Morreu-lhe para seus parentes. Eu não poderia dar segurança porque o teriam matado para meu pesar. Muito pouco bem haveria em mim, senão tivesse misericórdia quando o submeti. E sabem qual foi esta clemência? Se mantiver sua palavra, constituir-se-á prisioneiro do rei Artur.
    Chega então a donzela manifestando grande alegria. Leva-o à sua câmara para repousar e descansar. De modo algum lhe veda que a abrace e a beije. Em lugar de comer e de beber; brincam, beijam-se, abraçam-se e conversam amavelmente.
    Clamadeu tem néscias ilusões, porque imagina que imediatamente lhe ofereceram o castelo sem defesa; na metade do caminho encontrou um pajem, chorando amargamente, que lhe contou as novas do mordomo Anguinguerón.
    —Em nome de Deus, senhor, as coisas vão mal agora —disse o pajem, que tirava as duas mãos dos cabelos.
    Clamadeu pergunta:
    —Por que?
    (vs. 2374-2461)
    —Senhor, a minha fé —disse o pajem—, seu mordomo foi vencido por armas e agora vai constituir-se prisioneiro do rei Artur.
    —Quem fez isto, pajem? Diga-me, como pôde acontecer? De onde pode vir um cavaleiro capaz de arredar com as armas um mestre tão valente?
    E ele responde:
    —Amável senhor, não sei quem foi o cavaleiro; o único que me consta é o que vi sair do Belrepeire armado com umas armas vermelhas.
    —E você, pajem, o que me aconselha? —Diz àquele, que está a ponto de perder o juízo.
    —O que, senhor? Que volte, porque se continuar não conseguirá nada.
    Quando estavam nestas palavras, chegou um cavaleiro meio grisalho, que tinha sido professor de Clamadeu, e disse:
    —Pajem, não é acertado o que diz. Aqui convém um conselho mais sensato e melhor do que o teu; se te acreditasse, obraria nesciamente, pois em minha opinião deve seguir adiante.
    E dirigindo-se a Clamadeu, acrescenta:
    —Senhor, quer saber como poderá fazer com o cavaleiro e com o castelo? Dir-lhe-ei muito bem e claro. Será muito fácil fazer. Dentro dos muros de Belrepeire não há o que beber, nem o que comer e os cavaleiros estão debilitados. Nós estamos fortes e sãos, não temos nem sede, nem fome e poderemos suportar um grande combate se os de dentro ousarem vir misturarem-se conosco lá fora. Enviaremos vinte cavaleiros diante da porta como chamariz. O cavaleiro que em Belrepeire se deleita com sua formosa amiga, quererá fazer cavalaria; e como não poderá resisti-lo, será preso ou morrerá, pois, pouca ajuda lhe prestarão os outros, que estão tão débeis. Os vinte vão enganá-los até darmos em cima deles improvisadamente por este vale e os rodeemos pelos flancos.
    —Aprovo com minha fé o que diz.—responde Clamadeu— Temos aqui quatrocentos cavaleiros armados escolhidos e mil peões bem preparados: agarraremos todos como se fosse gente morta.
    Clamadeu enviou diante da porta vinte cavaleiros que desdobravam ao vento os emblemas e as bandeiras, que eram de muitas categorias. Assim que os do castelo os viram, abriram as portas de par em par, porque o quis assim o moço, quem, a vista de todos, saiu para mesclar-se com os cavaleiros. Como audaz, forte e saudável, ataca todos conjuntamente que são alcançados por ele, não lhe parece que seja acanhado nas armas. Muito próspero foi aquele dia: com a lança tira várias tripas, de um atravessa o tórax; outro, o peito; um rompe o braço; outro, a clavícula; mata um e aquele aleija; a este derruba e aquele prende. Entrega os prisioneiros e os cavalos aos que os necessitam.
    Presenciam a grande batalha os o que haviam atravessado o vale, eram quatrocentos homens armados, além dos peões que os acompanhavam. Os outros mantinham-se muito perto da porta, que estava aberta. Os de fora, ao ver à míngua sua gente, aleijada e morta, vão em desordem e desconcerto para a porta. Os defensores estavam bem formados, apertados em sua porta receberam com bravura. Todavia, eram poucos, estavam débeis, não puderam resistir aos outros reforçados com os peões, que os tinham seguido, e tiveram que retirar-se de seu castelo.
    (VS. 2462-2550)
    Em cima da porta havia arqueiros que disparavam sobre a grande multidão. A massa estava muito enaltecida e ávida de entrar impetuosamente no castelo, até que um grupo consegue introduzir-se com vigor e com força caindo no chão. Os de dentro derrubam a porta sobre eles, matando e aniquilando todos os que alcançaram na queda. Nada podia ter visto Clamadeu que mais lhe doesse. Embaixo da porta morreu muita gente sua, deixando-o pra fora, não há outro remédio senão ficar inativo. Um assalto em tão duras condições seria trabalho em vão. O professor dele, que o aconselha, diz-lhe:
    —Senhor, não é coisa surpreendente que para um só sobrevenha desgraças. A todos vai o mal ou o bem, segundo ao Nosso Senhor agrada e convém. Em resolução perde, porém, não há santo que não tenha sua oitava. A tempestade caiu sobre você, os seus estão desfeitos e os de dentro ganharam. Todavia, esteja bem certo de que perderão. Arranque-me os dois olhos, caso permaneça aqui dentro três dias, seu será o castelo e a torre, porque se entregarão a sua mercê. Se puder ficar aqui hoje e amanhã, o castelo ficará em suas mãos, inclusive aquela que tanto lhe rechaçou, pedirá por Deus que digne tomá-la.
    Então os que haviam trazido tendas e bandeiras montam, os outros se acomodam e acampam como podem. Os do castelo desarmaram os cavaleiros que tinham feito prisioneiros, mas não os meteram em torres, nem os ataram aos ferros, só porque lhes juraram lealdade como cavaleiros; considerar-se-iam detentos com lealdade; não lhes fariam nenhum dano, e assim ficaram dentro do recinto.
    Naquele mesmo dia um vendaval impeliu pelo mar um navio que levava um grande carregamento de trigo e estava cheio de outras provisões. Deus quis que, inteiro e incólume, atracasse diante do castelo. Seus defensores, assim que o viram, enviaram para averiguar quem eram os do navio e o que buscavam. Quando os do castelo baixaram, foram ao navio e perguntaram quem eram, de onde vinham e aonde foram, responderam-lhes:
    —Somos mercadores e levamos provisões para vender. Temos pão, vinho, carne-seca e muitos bois e porcos que, se for necessário, podem matá-los.
    E os do castelo respondem:
    —Bendito seja Deus, que deu força ao vento para que aqui lhes trouxessem! Sejam bem vindos e desembarquem, que tudo lhes compraremos tão caro quanto ousam vendê-lo. Venham em seguida pegar seu dinheiro, não deixarão de receber, de contar os lingotes de ouro e de prata que lhes daremos em troca do trigo; pelo vinho, pela carne, receberão um carro carregado de riquezas, e ainda mais, se for necessário.
    (VS. 2551-2644)
    Agora sim fizeram um bom negócio os que compram e vendem; descarregam o navio e levam tudo para confortar aos sitiados. Quando os do castelo viram aos que levavam as provisões, já podem imaginar a grande alegria que tiveram; e com grande celeridade prepararam a comida. Agora já pode ficar Clamadeu, tanto tempo quanto queira, esperando fora, porque os de dentro têm bois, porcos, toucinho em grande quantidade, e trigo para toda a estação. Os cozinheiros não estão ociosos e acendem o fogo na cozinha para cozer a comida. Agora já pode deleitar o moço ao lado de seu amiga com toda tranqüilidade; ela o abraça e ele a beija, um se regozija com o outro. A sala já não está silenciosa, antes bem há nela alegria e grande rumor. Todos estão contentes pela comida, que tão desejada; os cozinheiros tinham tanta pressa, que fazem sentar às mesas aos que tanto o necessitavam. Depois de comer, levantam-se satisfeitos.
    Muito se indignou Clamadeu e sua gente quando souberam a nova do bem-estar que tinham os de dentro, dizem que não tinha outra solução senão levantar acampamento, porque prolonga-lo seria em vão, já que o castelo não pode ser reduzido por fome. Clamadeu, raivoso, envia ao castelo uma mensagem sem aprovação, nem conselho de ninguém. Comunica o cavaleiro vermelho que até o meio-dia do dia seguinte o poderá encontrar sozinho na planície para combater com ele. Quando a donzela ouviu o anúncio a seu amigo, ficou dolorida e triste. Ele por sua vez responde que, aconteça o que acontecer, já que o desafiou, irá à batalha; aumentando e acrescentando muito a dor da donzela, embora, por muito que ela se lamente, eu acredito que ele não renunciará. Todos e todas lhe rogam muito que não vá combater com aquele que nunca nenhum cavaleiro superou em batalha. Mas o moço replica:
    —Senhores, farão muito melhor se se calarem, porque por nada do mundo abandonaria este combate.
    Assim responde com suas palavras. Já não se atrevem a falar mais; vão deitar se e dormem até a manhã seguinte, ao sair o sol; todavia estão muito preocupados com seu senhor, a quem não sabem como implorar para fazê-lo desistir.
    De noite sua amiga rogou muito para que não fosse à batalha e que ficasse em paz, pois, já não tinham que se preocupar com Clamadeu, nem com sua gente. De nada adianta tudo isto. Entretanto, era estranha a maravilha que ele encontrava, uma grande doçura nas carícias dela, pois, a cada palavra o beijava tão doce e brandamente que lhe colocava a chave do amor na fechadura do coração. Mas, apesar disso, não obteve em modo algum que desistisse de ir à batalha, antes bem reclamou suas armas, que as guardava e as trouxe o mais rápido que pôde. Enquanto se armava houve grande duelo, pois a todas e a todos pesava; e ele, recomendando a todos e a todas ao Rei dos reis, montou em seu cavalo norueguês, que haviam lhe trazido, e não se entreteve muito com todos eles. Assim que partiu, deixou-os com grande dor.
    (VS. 2645-2742)
    Quando Clamadeu viu chegar o que devia combater com ele, teve o néscio convencimento de que muito rapidamente esvaziaria a sela da montaria. No campo plano e formoso, só estavam eles dois, pois Clamadeu tinha licenciado e feito partir toda sua gente. Ambos tinham a lança apoiada diante da sela, na bainha, e puseram-se a correr um para o outro sem desafiar-se e sem grandes raciocínios. Ambos levavam lança de freio, robusta e manejável, com ferro aguçado; os cavalos velozes e os cavaleiros fortes odiavam-se de morte. Trombaram-se tão bruscos que as lâminas dos escudos rangeram, as lanças quebraram-se, um derrubou o outro. Todavia, imediatamente, ficaram em pé, imediatamente atacaram-se com as espadas com igual brio e durante muito tempo. Explicaria como tudo ocorreu se quisesse me entreter nisso, mas não vale a pena, igual está dito em uma palavra como em vinte palavras: Ao final, Clamadeu teve que pedir mercê, com muito pesar. Amoldou-se a todos os seus desejos, como tinha feito seu mordomo, tampouco não quis constituir-se prisioneiro no Belrepeire, cujo mordomo se negou. Nem por todo o império de Roma ia ao mestre que possuía o castelo bem construído; porém, prometeu que aceitaria a prisão do rei Artur e que diria de sua parte à donzela que ultrajou Keu ao pegá-la, que desejava vinga-la, pesasse a quem quer que fosse, se Deus lhe desse forças para isso. Depois o fez prometer que, antes que do amanhecer retornariam, sãos e salvos, todos os detentos em suas torres; que enquanto ele estivesse com vida, afugentaria, se pudesse, qualquer hoste que sitiasse o castelo; que a donzela jamais seria incomodada, nem por seus vassalos, nem por ele.
    E assim Clamadeu se foi à sua terra. Ao chegar ordenou que todos os prisioneiros fossem tirados da prisão e fossem embora em completa liberdade. Assim que disse tais palavras, suas ordens foram cumpridas. Eis aqui os prisioneiros soltos, que se vão imediatamente com todas as suas guarnições, não lhes reteve nada. Por sua parte, Clamadeu empreende o caminho completamente sozinho. Naquela época era costume, como encontramos escrito em livros, que os cavaleiros se constituiriam prisioneiros com a mesma equipe que levava na batalha na qual tinham sido vencidos, sem tirar, nem ficar nada mais. Deste modo, Clamadeu empreende a marcha atrás de Anguinguerón, indo para Dinasdarón, onde o rei devia ser cortês.
    Por outro lado, havia grande alegria no castelo, aonde retornaram os cavaleiros que tanto tempo estiveram em dura prisão. Toda a sala e as moradas dos cavaleiros ressonam de alegria; nas capelas e nos monastérios tocavam todos os sinos de júbilo. Não havia monge, nem monja, que não desse graças a Nosso Senhor. Pelas ruas e pelos lugares iam todas e todos dançando. Muito gozo existe agora no castelo, pois ninguém os assalta, nem guerreia.
    (VS. 2743-2820)
    Enquanto isso, Anguinguerón vai seguindo seu caminho e atrás dele, Clamadeu, que dormiu três noites nos mesmos albergues nos quais aquele tinha parado. Foi-o seguindo pelos albergues até chegar ao Dinasdarón, no Gales, onde o rei Artur reunia-se em suas salas uma corte muito luzidia. Vêem o Clamadeu, que chega completamente armado, como era sua obrigação; e o reconheceu Anguinguerón, o qual havia já completo, contado e referido sua mensagem a noite anterior. Quando chegou, tinha sido retido na corte para formar parte da mesma e do conselho. Viu seu senhor coberto de sangue vermelho, apesar disso, o reconheceu e disse imediatamente:
    —Senhores, senhores, vejam que maravilha! O moço das armas vermelhas envia aqui, me acreditem, aquele cavaleiro que vêem. Estou completamente seguro de que o venceu, porque está talhado de sangue. Daqui distingo bem o sangue e a ele mesmo também, que é meu senhor e eu sou seu vassalo. Chama-se Clamadeu das ilhas, eu imaginava que seria tal, que não haveria melhor cavaleiro no império de Roma, mas também cai a desgraça sobre os mestres.
    Enquanto Anguinguerón falava assim. Clamadeu chegou e um correu para o outro ao se encontrarem na corte.
    Era um dia de Pentecostes. A Rainha estava sentada ao lado do Rei Artur, à cabeceira da mesa. Havia muitos condes, reis e duques; rainhas e condessas; damas e cavaleiros acabavam de chegar do monastério depois de ouvirem todas as missas. Keu entrou por meio da sala, não levava manto; na mão direita empunhava um bastão; na cabeça um chapéu de feltro e cabelo loiro. Não havia no mundo cavaleiro mais formoso, levava o cabelo amarrado; todavia, sua beleza e sua galhardia ficavam empanadas por suas ruins jactâncias. Sua capa era de um rico tecido, tinta de grão e bem colorida, rodeada com um cinturão trabalhado, cuja fivela e todos seus adornos eram de ouro: lembro-me bem, porque a história assim o testemunha. Todo mundo se retira para deixa-lo passar quando entra por em meio da sala; todos temiam suas ruins jactâncias e sua má língua, por isso, deixam livre o caminho. Não é sensato o que não teme as ruindades muito descobertas, sejam em brincadeira, ou sejam verdadeiras. Todos os que ali estavam, temiam suas ruins jactâncias, e ninguém disse nada. Acima de tudo o mundo se dirigiu aonde estava o rei e lhe disse:
    —Senhor; agora poderiam comer, se quiser.
    —Keu —disse o rei—, deixe-me tranqüilo, que, pelos olhos de minha cara, em festa tão solene, embora esteja reunida toda minha corte, não comerei até que chegue aqui uma grande nova.
    Isto estava dizendo, quando entrou na corte Clamadeu, que, armado como era seu dever, vinha a constituir-se prisioneiro, e disse:
    (VS. 2821-2924)
    —Deus salve e abençoe ao melhor rei que há com vida. Ao mais generoso e ao mais galhardo, como o testemunham todos quantos estão inteirados das boas obras que tem feito. Escute-me agora, bom senhor, pois devo dizer minha mensagem. Embora me pese, devo reconhecer que me envia aqui um cavaleiro que me venceu. Por ordem dele, preciso entregar-me prisioneiro a você; não posso evitá-lo. E se alguém me perguntasse como se chama, responderia que não, entretanto, posso notificar que suas armas são vermelhas e diz que você as deu.
    —Amigo, que Nosso Senhor te valha —disse o rei—; diga-me em verdade: conserva seu vigor, está livre, contente e são.
    —Amável senhor, esteja completamente seguro —responde Clamadeu—, como o mais valente cavaleiro que jamais conheci. E me disse que falasse com a donzela que lhe sorriu, a qual Keu fez tal ultraje que lhe deu uma bofetada; mas, diz que a vingará, se Deus lhe dá poder para isso.
    O bufão, para ouvir estas palavras, saltou de alegria e gritou:
    —Senhor rei, Deus me benza; a bofetada será bem vingada, agora não o levo na brincadeira; não poderá evitar que rompa o braço direito e lhe desloque a clavícula.
    Keu, que ouve estas palavras, julga-as uma idiotice; saibam que não se absteve de lhe maltratar por covardia, mas sim, por respeito ao rei e por vergonha. O rei moveu a cabeça e disse ao Keu:
    —Muito me dói que não esteja aqui comigo. Por sua néscia língua e por sua culpa se foi, o que me pesa muito.
    Depois destas palavras, a uma ordem do rei, se levantaram Girflet e seu senhor Yvain, que melhora a todos os que acompanha. O rei lhes disse que se fizessem cargo daquele cavaleiro e o conduzissem às câmaras onde se entretêm as donzelas da rainha, e o cavaleiro se inclina ante eles. Os que tinham recebido o encargo do rei, conduziram-no àquelas câmaras; mostraram a donzela, contando quão novas tanto desejava ouvir; pois, ainda se doía da afronta que fez em sua bochecha. Já estava curada da bofetada que tinha recebido, mas não estava esquecida, nem passada a afronta, é muito ruim quem esquece a afronta e o ultraje que recebeu. No homem vigoroso e forte a dor passa e a afronta dura, mas no ruim morre e se esfria.
    Clamadeu cumpriu sua mensagem. Logo, durante toda sua vida, o rei o reteve em sua corte e em seu exército.
    Aquele que disputara a terra e a donzela Blancheflor, sua amiga formosa—, ao lado dela joga e deleita-se. Toda a terra seria livremente dele, se pudesse evitar que seu coração estivesse em outro local. Agora mais se lembra de outra coisa, porque tem no coração a sua mãe, que viu cair desvanecida, e tem mais desejo de ir vê-la que de nada mais. Não se atreve a despedir-se de sua amiga, porque ela o veda, proibe e ordenou a toda sua gente que lhe peça muito que fique. Mas nada conseguem com o que dizem, salvo que ele faça a promessa que, se encontrar a sua mãe viva, trará consigo e após, podem estar seguros de que ficará possuindo a terra. Se estiver morta, fará o mesmo.
    (VS. 2925-3016)
    Assim segue caminho prometendo voltar. Deixa a sua gentil amiga muito triste e dolorida, e também a outros. Quando saía da vila segue-o brava procissão, como se fora o dia da Ascensão ou um domingo, pois foram todos os monges revestidos de capas de seda e todas as monjas veladas. E aqueles e estas diziam:
    —Senhor, que nos tirou do desterro, ajudando-nos a retornar para nossas casas, não é de admirar nossa dor, porque tão logo quer nos abandonar. Justo é que nossa dor seja a maior que possa existir.
    E ele lhes diz:
    —Não devem continuar chorando mais. Eu voltarei, se Deus me permitir, e entristecer-se não serve para nada. Não crêem que esteja bem, que vá ver minha mãe, a qual deixei sozinha no bosque chamado Erma Floresta? Voltarei, tanto se ela estiver viva como se não, não deixarei de fazê-lo de modo algum. Se estiver viva, farei dela uma monja velada em sua igreja; e se estiver morta, celebrarão festejando por sua alma, a fim de que Deus e São Abraham a alojem entre as almas pias. Senhores monges e vocês, formosas damas, isso não lhes deve pesar, porque eu lhes farei muito bem em benefício de sua alma, se Deus me permitir que volte.
    Os monges, as monjas e todos outros voltaram; e ele partiu com a lança na bainha, completamente armado, como chegou.
    NO CASTELO DO GRAAL

    Durante todo o dia seguiu sua viagem sem encontrar criatura terrena, nem cristão, nem cristã que lhe pudesse indicar o caminho. Não cessava de pedir a Nosso Senhor, o supremo Pai, que lhe concedesse encontrar a sua mãe cheia de vida e de saúde, se esta fosse sua vontade. Ainda durava esta prece quando viu, ao pé de um outeiro, um rio de água rápida e profunda, e sem atrever-se entrar nele, disse:
    —Ah, Senhor todo-poderoso! Se pudesse atravessar este rio, estou convencido de que do outro lado encontraria a minha mãe, se estiver viva.
    Vai seguindo a margem até chegar numa rocha que tocava o rio, impedindo-o de ir mais adiante. Então viu que descia pelo rio um barco que vinha de cima, no qual iam dois homens. Para e espera, pois acredita que seguiriam navegando até chegar onde estava. Mas, detiveram-se no meio do rio e ficaram quietos, porque tinham ancorado. Quem estava adiante pescava com vara, levantando seu anzol com uma pequena pesca. Como não sabia o que fazer, nem para onde caminhar, saúda-os e lhes pergunta:
    —Digam-me, senhores, há neste rio passagem ou ponte?
    E o que pesca lhe responde:
    (VS. 3017-3106)
    —Não, irmão, a minha fé. E acredito não há outro barco maior que este no qual estamos, que não poderia levar nem a cinco homens. Em vinte léguas para cima e para baixo não se pode atravessar a cavalo, pois, não há balsa, ponte, nem passagem.
    — Indique-me, pois —diz ele—, por Deus, onde poderia achar albergue.
    E lhe responde:
    — Imagino que terá necessidade disto e de outras coisas. Eu lhe albergarei esta noite. Suba por esta quebrada que há na rocha, e quando chegar acima verá num vale, a mansão em que moro, perto do rio e perto do bosque.
    Ele vai imediatamente acima, até que chegou à cúpula da colina, olhou tudo ao redor dele; não viu a não ser céu e terra; e disse:
    — O que vim buscar aqui? Bobeiras e necessidades. Que Deus envergonhe hoje, a quem aqui me enviou! Encaminhou-me tão bem, dizendo que encontraria uma mansão assim que chegasse aqui em cima. Pescador que tal me disse: se disse isso com má intenção, cometeu uma grande deslealdade.
    Então viu a frente, num vale, que aparecia no topo uma torre. Embora fosse até Beirut não encontraria outra tão formosa, nem tão bem fundada. Era quadrada, de rocha granítica, tinha dos lados duas torres pequenas. A sala estava diante da torre e as galerias diante da sala.
    O moço desce para aquela parte; confessa que lhe encaminhou bem o que lhe enviou ali; reconciliando-se com o pescador; já não lhe chama traidor, desleal, nem mentiroso, porque encontrou onde albergar. Assim chega à porta, frente à qual encontrou uma ponte elevada que estava jogada. Passa pela ponte e quatro pajens vão até ele; dois deles o desarmam, o terceiro leva seu cavalo para dar feno e aveia; o quarto o cobre com um manto de escarlate, fresco e novo; logo introduziram-no nas galerias. Saiba que, por muito que buscasse, não encontraria, nem veria outras tão formosas até o Limoges. O moço ficou nas galerias até que chegou o momento de apresentar-se ao senhor, que enviou dois servidores para ele.
    Com eles foi à sala. Era quadrada e tinha tanto de comprimento como de largura. No meio da sala viu sentado em um leito, um agradável mestre de cabelo grisalho, com a cabeça coberta por um chapéu de pele de cebellinas negras como as amoras, com véus de púrpura por cima, e assim era toda sua roupa. Apoiava-se no cotovelo. Diante dele ardia claramente um grande fogo de lenha seca, colocado entre quatro colunas. Quatrocentos homens sentaram-se comodamente em torno do fogo e todos tinham lugar suficiente. As colunas eram muito fortes, pois sustentavam uma chaminé alta e larga de bronze maciço.
    Os que conduziam o hóspede, estavam um de cada lado. Apresentaram-se ante seu senhor, o qual, ao vê-lo chegar, saudou-o e lhe disse:
    (VS. 3107-3195)
    —Amigo, não se incomode de não me levantar para recebe-lo, pois, não posso levantar.
    —Por Deus, senhor, nem diga isto —disse ele—; não me incomoda de modo algum, pelo gozo e a saúde que Deus me dê.
    O mestre é tão solícito com ele que se desdobra tudo o que pode e lhe diz:
    —Amigo, aproxime-se. Não se consterne por mim e sente-se sem reparos aqui a meu lado, eu lhe ordeno.
    O moço se senta a seu lado e o mestre lhe diz:
    —Amigo, de que parte veio hoje?
    - Senhor —responde—, esta manhã saí de um lugar que se chama Belrepeire.
    - Valha-me Deus! —disse o mestre — ,fez hoje muito longa jornada. Saíram antes de que o vigia tivesse anunciado a alvorada esta manhã?
    —Eu inicie a caminhada na primeira hora do dia —diz o moço—, asseguro-lhe.
    Enquanto assim falava, pela porta da mansão entra um pajem que leva no pescoço pendurada uma espada, entregando ao rico homem. Este a desembainhou até a metade e viu onde tinha sido feita, pois na espada estava escrito. Viu também que era de bom aço, que unicamente se poderia romper em um só transe que todo mundo ignorava, salvo aquele que a tinha forjado e contemplado. O pajem que a trouxe disse:
    — Senhor, a loira donzela, sua formosa sobrinha, envia este presente; jamais viram nada mais belo tão longa e larga é. Dêem a quem lhes agrade, mas minha senhora estaria muito contente se, ali onde fora parar, estivesse bem empregada. Quem forjou esta espada só fez três, e morrerá sem forjar nenhuma outra depois desta.
    Naquele momento, o senhor colocou a espada, pelo cinturão, que valia um grande tesouro, àquele que ali era forasteiro. O pomo da espada era do melhor ouro da Arábia ou da Grécia, e a bainha da arma de orifrés de Veneza. Tão ricamente adornada o senhor a deu ao moço dizendo:
    —Bom irmão, esta espada foi reservada e destinada, quero que a possua; mas sem cerimônia e desembainhada.
    Agradece-lhe e a rodeia, sem estreitá-la muito, logo a saca nua da bainha de arma; depois de olhá-la um pouco, volta a meter na bainha de arma. Saibam que estava muito bem no flanco e melhor na mão; parecia que, quando precisasse servir-se dela, ataria-o como um barão. Viu atrás do fogo, que ardia claramente, uns pajens, encomendou a espada ao que guardava suas armas, o qual fez cargo dela. Logo voltou a sentar ao lado do senhor, que em tudo o fazia grande honra.
    (VS. 3196-3292)
    Havia ali dentro uma iluminação tão grande como poderiam procurar as candeias num albergue. Enquanto falavam diversas coisas, de uma câmara chegou um pajem levando uma lança branca empunhada pela metade. Passou entre o fogo e os que estavam sentados no leito. Todos os que estavam ali viam a lança branca e o ferro branco, uma gota de sangue saía do extremo do ferro da lança, até a mão do pajem emanava aquela gota vermelha. O moço que aquela noite tinha chegado ali, vê este prodígio, mas se abstém de perguntar como ocorreu tal coisa, porque se lembrava do conselho daquele que o fez cavaleiro, disse e ensinou que se guardasse de falar muito. Teme que, se o perguntar, considerará rusticidade; por isso, não perguntou nada.
    Enquanto isso, chegaram outros dois pajens levando nas mãos candelabros de ouro fino trabalhado. Os pajens que levavam os candelabros eram muito formosos. Em cada candelabro ardiam pelo menos dez candeias. Uma donzela, formosa, gentil e bem embelezada, que vinha com os pajens, sustentava entre suas duas mãos um Graal. Quando ali entrou com o Graal que levava, derramou-se uma claridade tão grande, que as candeias perderam seu brilho, como ocorre às estrelas quando sai o sol, ou a lua. Depois desta, veio outra que levava um prato de prata. O Graal, que ia diante, era de fino ouro puro; no Graal havia pedras preciosas de diferentes classes, das mais ricas e das mais caras que haja em mar e terra; as do Graal, sem dúvida alguma, superavam a todas as demais pedras.
    Do mesmo modo que passou a lança, passaram diante do leito e de uma câmara entraram em outra. O moço os viu passar, não ousou em modo algum perguntar a quem servia o Graal, pois sempre conservava em seu coração as palavras do sensato mestre. Temo eu que isso lhe seja prejudicial, porque ouvi dizer que, às vezes, a gente tanto pode calar muito como falar muito. Tanto isso lhe traz bem, como conduz mal —eu não sei exatamente— , nada pergunta.
    O senhor ordena aos pajens dar a água e pôr as toalhas. Fazem-no os que deviam e costumavam fazê-lo. O senhor e o moço lavaram as mãos com água morna. Dois pajens trouxeram uma larga mesa de marfim, a história testemunha que era toda de uma peça. Mantiveram-na um momento diante de seu senhor e do moço, até que chegaram outros dois pajens que traziam dois cavaletes feitos de madeira, com duas virtudes muito notáveis: suas peças duram sempre, porque são de ébano, uma madeira que ninguém espera que apodreça, nem que queime, já que não há medo que ocorra nenhuma destas duas coisas. A mesa foi montada sobre estes cavaletes, e colocaram a toalha. Mas o que diria da toalha? Nem legado, nem cardeal, nem papa comeram nunca em cima de uma tão branca. O primeiro prato foi uma perna de cervo com azeite e pimenta picante. Não lhes faltou vinho claro, de gosto suave, bebido em taças de ouro. Um pajem, que tinha pego a perna de cervo em pimenta e a tinha posto no prato de prata, destrinchou-a diante deles e lhes ofereceu aos pedaços em cima de um bolo muito cabal.
    (VS. 3293-3386)
    Enquanto isso o Graal voltou a passar diante deles, e o moço não perguntou a quem se servia com o Graal. Abstinha-se disso pelo mestre, que docemente o repreendeu por falar muito, o tem sempre em seu coração e o recorda. Mas se cala mais do que lhe convém, pois a cada prato servido, vê passar uma vez mais diante dele o Graal completamente descoberto, e não sabe quem se serve com ele, embora desejasse sabê-lo. Terá ocasião de perguntar, diz para si mesmo, antes de partir, a um dos pajens da corte. Esperará a manhã seguinte, quando se despedir do senhor e de todos os demais do exército. Assim diferiu a coisa ocupando-se em beber e comer.
    Na mesa não se regulam os vinhos e os manjares, que são gostosos e agradáveis. A comida é boa e saborosa. Naquela noite, ao mestre e ao moço que estava com ele, serviram mantimentos próprios de reis, condes e imperadores. Depois de ter comido, os dois conversaram durante a sobremesa. Os pajens prepararam as camas e as frutas para a noite, das quais havia muitas e de grande preço: tâmaras, figos, nozes, espiga cozida e outras amadurecidas. Depois tomaram várias bebidas: pigmento sem mel nem pimenta, velho vinho de amoras e xarope claro. O moço se admira muito de tudo porque desconhecia. O mestre lhe disse:
    —Bom amigo, já é hora de deitar-se. Se não o desagradar, irei dormir na minha câmara; e você, quando tiver vontade, deite-se aqui fora. Não tenho nenhum poder sobre meu corpo e será preciso que me levem.
    Quatro decididos e fortes servidores naquele momento saíam da câmara, agarraram nas quatro pontas da colcha que estava estendida sobre o leito no qual se sentava o mestre e levaram-no onde deviam. Com o moço ficaram outros pajens que o serviram e lhe ajudaram assim que necessitou. Quando quis, descalçaram-no, despiram-no, deitaram-no em brancos e finos lençóis de linho.
    Dormiu até a manhã seguinte, quando iniciou a alvorada do dia e todo exército se levantou; mas quando ele olhou a seu redor não viu por ali ninguém, e, embora lhe desagradasse, teve que levantar sozinho. Quando vê que deve fazê-lo por si mesmo, levanta-se como melhor sabe, calça-se sem esperar ajuda; logo vai procurar suas armas e as encontra ao pé de uma escada, onde as tinham deixado. Quando estava bem armado seus membros, foi às portas das câmaras que de noite havia visto abertas, mas em vão. Vai de um local a outro, encontra-as muito bem fechadas; chama, golpeia e empurra muito; ninguém lhe abre, nem lhe responde palavra. Quando chamou o bastante, vai à porta da sala, encontra-a aberta e desce todos os degraus até chegar embaixo, onde encontra seu cavalo selado, vê sua lança e seu escudo apoiados em um muro. Então monta e vai por toda parte procurando, mas não encontra homem vivo, nem vê escudeiro, nem pajem. Vai diretamente para a porta e encontra a ponte caída, pois o tinham deixado assim para que nada o detivesse quando chegasse nela e pudesse passar sem obstáculo. Parece que todos os pajens devem ter ido, pela ponte que vê jogada, ao bosque a fim de reconhecer seus laços e suas armadilhas. Não quer ficar mais ali e propõe ir atrás deles para ver se algum lhe diz por que sangra a lança, se pode ser por alguma pena, e aonde se leva o Graal.
    (VS. 3387-3470)
    Sai então pelo da porta, e antes de que tivesse passado a ponte de tudo, sentiu que os pés de seu cavalo se elevavam muito alto, e que dava um salto tão grande que, se não tivesse saltado bem, maltratado tivesse ficado o cavalo e o que o montava. O moço voltou o rosto para ver o que tinha passado, e viu que tinham levantado a ponte. Chamou e ninguém lhe respondeu, aí disse:
    —Você ouça! Você que levantou a ponte! Fala-me! Onde está, que não o vejo? Aproxime-se, que o verei e perguntarei novas de outras coisas que queria saber.
    Assim perde o tempo falando em vão, porque ninguém lhe quer responder.

    COM A PRIMA

    Interna-se na floresta e vai por um atalho no qual encontra rastros recentes de cavalos que tinham passado por ali, e diz:
    — Acredito que por aqui passaram quem procuro.
    Precipita-se bosque adentro seguindo aqueles rastros, até que improvisadamente vê uma donzela ao pé de um carvalho que chora, grita desesperada como uma infeliz desventurada. Vai dizendo:
    — Desgraçada de mim, desafortunada! Em que vil hora nasci! Maldita seja a hora na qual fui consumada e a que nasci. Até agora jamais me ocorrera nada que tanto me doesse. Não devia ter matado meu amigo, se Deus o tivesse querido, porque muito melhor tivesse obrado se ele estivesse vivo e eu morta. A morte, que tanto me desgosta, por que tomou antes sua alma que a minha? Quando vejo morto o ser que mais queria, do que me serve a vida? Sem ele de nada me serve a vida nem o corpo. Morte, tira fora minha alma! Que seja servidora e companheira da sua, digna-se aceitá-la.
    Deste modo fazia grande duelo sobre um cavaleiro que tinha em seus braços com a cabeça no atalho. O moço, assim que a viu, não se deteve até chegar a ela. Quando estava perto a saudou, e ela a ele com a cabeça baixa e sem deixar por isso seu duelo. O moço lhe perguntou:
    — Donzela, quem matou este cavaleiro que jaz sobre você?
    —Gentil senhor, um cavaleiro o matou esta manhã —respondeu a donzela—. Mas me surpreende extraordinariamente uma coisa que observo: que se poderia, assim Deus me guarde, cavalgar quarenta léguas, assim o afirmam, diretamente no sentido em que você vêm, sem encontrar nem um só albergue que fora bom, digno e são. Seu cavalo não teria os flancos lustrosos, nem o cabelo alisado se alguém não o tivesse lavado. Se não tivesse alimentado e preparado um jazigo de aveia e de feno, não teria o ventre tão cheio, nem o cabelo tão liso. E quanto a você mesmo, parece-me que esta noite estive folgado descansando.
    (VS. 3471-3558)
    —A minha fé —diz ele—, formosa, ontem à noite desfrutei da maior folga possível, e se nota, é natural. Se alguém, aqui onde estamos, gritasse agora fortemente, poder-se-ia ouvir com toda claridade ali onde dormi ontem a noite. Você não conhece, nem percorreu bem este país, pois sem discussão alguma eu obtive o melhor albergue que jamais tive.
    —Ah, senhor! Vocês dormiram na casa do rico Rei Pescador.
    —Donzela, por Salvador! Eu não sei se foi pescador ou rei, mas é muito discreto e cortês. Nada mais posso dizer dele, salvo que ontem, ao entardecer, encontrei dois homens que navegavam placidamente em um barco. Um governava e o outro pescava com anzol. Este, ontem tarde, mostrou-me sua casa e albergou-me nela.
    E a donzela disse:
    —Gentil senhor, é rei! Posso lhe assegurar isso. Entretanto, em uma batalha foi ferido e aleijado sem remédio, de sorte que já não se pode valer, pois foi alcançado por um dardo entre as duas coxas, e isso ainda lhe angustia tanto que não pode montar a cavalo. Quando quer distrair-se ou tomar alguma distração, mete-se em um barco e vai pescando com o anzol; por isso se chama o Rei Pescador. Por esta razão se distrai assim, não poderia suportar, nem tolerar, nenhuma outra distração. Não pode caçar, nem entregar-se ao animal de caça. Todavia, tem montadores, arqueiros e caçadores que vão por suas florestas flechando. Por isso também, gosta de estar nesta morada aqui perto. Em todo mundo não há nenhuma mais adequada para ele, e fez tal mansão como convém a um rico rei.
    —Donzela, por minha fé que é certo o que lhe ouço dizer, porque ontem tarde me surpreendi extraordinariamente, assim que estive diante dele. Eu me mantinha um pouco afastado. Disse-me que sentasse a seu lado e que não considerasse altivez senão se levantava para me receber, porque não lhe era fácil, nem possível, e eu me sentei junto dele.
    —Realmente, fez muita grande honra ao sentar a seu lado. Diga-me agora se, quando estava sentado junto a ele, vira a lança cuja ponta sangra sem que haja nela carne nem veia.
    - Se a vi? É claro que sim, por minha fé.
    - E perguntara ao rei por que sangrava?
    - Não disse absolutamente nada, assim Deus me valha.
    - Saiba, pois, que procedera muito mal. E vira o Graal?
    - Sim, muito bem.
    - E quem o levava?
    - Uma donzela.
    - De onde vinha?
    (VS. 3559-3634)
    —De uma câmara.
    - E aonde foi?
    - Entrou em outra câmara.
    - Ia alguém diante do Graal?
    - Sim.
    —Quem?
    - Só dois pajens.
    - E o que levavam nas mãos?
    - Candelabros cheios de candeias.
    - E quem vinha depois do Graal?
    - Outra donzela.
    - E o que levava?
    —Um pequeno prato de prata.
    — Perguntara às pessoas aonde foram deste modo?
    —Tal pergunta jamais saiu de minha boca.
    —Pior muito pior, me valha Deus. Como se chama, amigo?
    E ele, que não sabia seu nome, adivinha-o e diz que se chamava Perceval, o gaulês, e não sabe dizer se era verdade ou não; mas dizia a verdade, embora não sabia. Quando a donzela o ouviu, ficou em pé ante ele e lhe disse encolerizada:
    - Seu nome mudou, bom amigo.
    - Como ?
    —Perceval, o Desventurado. Ai, Perceval infortunado, quão mal aventurado é agora por causa de tudo o que não perguntou. Porque se tivesse reparado, o bom rei, que está aleijado, tinha recuperado o domínio de seus membros e a posse de sua terra, e lhe chegariam muitos bens. Tem que saber que muitas insipidezes virão a ti e a outros. Isso já ocorreu, sabe-o bem, pelo pecado com respeito a sua mãe, que morreu pela dor que você lhe produziu. Eu o conheço melhor que você a mim, pois você não sabe quem sou; contigo me criei na casa de sua mãe, durante muito tempo: sou sua prima irmã e você é meu primo irmão. Não me causa pena a desgraça que ocorreu não indagando o que se fazia com o Graal e aonde o levavam; a morte de sua mãe, mais do que a que me causa pena este cavaleiro, amava-o e o queria muito porque me chamava sua amiga amada e me queria como franco cavaleiro leal.
    - Ah, prima! —diz Perceval—, se o que me disse é certo, diga-me como sabe.
    - Sei tão certo —responde a donzela—, que eu mesma a vi enterrarem.
    -Tenha Deus piedade de sua alma, por sua bondade —disse Perceval—. Triste história me contou. Posto que está enterrada, por que tenho que seguir procurando-a? Só ia porque queria vê-la; agora devo empreender outro caminho. Eu gostaria muito se quisesse vir comigo, porque este que jaz aqui morto asseguro-lhe, já não servirá de nada. Os mortos com os mortos e os vivos com os vivos, vamos juntos você e eu. Parece-me desnecessário ficar aqui custodiando este morto. Sigamos ao que o matou, prometo e asseguro que, se consigo alcançá-lo, ou me vencerá ou eu o vencerei.
    (VS. 3635-3726)
    E ela, que não pode mitigar a grande dor que sente no coração, responde-lhe:
    —Bom amigo, de modo algum irei com você, nem me separarei dele, até que o enterre. Se acredita-me, siga por aquele meio-fio, para lá, por aquele caminho foi o cavaleiro malvado e cruel que matou a meu doce amigo.Valha-me Deus, não disse tudo isto por querer que você vá atrás dele, mas sim porque desejo seu dano como se me tivesse morrido. Mas, de onde saiu esta espada pendurada no flanco esquerdo, que jamais derramou sangue de homem, nem foi desembainhada em nenhum transe? Eu sei bem onde foi feita e sei bem quem a forjou. Procure não confiar nela, que sem dúvida alguma lhe trairá quando estiver em grande batalha, pois voará aos pedaços.
    —Formosa prima, enviou-a ontem noite uma das sobrinhas de meu bom anfitrião. Deu-me isso e eu estou muito satisfeito. Entretanto, inquieta-me muito o que me disse, se for certo. Diga-me agora, se souber: no caso de que se rompesse, poderia reparar-se?
    —Sim, mas seria muito trabalhoso para que soubesse seguir o caminho que leva ao lago que há ao pé do Cotoatre. Ali, se a ventura o levasse, poderia refazê-la, temperar de novo e restabelecer. Vá somente à casa do Trebuchet, um ferreiro que assim se chama, porque ele a fez e a refará, o que não obterá jamais, de nenhum homem que se empenhe nisso. Procure que nenhum outro ponha nela suas mãos, porque não saberia como consegui-lo.
    —Certo, —disse Perceval—, sofreria muito se rompesse.
    Ele então vai e ela fica, pois, não quer se separar do corpo daquele cuja morte tanto causa pena em seu coração.

    O ORGULHOSO DO DESERTO

    Ele vai seguindo uns rastros no atalho até que encontra um cavalo esquálido e cansado indo a frente dele. Imaginou que estava tão fraco e miserável porque tinha cavalgado em más mãos. Parecia muito fatigado e mau alimentado, como se faz com cavalo emprestado, cansando-o muito de dia e cuidando pouco a noite. Assim era aquele cavalo, de tão fraco tremia como se estivesse congelado. Suas crinas estavam cortadas e as orelhas caíam; o focinho e os dentes esperavam dele isca e pasto, pois só tinha o couro em cima dos ossos. Levava uma sela no lombo e um cabresto muito em consonância com tal animal. Montava-o uma donzela, a mais miserável que jamais foi vista. Não obstante, arrumada, seria muito formosa e gentil. Entretanto, ia tão desarrumada vestindo roupas rasgadas, e pelos trapos saíam os seios do peito. De quando em quando aparecia um remendo de grossa costura; sua carne parecia rasgada por um tridente, pois, estava aberta e tostada pelo calor, o vento e o gelo. Ia descoberta e sem manto; em seu rosto havia feios sulcos produzidos por suas lágrimas, que sem deter-se em seu caminho lhes desciam pelo seio, por debaixo da roupa chegavam até regar os joelhos. Muito sofrido devia ter o coração que tanta desdita padecia.
    (VS. 3727-3816)
    Perceval, assim que a viu, foi veloz para ela, a qual apertou seu vestido para cobrir suas carnes, mas isso fazia que se abrissem outros buracos. Quando cobria uma parte, tampava um buraco e abria cem. Alcança-a Perceval descolorida, pálida e tão miserável. Ao aproximar-se ouviu doer-se tristemente de sua pena e sua desdita.
    —Deus! —dizia—, não permita que siga vivendo assim. Não mereci em modo algum ser tanto tempo tão desventurada e sofrer tanta desventura. Deus, você que sabe bem que em nada faltei, me envie, se o agradar, quem me alivie esta pena; ou livra-me daquele que me faz viver em tal opróbrio. No qual não encontro piedade, nem posso escapar dele viva, nem ele quer me matar. Não sei por que deseja, com tanto empenho, minha companhia, a não ser porque deseja minha vergonha e minha desgraça. Embora ele soubesse, de certo, que eu o merecia, deveria ter piedade, se me conservasse algum afeto, porque paguei tão caro. Na verdade, nenhum afeto tem, no momento em que me leva atrás dele, tão dura vida, sem se importar com nada.
    Então Perceval, que estava já a seu lado, disse-lhe:
    —Formosa, Deus lhe guarde.
    Quando a donzela o ouviu, abaixou a cabeça e respondeu em voz baixa:
    — Senhor que me cumprimenta, tenha seu coração quanto deseje eu não tenho permissão para saudá-lo.
    Perceval, a quem a vergonha alterou a cor, respondeu:
    - Por Deus, donzela! Por que? Penso e acredito, certamente, que nunca a vi, nem lhe fiz nada de mau.
    - Sim. —disse ela— Porque sou tão desventurada e tanta é minha pena, que ninguém me deve saudar; suo de angústia quando alguém fala comigo, ou me olha.
    — Asseguro-lhe que eu não pretendia causar nenhum mal —diz Perceval—. Eu não vim aqui para lhe fazer desonra, nem ultraje, mas sim meu caminho me trouxe até você. Posto que a vi tão maltratada, pobre e nua; não terei alegria em meu coração até saber a verdade. Que aventura lhe levou a tal dor e a tal pena?
    — Ah, senhor, por piedade! —diz ela—. Parte, fuja daqui e me deixe estar em paz. O pecado o faz ficar aqui; fuja e obrará sabiamente.
    —Queria saber —diz ele— de que temor e de qual ameaça tenho de fugir, quando ninguém me persegue.
    (VS. 3817-3913)
    —Senhor —diz ela—, não se apiede. Fuja enquanto é possível; que não surpreenda esta conversação o Orgulhoso do Deserto, que só ambiciona batalhas e brigas. Caso o encontrasse aqui, esteja seguro, de que o mataria imediatamente. Incomoda-lhe tanto que alguém pare ou que me retenha conversando que, se chegar a tempo, deixa-o sem cabeça. Não faz muito que matou um; mas antes ele conta a todos por que cai em tanta baixeza e miséria.
    Enquanto falava assim, o Orgulhoso saiu do bosque e chegou como um raio, pela areia e pelo pó, gritando muito alto:
    —Caiu a desgraça sobre você que vai ao lado da donzela. Tem que saber que chegou seu fim, por havê-la retido e parado um só passo. Todavia, não o matarei até explicar por que motivo e por que má ação a faço viver com tanta desonra; agora escuta e ouvirá a história. Neste ano, tinha ido um dia ao bosque e deixei em meu pavilhão esta donzela, era quão único que amava; até que por acaso, passou por ali um moço Gales. Não sei quem era, nem onde ia, mas, conseguiu beijar à força, segundo ela me confessou. O que a impedia de me mentir? E se a beijou contra sua vontade, acaso não cumpriu ele depois todo seu desejo? Sim, pois ninguém acreditaria que a beijasse sem fazer nada mais, pois uma coisa traz a outra. Quem beija uma mulher, estando os dois sozinhos, e não faz nada mais, acredito que é ele o que não segue adiante. A mulher que entrega sua boca, muito ligeiramente dá todo o resto, se houver quem bem o entenda. Embora ela se defenda, já se sabe, sem dúvida alguma, que a mulher sempre quer vencer, exceto unicamente naquela briga em que pega o homem pela garganta, arranha, remói e luta. Então se queria vencer, defendia-se. É tão covarde em sua entrega, que está impaciente e quer que lhe faça a força, e logo não o agradece. Por isso acredito que ele a fez sua. Tirou-lhe um anel meu, que ela levava no dedo e o levou, o que me indigna; mas antes bebeu o forte vinho e comeu os bons bolos que eu guardava. Agora minha amiga recebe o cortês salário que lhe corresponde. Quem faz uma loucura, que a pague, para que se guarde de reincidir. Pôde ver-me muito encolerizado quando voltei e soube. Como tinha razão, jurei solenemente, que seu cavalo não comeria aveia, nem seria sangrado, nem ferrado de novo. Ela não levaria mais capa, nem manto, do que os que vestia então, até que eu derrotasse, matasse e cortasse a cabeça do que a tinha forçado.
    Quando Perceval o escutou, respondeu-lhe palavra por palavra:
    —Amigo, saiba, sem dúvida alguma, que já cumpriu sua penitência, pois, eu sou o que a beijou, e sinto muita pena, pois lhe doeu muito. Tomei o anel de seu dedo; nada mais passou, nem nada mais fiz; se comi, confesso, um bolo e meio e bebi tanto vinho quanto quis, nisto não obrei como um néscio.
    —Por minha cabeça —replica o Orgulhoso—, disse agora coisas admiráveis ao reconhecer isto.
    (VS. 3914-3978)
    - Fez-se merecedor da morte ao confessar a verdade.
    —A morte não está ainda tão perto como parece — disse Perceval.
    Então, sem dizer mais, deixaram correr os cavalos um contra outro e se toparam com tal ímpeto que fizeram suas lanças lascar. Ambos esvaziaram as selas e derrubaram-se mutuamente. Em seguida ficaram de pé e despiram as espadas e atiraram-se grandes golpes. Perceval deu primeiro com a espada dada de presente, porque queria prová-la. Atirou-lhe um golpe tão forte na parte superior do elmo de aço, que se rompeu em dois pedaços, a boa espada do Rei Pescador. O Orgulhoso não se atemorizou, e o devolveu com muita força em cima do elmo lavrado derrubando flores e pedras. Perceval está muito triste coração porque lhe falhou sua espada. Desembainha a qual foi do cavaleiro Vermelho e ataca de novo; porém, antes recolhe todos os pedaços da outra e os guarda na bainha de arma. Então empreendem um combate tão robusto que jamais viram outro maior. A batalha foi forte e rude. Não quero descrevê-la mais porque me parece que seria trabalho em vão: combateram os dois até que o Orgulhoso da Landa se rendeu e pediu mercê. Ele, que não esquecia que o mestre rogou nunca matasse a cavaleiro que lhe pedisse mercê, disse-lhe:
    — Cavaleiro, por minha fé, você não terá minha misericórdia, até que sua amiga a tenha, pois, posso jurar, que de modo algum mereceu o dano que você lhe tem feito padecer.
    E aquele, que a amava mais do que a seus olhos, respondeu-lhe:
    — Gentil senhor, quero fazer a reparação que vocês disponham. Não me ordenarão nada que não esteja disposto a fazê-lo, tenho o coração triste e negro pelo mal que lhe tenho feito sofrer.
    —Vem, pois, à morada mais próxima que possua nestes arredores — disse—, faz banhar-se a seu prazer até que fique curada e sã. Prepare-a e leva-a, bem composta e bem vestida, ao rei Artur. Saúda-o de minha parte e coloque-se à sua disposição equipado tal como vai agora. Se perguntar de parte de quem vai, diga-lhe que de parte daquele que ele fez cavaleiro vermelho, com a aprovação e o conselho de meu senhor Keu, o mordomo. E terá que relatar na corte a penitência e o dano que tem feito sofrer a sua dama, de modo que o ouçam todos os que ali se encontrem e todas, com a rainha e as donzelas, entre as quais há muitas formosas. Acima de todas elas aprecio uma, que, porque me sorriu, Keu lhe deu tal bofetada que a deixou completamente aturdida. Mando que a busque e que lhe diga de minha parte que, sob nenhum pretexto entrarei na corte que o rei Artur reuna, até que a haja, tão bem, vingado que esteja alegre e contente.
    (VS. 3979-4071)
    Ele responde que irá muito agradecido e que dirá tudo que lhe ordenou, sem mais demora que a que seja precisa para que sua dama se reponha e se embeleze como lhe será mister. E que muito a gosto a levaria ele mesmo, para que descansasse, curasse, atendesse suas feridas e suas chagas.
    —Vai agora, e que boa ventura tenha —diz Perceval—, preocupa-se de outras coisas, que eu procurarei albergue em outro sítio.
    Acaba assim a conversação, nem um, nem o outro esperam mais, pois, se separam sem mais raciocínio.
    Naquela noite, fez banhar sua amiga e vestir-se ricamente. Tão bem cuidou dela que recuperou sua formosura. Depois, os dois empreenderam diretamente o caminho ao Carlión, onde o rei Artur tinha sua corte muito privadamente, pois, só havia três mil cavaleiros de mérito. Que vinha com sua dama se constituiu em prisioneiro do rei Artur acima de todo o mundo. Quando esteve diante dele disse:
    —Gentil senhor rei, sou prisioneiro, para fazer de mim quanto queira. É bem razoável e justo, pois assim me ordenou o moço que lhe pediu armas vermelhas e as obteve.
    Assim que o rei o ouviu, compreendeu muito bem o que queria dizer.
    —Desarme-se — disse—, gentil senhor. Que tenha gozo e boa ventura quem me deu de presente você. Seja bem vindo. Por ele será apreciado e honrado em minha casa.
    —Senhor, ainda tenho que lhe dizer algo antes de me desarmar. Penso que a rainha e suas donzelas devessem ouvir as novas que lhes trouxe. Não contarei até que esteja presente aquela que foi golpeada na bochecha só por ter sorrido; jamais fez outro mal.
    Assim dá fim a suas palavras. Quando o rei ouve que é preciso que a reina se ache presente, manda procurá-la. Ela chegou com todas as suas donzelas, que ficaram em pé em duas filas.
    Quando a rainha se sentou ao lado de seu senhor, o rei Artur, o Orgulhoso da Landa lhe disse:
    —Senhora, saúde o envia um cavaleiro ao qual aprecio muito e que me venceu com suas armas. Nada mais posso dizer dele, mas sim envia minha amiga, que é esta donzela que está aqui.
    —Amigo, muito o agradeço —disse a rainha.
    Conta-lhe toda a baixeza e o ultraje que largamente lhe impusera, as penas que tinha passado e a razão porque o fez; disse tudo sem esconder nada. Depois enfurecera aquela que o mordomo Keu pegou, e lhe disse:
    —Donzela, quem me enviou aqui me rogou que a saudasse de sua parte, que não descalçasse meus pés até que dissesse: se Deus lhe ajudar, não entrará, por nada que ocorra, em nenhuma corte que reúna o rei Artur até que lhes tenha vingado da bofetada, do soco, que lhes deram por ele.
    (VS. 4072-4162)
    Quando o bufão ouviu, ficou em pé de um salto, gritando:
    —Keu, Keu, assim Deus me abençoe, que o pagarão muito seriamente, e isso ocorrerá próximo.
    E depois do bufão acrescentou o rei:
    —Ah, Keu, muito cortesmente obrou quando zombou do moço! Suas brincadeiras deram nisso, de modo que já não espero vê-lo nunca mais.
    Logo o rei fez sentar ante si seu cavaleiro prisioneiro, perdoou-lhe sua prisão e lhe ordenou que se desarmasse. E meu senhor Gauvain, que estava sentado ao lado direito do rei, pergunta:
    —Por Deus, senhor, quem pode ser este, que só com suas armas, venceu a tão bom cavaleiro como é esse? Pois, em todas as ilhas do mar não ouvi nomear, nem vi, nem conheci, cavaleiro que possa comparar-se a esse, nem em armas, nem em cavalaria.
    —Gentil sobrinho, eu não o conheço —diz o rei—, embora o vi; mas quando o vi não me pareceu oportuno lhe perguntar nada. Disse-me que o fizesse cavaleiro imediatamente. Eu ao vê-lo gentil e agradável, disse-lhe: "Irmão, com muito prazer; mas desmonte, que enquanto isso lhes irá procurar umas armas douradas." E ele respondeu que nem tomaria, nem jogaria pé a terra até que tivesse armas vermelhas. Disse também outras coisas surpreendentes: que não queria ter outras armas a não ser as do cavaleiro, que levava minha taça de ouro. Keu, que era irritante, o é ainda, e o será sempre, jamais quer dizer nada bom, disse-lhe: "Irmão, o rei dá as armas e lhe entrega isso, assim agora mesmo pode ir tomá-las." E ele, que não soube entender a brincadeira, acreditou-se que dizia seriamente. Foi atrás daquele e o matou com um dardo que lhe lançou. Não sei como começaram a briga e a refrega, mas sim que o cavaleiro Vermelho da Floresta do Quinquerroi o golpeou com altivez com sua lança, não sei por que motivo. O moço lhe atravessou um olho com seu dardo, matou-o e ficou com suas armas. Depois me serviu tão a meu prazer que, por meu senhor São David, ao que se ora e reza em Gales, não dormirei duas noites seguidas em câmara, nem em sala, até que saiba se viver em mar ou em terra, e partirei para ir em sua busca.
    Assim que o rei fez este juramento, todos convenceram-se de que não havia mais remédio que partir.

    AS GOTAS DE SANGUE NA NEVE

    Então, viram colocar lençóis, cobertas e travesseiros em malas; encher cofres, carregar a cem milhas, carretas e carros. Não regulavam pavilhões, tendas ou barracas. Um clérigo sábio e muito letrado, não poderia escrever em um só dia, toda a tropa e vestimentas que prepararam imediatamente. Assim com seu exército parte o rei de Carlión. Seguem-no todos os barões, e não fica donzela que a rainha não leve para pompa e senhorio.
    De noite acamparam em um prado próximo a uma floresta. À manhã seguinte nevou muito, e toda a comarca estava muito fria. Perceval se levantou de madrugada, como estava acostumado, porque queria procurar e encontrar aventura e cavalaria. Encaminhou-se ao prado, gelado e nevado, onde tinha acampado a hoste do rei.
    (VS. 4163-4248)
    Todavia, antes que chegasse às tendas, voava um bando de gansos que a neve tinha deslumbrado. Viu-as e ouviu como chiavam por causa de um falcão, que vinha as acossando com grande ímpeto, até que encontrou uma separada do bando, a qual atacou. Atacou de tal modo que a derrubou em terra; entretanto, era tão cedo, que se foi sem querer enfurecer-se na pressa. Perceval segue para onde viu o vôo. O ganso estava ferido no pescoço. Derramou três gotas de sangue que se pulverizaram sobre o branco, e parecia cor natural. O ganso não sentia mal, nem dor que a detivesse em terra. Antes dele chegar, já havia empreendido o vôo.
    Quando Perceval viu pisada a neve sobre a qual tinha descansado o ganso e o sangue que aparecia ao redor, apoiou-se na lança para contemplar aquela aparência. O sangue e a neve juntas lhe rememoram a fresca cor da face de sua amiga, envolve-se tanto que se esquece; porque em seu rosto o vermelho estava colocado sobre o branco igual aquelas três gotas de sangue que apareciam sobre a neve. A contemplação na qual estava embevecido agradava-lhe tanto, que lhe parecia que estava vendo a jovem cor da face de sua formosa amiga.
    Perceval absorvido na contemplação das três gotas, empregou as primeiras horas da manhã. Quando das tendas saíram escudeiros, viram-no tão absorto que pensaram que dormia. Os escudeiros, antes do rei despertar, ainda dormindo em sua tenda, encontraram ante o pavilhão real ao Sagremor, que por seu excesso era chamado o Desmesurado. Interpela-os:
    —Digam-me e não me ocultem nada, por que vêm aqui tão cedo?
    —Senhor —respondem eles—, fora da tropa vimos um cavaleiro dormindo sobre seu cavalo.
    —Está armado?
    —Sim, na verdade.
    —Eu irei falar com ele —lhes diz—, e o trarei para a corte.
    Imediatamente Sagremor corre à tenda do rei e o acorda dizendo:
    —Senhor. Ali, fora da brigada, há um cavaleiro dormindo.
    O rei lhe ordena que vá. Também lhe diz e roga que o traga sem demora. Em seguida mandou Sagremor que lhe tirassem as armas e pediu seu cavalo. Cumpriu-se assim que o disse, e se fez armar bem e logo. Completamente armado saiu da hoste e se aproximou do cavaleiro e lhe disse:
    —Senhor, têm que ir ao rei.
    O outro não se move e dá a impressão de não ouvi-lo. Repete-o. O outro se cala, ele indignado diz:
    (VS. 4249-4340)
    —Pelo apóstolo São Pedro, com seu pesar! Arrependo-me de gastar tantas palavras em vão ao lhes rogar isso —Gentil senhor, vê como volta Sagremor. Traz o cavaleiro entorpecido, conduzindo-o com seu abatimento.
    Então desdobra sua insígnia, que levava enrolada na lança. Ficando um pouco atrás para tomar ímpeto, faz correr o cavalo até ele e lhe avisa que fique em guarda, porque lhe atacará se não se acautelar. Perceval olha para ele e o vê galopando; abandona sua contemplação e sai ao encontro arreando. Assim que encontra um com o outro, quebra a lança do Sagremor; mas a do Perceval nem se rompe, nem se dobra. Empurra-na com tal vigor que o derruba no meio do campo. O cavalo, sem demora, fuge para o acampamento com a cabeça erguida. Os que no acampamento estavam levantando o vêem, a mais de um foi desagradável.
    Mas Keu, que nunca podia abster-se de dizer sarcasmos, zomba e diz ao rei:
    —Gentil senhor, vejam como volta Sagremor. Traz o cavaleiro pelo freio e o conduz com seu arrependimento.
    —Keu —diz o rei—, não está bem que deste modo burle dos mestres. Vá você e veremos se faz melhor que ele.
    —Muito contente estou —responde Keu— de que o agrade que eu vá. Asseguro-lhe que o trarei pela força, tanto se quiser como se não, e lhe farei dizer seu nome.
    Armar-se demoradamente. Sobe e vai para aquele que tão absorto estava na contemplação das três gotas, que não se dava conta de nada mais. Desde muito longe lhe grita:
    —Vassalo, vassalo, venha ao rei. Virá em seguida, por minha fé, ou o pagará muito caro.
    Perceval, ao ouvir a ameaça, volta a cabeça de seu cavalo e lança-o com as esporas de aço para aquele que não vem lentamente. Ambos desejam fazê-lo bem e se atacam sem dissimulação. Keu dá tão forte que rompe e quebra sua lança como uma cortesã, colocou nisso todo seu vigor. Perceval não se atrasa e lança-se em cima. Derruba-o sobre uma rocha, deslocando sua clavícula; partindo o osso do braço direito, entre o cotovelo e o sovaco. Ficando como fragmentos secos, tal como disse o bufão, que muito freqüentemente prognosticava: certo foi o prognóstico do bufão. Keu se desvanece pela dor, e seu cavalo foge para as tendas a grande trote.
    Quando os bretões vêem que volta o cavalo sem o mordomo, os pajens montam, damas e cavaleiros acodem, encontram-no desvanecido e percebem que está morto. Então todos e todas começaram a fazer um grande duelo sobre ele.
    Perceval volta a se apoiar na lança sobre as três gotas. O rei sentia grande desgosto porque o mordomo estava ferido: está tão triste e causa tanta pena que lhe diz que não se deprima, que se curará, sempre que houver médico que saiba colocar de volta a clavícula em seu lugar e ajustar o osso quebrado. O rei, sentia grande ternura por ele, em seu coração amava-o muito. Envia-lhe um médico muito sábio e duas donzelas de sua escola, que lhe encaixaram a clavícula, soldaram-lhe o osso quebrado e enfaixaram o braço. Levaram-no logo à tenda do rei e reanimaram-no muito dizendo que curaria completamente e que não se desesperasse por nada. Meu senhor Gauvain disse ao rei:
    (VS. 4341-4434)
    —Senhor, senhor! Valha-me Deus! Não é sem razão, como bem sabe e como você mesmo sempre diz e julga acertadamente, que um cavaleiro parte a outro em sua contemplação, qualquer que seja, como esses dois fazem. Eu não sei se eles tiverem razão, o certo é que saíram mal. O cavaleiro estaria pensativo porque teria perdido alguma coisa, ou sua amiga lhe tinha sido roubada, e se entristecia e condoía-se por isso. Se observassem, iriam ver sua moderação. Caso o encontrasse já fora de seu êxtase, diriam e rogariam que viesse até aqui.
    Estas palavras indignaram Keu, que disse:
    —Ah, meu senhor Gauvain! Trará o cavaleiro preso pela atadura apesar dos pesares. Bem feito estará, se tolerar isso e lhe outorgar a batalha; deste modo fará muitos prisioneiros. Quando o cavaleiro está fatigado e brigou muito, então é o momento oportuno para aquele que é um mestre peça um dom e vá combater. Gauvain, cem vezes seja maldito meu pescoço se você não for tão néscio que não lhe possa ensinar algo; o que sabe é dar de presente com palavras muito belas e elegantes. Proferirá acaso palavras insultantes, rudes e altivas? Maldito seja quem acreditou, embora seja eu mesmo. Na verdade que este negócio poderá resolver em pele de seda. Não será preciso nem desembainhar espada, nem quebrar lança. Só poderá se orgulhar de quem não faltar a língua para lhe dizer: "Senhor, Deus o guarde, dê gozo e saúde", na hora fará sua vontade. Nada tenho que ensinar, porque amansará isso, como se amansa a um gato acariciando-o, e todos dirão: "Agora combate ferozmente meu senhor Gauvain."
    —Ah, senhor Keu! —respondeu ele—, Ocorre-me dizer mais amavelmente. Quer vingar em mim sua cólera e seu mau humor? Se puder, doce amigo, asseguro-lhe que o trarei. E não voltarei com o braço quebrado, nem a clavícula deslocada, porque eu não gosto nada deste salário.
    —Vá em seguida, sobrinho —disse o rei—, que fala muito cortesmente. Se for possível, traga-o; mas leve todas suas armas, porque desarmado não irá em modo algum.
    Arma-se de acordo aquele que tinha fama e o mérito de todas as bondades. Sobe em um cavalo forte e destro. Vai direto ao cavaleiro, que estava apoiado na lança e ainda não se cansou de seu êxtase, que muito lhe agradava. Como o sol tinha derretido duas das gotas de sangue que estavam na neve e a terceira ia apagando-se, o cavaleiro já não estava tão absorto como antes. Meu senhor Gauvain aproxima-se cavalgando devagar, sem pôr o rosto feroz lhe diz:
    (VS. 4435-4520)
    —Senhor, o saudaria se conhecesse seu coração, tão bem como conheço o meu. O que eu posso lhe dizer é que sou um mensageiro do rei, que por mediação minha, manda e roga-lhe que vá falar com ele.
    —Já estiveram outros dois aqui —responde Perceval—, tirando meu prazer e queriam levar-me como se fosse um prisioneiro. Todavia, estava tão absorvido em meu êxtase, agradava-me tanto, que os que me queriam apartar disso não procuravam meu proveito. Porque neste lugar havia três gotas de sangue fresco iluminando o branco. Ao contemplá-las parecia que estava vendo a fresca cor do rosto de minha formosa amiga e não queria me apartar daqui.
    —Na verdade —disse meu senhor Gauvain—, esta contemplação não era vil, mas, muito cortês e doce. Seria perverso e rude afastar seu coração disso. Agora muito quero e desejo saber o que pensa fazer você; porque, se não lhe desgostasse, muito agradecido o conduziria até o rei.
    —Diga-me primeiro, amável amigo —fala Perceval—, se está ali o mordomo Keu.
    —Sim, na verdade está! Saiba que foi ele quem recentemente lutou com você, mas, tão cara saiu a luta que, se não souber, quebrou-lhe o braço direito e deslocou a clavícula.
    —Pois então me vinguei bem, ao que acredito, à donzela que ele pegou.
    Quando meu senhor Gauvain o ouviu se surpreendeu, e estremecendo, disse:
    —Senhor, valha-me Deus! O rei não procura outra coisa a não ser você. Como se chama, senhor?
    —Perceval, senhor, e você?
    —Senhor, saiba certamente que meu nome de batismo é Gauvain.
    —Gauvain?
    —Sim, gentil senhor.
    Perceval se alegrou muito e disse:
    —Senhor, ouvi falar de você muito bem em muitos lugares. Desejava que entre nós dois houvesse amizade, se o agradar e convier.
    —Na verdade —disse meu senhor Gauvain— não me agrada menos que a você, e sim mais, ao que acredito.
    Perceval respondeu:
    —Assim, pois, eu irei com muito prazer, aonde você queira, porque é justo. Considero-me muito mais digno a partir do momento que sou seu amigo.
    Então se abraçam um ao outro e ficam desatando elmos, as toucas e as viseiras. Tiram as malhas e vão prazerosamente.
    Os pajens, que os viram abraçar um ao outro onde estavam postos, correram à presença do rei e lhe disseram:
    —Senhor, senhor! Meu senhor Gauvain traz o cavaleiro. Um e outro vão muito contentes.
    Quantos ouvem a nova saem da lareira e correm a seu encontro. Keu diz ao rei, seu senhor:
    —Já alcançou o prêmio e a honra meu senhor Gauvain, seu sobrinho. Muito perigosa e dura foi a batalha, se não me equivocar, pois volta tão alegremente como partiu: não recebeu nenhum golpe do outro, nem o outro sentiu nenhum golpe dele, nem lhe desmentiu as palavras. É justo que receba louvor e prêmio, que se diga que obteve o que nós não pudemos conseguir, embora pusemos nisso todo nosso poder e nosso esforço.
    (VS. 4521-4607)
    Assim, Keu está acostumado a dizer tudo o que deseja, seja justo ou não. Meu senhor Gauvain não quer levar à corte seu companheiro armado e sim desarmado. Em sua tenda o desarma e ao acaso pega de um cofre umas roupas, que lhe apresenta e lhe oferece para que as vista. Quando estava bem; elegantemente vestido com capa e manto muito bons, que lhe caíam muito bem, dirigiram-se, um ao lado do outro, ao rei, sentado diante de sua tenda. Meu senhor Gauvain lhe disse:
    —Senhor, trago aquele que, conforme acredito, conheceu com muito agrado faz exatamente quinze dias. Este é aquele de quem tanto falava; este é aquele que procurava; trago-o aqui está ele.
    —Graças a você, gentil sobrinho —disse o rei, apressando-se em ficar de pé para recebê-lo, lhe dizendo—: Gentil senhor, bem-vindo seja. Rogo que me diga como devo chamá-lo.
    —A minha fé! Não lhe ocultarei —disse Perceval—, bom senhor rei: meu nome é Perceval, o Gaulês.
    —Ah, Perceval, gentil doce amigo! Desde o momento que entrou em minha corte, não partirá dela com minha vênia. Muito lamentei quando o vi pela primeira vez e não soube compreender a reparação que Deus lhe tinha destinado. Entretanto, averiguou em seguida e toda minha corte soube da donzela e do bufão que a golpeou, o mordomo Keu. Você faz completamente verdadeiros seus prognósticos. Agora ninguém põe em dúvida que tenha ouvido novas verdades de suas cavalarias.
    Enquanto dizia estas palavras chegou a rainha, que tinha ouvido as novas de que tinha chegado. Assim que Perceval a viu, disse quem era. Advertiu detrás à donzela que sorriu quando ele a olhou, foi em seguida para elas e disse:
    —Deus dê gozo e honra a mais formosa, a melhor, de quantas damas existem, como testemunham todos os quais a vêem e todos os quais a viram.
    A Rainha lhe respondeu:
    —Você é o bem achado, como cavaleiro experimentado em altas e belas empreitadas.
    Logo Perceval saúda a donzela que lhe sorriu, abraça-a e lhe diz:
    —Formosa, se for necessário, eu serei o cavaleiro que jamais lhe negará sua ajuda.
    A donzela agradeceu.

    A FEIA DONZELA DA MULA

    Grande foi a hospedagem que o rei, a rainha e os barões deram a Perceval, o gaulês, com o qual naquele mesmo dia, retornaram ao Carlión. Grande festa fizeram toda aquela noite, o mesmo no dia seguinte, até o terceiro, quando viram chegar uma donzela montada em uma mula marrom e que levava na mão direita uma cinta.
    (VS. 4608-4706)
    Esta donzela levava duas tranças torcidas e negras. E se forem certas as palavras com as quais o livro descreve-na, nunca houve nada tão completamente feio, nem mesmo no inferno. Nunca viram ferro tão enegrecido como seu pescoço e suas mãos eram o de menos, comparadas com suas outras fealdades. Seus olhos eram dois buracos pequenos, como olhos de rato; seu nariz era de borracha ou de gato; seus lábios de asno ou de boi. Seus dentes eram de uma cor tão avermelhada que pareciam de gema de ovo, e tinha barbas como num focinho. Na metade do peito tinha uma concha e pelas costas parecia encurvada. Seus quadris e seus ombros eram muito adequados para dançar com a corcunda detrás e as pernas, retorcidas como duas tochas, parecia estar a ponto de abrir o baile.
    Avança com sua mula até situar-se frente a todos os cavaleiros: jamais em corte de rei se viu donzela semelhante. Saúda em geral ao rei e a todos os seus barões, exceto Perceval. Da mula marrom disse o seguinte:
    —Ai, Perceval! Fortuna é calva por detrás e na frente tem uma mecha. Maldito seja quem te saúde e quem te deseje, ou procure algum bem, pois não acolheu a Fortuna quando a encontrou. Entrou em casa do Rei Pescador; viu a lança que sangra. Foi tão penoso abrir a boca e falar que não pôde perguntar por que brota aquela gota de sangue da ponta do ferro branco; tampouco perguntou nem indagou, que mestre se servia com o Graal que você viu. Muito desventurado é o que vê a ocasião que mais lhe convém e ainda espera que venha outra melhor. Você é o desventurado, porque teve ocasião e lugar de falar e te calou; foi sua grande oportunidade. Grande desgraça foi calar. Se tivesse perguntado, o rico rei, que agora adoece, já estaria completamente curado de sua ferida e possuiria sua terra em paz, o que já não conseguirá outra vez. Sabe o que ocorrerá devido o rei não possuir a terra e não ser curado de suas feridas? As damas perderão seus maridos; as terras serão devastadas; as donzelas, desamparadas, ficarão órfãs e morrerão muitos cavaleiros. Todos estes males virão por sua culpa.
    Logo disse a donzela ao rei:
    —Rei, já me vou! Não se aborreça, porque esta noite devo me albergar longe daqui. Não sei se ouviram falar do Castelo Orgulhoso, mas esta noite tenho que estar ali. Há neste castelo quinhentos e sessenta e seis cavaleiros de mérito. Saibam que todos têm por amigas consigo, gentis damas, corteses e formosas. Dou-lhes a nova de que ninguém vai ali que não encontre luta ou batalha. Que queira fazer cavalarias, se ali as buscar, não sairá defraudado. Quem queira alcançar o maior prêmio de todo o mundo, eu acredito saber o local e lugar da terra onde poderá conquistá-lo melhor, se for capaz de empreendê-lo. Na colina que há perto do Montescleire há uma donzela sitiada; grande honra conquistaria o que pudesse levantar o cerco e liberar à donzela; ganharia a melhor fama e, se Deus lhe desse tão boa ventura, poderia rodear com todo direito a Espada do Estranho Cinturão.
    (VS. 4707-4787)
    Então a donzela, que já havia dito tudo o que queria, calou-se e não nada mais. Meu senhor Gauvain ficou de pé em um salto. Disse que iria e faria tudo que pudesse para socorrer à donzela. Por sua parte, Girflet, o filho de Do, disse que, se Deus lhe ajudasse, iria ante o Castelo Orgulhoso.
    —E eu subirei ao Monte Doloroso —disse Kahedín—, e não retrocederei até chegar ali.
    Perceval falou de modo distinto. Disse que em toda sua vida não dormiria duas noites seguidas no mesmo albergue. Quando tivesse novas de um caminho difícil, não deixaria de passar por ele. Quando soubesse de um cavaleiro que vale mais que outro, ou que outros dois, não se absteria de lutar com ele, até saber a quem serve o Graal. Até encontrar a lança que sangra e lhe diga a verdade comprovada do porquê sangra, por nenhum trabalho deixará de fazê-lo.
    Levantaram-se perto de cinqüenta cavaleiros, comprometendo-se e juramentado a dar toda sorte de maravilhas e aventuras de que tenham notícia, embora seja em uma daninha terra.




    PROVOCAÇÃO DE GUINGANBRESIL

    Enquanto preparavam-se e armavam-se, entra Guinganbresil pela porta da sala, com um escudo de ouro, no qual um pedaço azul ocupava a terceira parte perfeitamente medida. Guinganbresil reconheceu ao rei e o saudou como devia; mas não saudou Gauvain, ao qual acusou de traição dizendo:
    —Gauvain, você matou a meu senhor, e o fez sem havê-lo desafiado. Por isso é digno de vergonha, recriminação e censura, acuso-o de traição. Saibam bem todos estes barões que não menti nem em uma só palavra.
    Ao ouvir isto meu senhor Gauvain ficou em pé de um pulo muito deslocado e seu irmão, Agrevain o Orgulhoso, ergueu-se, reteve-o e lhe disse:
    —Por Deus, gentil senhor! Não desonre sua linhagem. Eu lhe defenderei desta recriminação, reprovação, censura, crítica, vergonha que este cavaleiro lhe acusa, prometo-lhe!
    Ele contestou:
    —Irmão, ninguém me defenderá a não ser eu mesmo, sou eu quem deve defender-se porque só a mim acusa. Todavia, se eu machucasse algum cavaleiro e soubesse; com muito prazer pediria paz e proporia tal reparação, que tanto seus amigos como meus encontrariam-no bem. Como o que disse é um ultraje, eu defendo-me dele; ofereço minha prenda, aqui ou onde o agrade.
    (VS. 4788-4866)
    E ele diz que lhe provará a vergonhosa e vilã traição ao cabo da quarentena, ante o rei do Escavalón, quem, a seu julgamento e parecer, é mais formoso que Absalón.
    —E eu te juro —diz Gauvain— que imediatamente te seguirei, e ali veremos quem imporá seu direito.
    Nesse instante, Guinganbresil volta e meu senhor Gauvain prepara-se para segui-lo sem demora. Quem tinha bom cavalo, boa lança, boa armadura, ou boa espada, apressou-se a oferecer-lhe, porém não lhe agradou levar nada alheio. Levou consigo sete escudeiros, sete cavalos e dois escudos. Antes de sair da corte se fez por ele grande duelo: houve peitos golpeados, cabelos arrancados e muitas caras arranhadas. Não houve dama, por mais judiciosa que fosse, que não manifestasse grande dor por ele. Grande pranto derramam muitas e muitos; e meu senhor Gauvain se vai.
    Ouvir-me-ão relatar muito longamente as aventuras que encontrou.

    GAUVAIN E A DONZELA DAS MANGAS PEQUENAS

    Primeiro viu passar de um lado uma comitiva de cavaleiros. Perguntou a um escudeiro, que ia sozinho atrás, levando guarnição, um cavalo espanhol e um escudo ao pescoço:
    —Escudeiro, diga-me quem são estes que passam por aqui.
    E lhe respondeu:
    —Senhor, é Meliant de Liz, um cavaleiro nobre e valente.
    —É você dele?
    —Não; meu senhor se chama Traé d'Anet, e não vale menos que ele.
    —A minha fé —disse meu senhor Gauvain—, que conheço bem Traé d'Anet. Aonde vai? Não me oculte isso.
    —Senhor, vai a um torneio que Meliant de Liz fixou contra Tiebaut de Tintaguel, e meu desejo seria que fossem ao castelo para lutar contra os de fora.
    —Deus! —exclamou então meu senhor Gauvain—, não foi Meliant de Liz criado na casa de Tiebaut?
    —Sim, senhor; assim Deus me salve; seu pai amou muito ao Tiebaut como amigo dele, e tanto confiou nele, que em seu leito de morte encomendou a seu filho, que era menino. Ele o criou e cuidou o mais carinhosamente possível, até que foi capaz de pedir e requerer o amor de uma filha dele; ela disse que não lhe concederia seu amor enquanto fosse escudeiro. E ele, que desejava grandes batalhas, fez-se armar cavaleiro em seguida e insistiu em sua petição. "Isso não será de modo algum —disse a donzela—, a minha fé, até que, diante de mim, faça tantas armas e lute tanto que meu amor lhe custe caro; porque as coisas que se adquirem de balde, não são tão doces e saborosas como as que compram. Se quer ter meu amor, faça um acordo para um torneio com meu Pai, porque quero me assegurar bem de que meu amor estará seguro se o ponho em você." E, tal como ela propôs, o torneio foi fixado, porque amor tem tão grande senhorio sobre aqueles que estão sob seu domínio, que não ousaria negar nada que se dignasse lhes ordenar. Muito indolente seria você se não entrasse no recinto do castelo, pois, se o quer ajudar, terá grande necessidade de você.
    (VS. 4867-4955)
    E lhe respondeu:
    —Vá, irmão! Segue a seu senhor, é o melhor que pode fazer, e deixa estar tudo isto.
    Então ele partiu. Meu senhor Gauvain seguiu seu caminho, sem deixar de dirigir-se ao Tintaguel, pois não podia passar por outro local.
    Tiebaut reunia todos os seus parentes e primos. Chamou seus vizinhos, todos atenderam, poderosos e humildes, jovens e anciões. Tiebaut não encontrou em seu conselho privado aprovação para tornear com seu senhor; pois, tinham muito medo que os queria destruir completamente. Fizeram murar bem o castelo e revogar todas suas entradas. As portas foram muradas com pedras duras e morteiro, que já não necessitou outro porteiro. Só deixaram limpa uma pequena abertura, cuja porta não era precisamente de vidro. Para que durasse, era de cobre, fechavam-na com uma barra e havia nela o ferro que cabe em um carro.
    Para esta porta dirigia-se meu senhor Gauvain com todo seu impedimento, por aqui tinha que passar ao voltar. Não havia outra via, nem caminho, até sete léguas largas. Quando viu que a abertura estava fechada, meteu-se por uma plantação cercada com estacas que havia ao pé da torre; desmontou-se ao lado de um carvalho em que pendurou seus escudos. Viam-no a gente do castelo, a maioria da qual tinha grande pena, porque se suspendeu o torneio. Havia no castelo um velho lavrador, muito temido e muito sábio. Poderoso por suas terras e por sua linhagem, acreditavam em tudo que dizia, qualquer que fosse o resultado. Quando os que chegavam lhe foram mostrados de longe, antes de que tivessem entrado no prado cercado, foi falar com Tiebaut e o aconselhou:
    —Senhor, assim Deus me salve, que vi cavalgando dois cavaleiros vindo aqui. A meu ver são companheiros do rei Artur. Dois mestres têm muita categoria, e até um só pode vencer em um torneio. De minha parte aconselharia que fôssemos decididamente ao torneio, pois têm bons cavaleiros, bons soldados e bons arqueiros que lhes matarão os cavalos. Estou seguro de que deverão tornear para esta porta. Se seu orgulho os trouxer até aqui, nosso será o ganho e deles a perda e a quebra.
    (VS. 4956-5047)
    Seguindo este conselho, Tiebaut permitiu a todos que se armassem e que saíssem armados os que ali fossem. Agora alegram-se os cavaleiros. Os escudeiros correm às armas, aos cavalos e selam-os. As damas e as donzelas sentam-se nos lugares mais altos para contemplar o torneio; e vêem, debaixo delas, na esplanada, o impedimento de meu senhor Gauvain. No início parecia que havia dois cavaleiros com dois escudos pendurados. Dizem que se colocaram acima para ver tudo, consideram-se nascidas em boa hora porque poderão ver estes dois cavaleiros que se armarão diante delas. Isto supunham umas, mas havia outras que diziam:
    —Deus, meu senhor! Este cavaleiro leva tanta guarnição e tantos corcéis que haveria suficiente para dois, e não vai com nenhum companheiro. O que fará com dois escudos? Nunca foi visto cavaleiro que levasse dois escudos juntos.
    Parece-lhes assombroso que se aquele cavaleiro for sozinho, leve dois escudos. Enquanto falavam deste modo e os cavaleiros saíam, a filha maior de Tiebaut, a qual solicitou o torneio, subiu à parte alta da torre. Com a maior estava a pequena, que vestia seus braços tão graciosamente que era chamada a Donzela das Mangas Pequenas, pois as levava muito justas, apertadas, comprimidas. Junto com as duas filhas do Tiebaut subiram todas as damas e as donzelas. Naquele momento, diante do castelo reúnem-se ao torneio; não havia ninguém tão arrumado como Meliant de Liz, ao julgamento de sua amiga, que dizia às damas ao seu redor:
    —Senhoras, não saberia lhes mentir, mas lhes asseguro que nunca vi nenhum cavaleiro que eu gostasse tanto como Meliant de Liz. Há maior distração e deleite que contemplar a tão formoso cavaleiro? Quem tão bem sabe conduzir-se, bem tem que montar a cavalo, dirigir lança e escudo.
    E sua irmã, que estava sentada a seu lado, disse-lhe que havia outro mais galhardo. E aquela se encolerizou tanto, que se levantou para pegá-la, mas as damas jogaram-na para trás, detiveram-na e impediram-na que lhe desse, o que lhe pesou muito.
    Começa o torneio, no qual se quebrou muita lança, deram-se muitos golpes com as espadas e houve muitos cavaleiros derrubados. Saibam que, quem luta com Meliant de Liz, muito caro lhe custa, pois ante sua lança não há quem resista sem cair pelo duro chão. Caso quebre a lança, atira grandes golpes com a espada, e o faz melhor que quantos há em uma ou em outra parte. Sua amiga sente tanto prazer que não pode calar-se, e diz:
    —Senhoras, vejam que maravilha! Nunca viram, nem ouviram falar de nada parecido. Vejam aqui ao mais valente moço, que jamais viram seus olhos; é o mais formoso e o que melhor luta de todos os que há no torneio.
    E a pequena disse:
    —Eu vejo outro que talvez é mais galhardo e melhor.
    Naquele momento aquela, como acesa e fogosa, interpela-a:
    —Você, menina, fostes tão atrevida que por sua má ventura ousastes censurar a criatura que eu tenha gabado? Tenha esta bofetada, e lhes guarde de voltá-lo para fazer.
    (VS. 5048-5126)
    E lhe pega de tal modo que lhe marca todos os dedos no rosto. As damas que estão a seu lado a repreendem muito e tiram-na. Pouco depois voltam a falar entre elas de meu senhor Gauvain:
    —Por Deus! —diz uma das donzelas—. O cavaleiro que está debaixo daquela árvore, que espera, por que não se arma?
    Outra mais inoportuna lhes diz:
    —Jurou a paz.
    Outra acrescenta depois:
    —É um mercador. Não parece que intervenha no torneio. Todos estes cavalos os traz para vendê-los.
    —Não, é um banqueiro —diz a quarta—. A única coisa que quer é distribuir dinheiro que leva entre os pobres escudeiros que há por aqui. Não creiam que vos engano: nestes sacos e nestas malas há moeda e baixela.
    —Têm muito má língua, na verdade —diz a pequena—, e se equivocam. Imaginem um mercador com uma lança tão grande como a que leva? Têm-me morta com as diabruras que dizem. Pela fé que devo ao Espírito Santo, mais parece um torneiro que um mercador, ou um banqueiro. É cavaleiro, bem o parece.
    Todas as damas lhe atalham:
    —Têm razão, formosa amiga: se o parece é que não o é. Mas, finge sê-lo porque assim imagina defraudar os impostos e os pedágios. É tolo! Creio, desta não passa sem que seja detento como ladrão, preso, surpreendido em um roubo vil e néscio; e pendurem uma corda ao pescoço.
    Meu senhor Gauvain ouve claramente os escárnios que as damas dizem dele. Sente grande vergonha e grande irritação; pensa, e tem razão, que lhe acusam de traição e que deve se defender. Caso não se apresentasse na batalha, como jurou, desonraria a ele primeiro e depois a toda sua linhagem. Temendo a possibilidade de ser ferido ou preso, não participara do torneio; embora tivesse muita vontade, pois, vê que a briga cada vez se faz mais forte e melhora.
    Meliant de Liz pede lanças grossas para atacar melhor. Todo o dia, até o entardecer, houve torneio diante da porta. Quem algo ganhou o leva onde melhor aprouver para ter mais a salvo. As damas vêem um escudeiro gordo e calvo que agarrava uma parte de lança e levava uma renda ao pescoço. Uma das damas lhe chama néscio e tolo, dizendo:
    —Deus me valha, escudeiro, que é um louco desatado. Vai pela refrega roubando ferros de lança, rendas, lascas e pedaços. Assim se equipa de escudeiro? Quem tanto se rebaixa, pouco se aprecia a si mesmo. Vejo muito perto de você, neste campo debaixo de nós, uma fortuna sem custódia nem defesa. Néscio é quem não pensa em seu proveito enquanto pode consegui-lo. Vejam o cavaleiro mais bondoso que jamais existiu, que não se moveria embora lhe cortassem os bigodes. Não menospreze este troféu, proceda corretamente dando procuração de todos estes cavalos e do resto da fazenda, que ninguém lhe impedirá disso.
    (VS. 5127-5229)
    Imediatamente aquele entrou no campo, deu num dos cavalos com a ponta da lança e disse:
    —Vassalo, acaso não está bom e são que lhe aconteceu todo o dia aqui encostado, sem fazer absolutamente nada e sem simular escudo, nem quebrar lança?
    —Diga-me —contesta—, e a ti o que te importa? Talvez chegarás a saber o motivo da abstenção; por minha cabeça, agora não é digno explicar. Sai daqui, segue teu caminho e te ocupe de ti mesmo.
    Afastou-se dele em seguida, não era capaz de atrever-se a insistir em coisa que o zangasse.
    Suspendeu-se o torneio. Houve muitos cavaleiros prisioneiros e muitos cavalos mortos; se os de fora levaram o mérito, os de dentro ganharam ganância. Ao separar-se de noite, depois de haver-se comprometido a reunir-se no dia seguinte no campo para tornear, entraram no castelo os que dali tinham saído. Também meu senhor Gauvain, entrou atrás da comitiva e encontrou diante da porta o nobre lavrador que tinha aconselhado a seu senhor que começasse o torneio. Com graça e amabilidade lhe pediu que o albergasse.
    —Senhor —lhe respondeu—, neste castelo têm albergue preparado para descansar se o agradar. Se seguisse mais adiante, hoje não encontraria bom albergue, por isso, rogo: fique aqui.
    —Gentil senhor — disse Gauvain—, ficarei muito agradecido, pois, coisas piores ouvi dizer.
    O lavrador o leva a sua casa, falando disso e daquilo, perguntou a que se devia que durante todo o dia não tivesse intervindo com suas armas no torneio. E lhe deu cumprida razão: que lhe acusava de traição, e temia cair prisioneiro, ou ser ferido ou maltratado; o que o impediria de justificar-se da injúria. Parecia-lhe que com sua demora poderia desonrar a si mesmo e a todos seus amigos, senão fosse na hora em que a batalha fora acertada. O lavrador o elogiou. Disse que lhe parecia muito bem, pois se por isso se inibiu do torneio, era muito razoável. E o acompanha até sua casa, na qual os dois desmontam.
    A gente do castelo dedica-se a culpá-lo duramente e sustenta uma grande discussão para decidir como seu senhor poderia prendê-lo. A filha maior insiste nisso quanto pode, sabe o ódio da sua irmã, e diz:
    —Senhor, bem sei que hoje nada perdeu, mas sim, creio que ganhou muito mais do que imagina e lhe direi porque. Erraria se limitasse a ordenar que vá prendê-lo, pois não se atreverá a defendê-lo quem o entrou nesta vila, porque vive de malas super cheias. Leva consigo lanças, escudos, conduz cavalos para parecer cavaleiro; e assim, defraudar nos impostos, pois desta sorte se finge isento quando viaja com suas mercadorias. Dêem o prêmio que merece; está na casa de Garín, o filho da Berta, que o albergou. Por aqui passou recentemente e vi que ele o levava para lá.
    (VS. 5230-5317)
    Assim esforçava-se em que lhe fizesse humilhação. O senhor, na mesma hora sobe e caminha à casa de meu senhor Gauvain vivia, porque queria ir em pessoa. Quando a filha pequena viu que se ia em tal disposição, saiu por uma porta traseira, sem preocupar-se de que a visse. Foi diretamente ao albergue de meu senhor Gauvain, na casa de Garín, o filho da Berta, que tinha duas filhas muito formosas. Quando viram estas donzelas que sua pequena senhora se aproximava, sentiram-se obrigadas a manifestar alegria, o que fizeram sem dissimulação. Tomaram-na pelas mãos e receberam-na com grande prazer beijando-lhe os olhos e a boca.
    Garín, que não era pobre nem carente, havia tornado a montar a cavalo e, junto com seu filho Hermán, dirigia-se a corte, como de costume, porque queriam falar com seu senhor, entretanto, encontraram-no no meio da rua. O lavrador saudou-o e perguntou onde ia. Ele respondeu que ia recrear-se na sua casa.
    —Por minha fé —disse Garín—, que isto não me molesta, nem me desagrada: você poderá ver o mais galhardo cavaleiro da terra.
    —Por minha fé —atalha o senhor—, não é esta precisamente minha intenção, mas prendê-lo. É um mercador que deve vender cavalos e se faz passar por cavaleiro.
    —Vá! —disse Garín—. De muito vil assunto me falam. Eu sou seu vassalo e você meu senhor, mas aqui mesmo lhe devolvo sua comemoração. Agora mesmo o desafio, em meu nome e de toda minha linhagem, antes que tolerar que em minha casa faça a este alguma inconveniência.
    —Nunca pretendi fazê-la, assim Deus me valha —diz o senhor—, e sua casa e seu hóspede só receberão de mim honra; não precisamente, a minha fé, porque me tenha aconselhado isso e tenha sido admoestado.
    —Muito obrigado —diz o lavrador—, e será para mim uma grande honra se vier a meu hóspede.
    Aproximam-se um ao outro e vão juntos em seguida, até chegar à casa onde estava meu senhor Gauvain. Quando este, que tinha muito boa criação, viu-o, levantou-se e disse:
    —Bem vindo seja.
    Os dois saudaram-no e sentaram-se ao seu lado. O senhor daquele país lhe perguntou por que durante todo o dia, já que tinha vindo ao torneio, absteve-se de tornear. Ele, sem negar, porque isso lhe produziu rubro e vergonha, conta-lhe em seguida que um cavaleiro o acusava de traição e que ia a uma corte real defender-se.
    —Justo motivo teve, sem dúvida alguma —disse o senhor—. Mas onde será esta batalha?
    —Senhor —responde—, devo me apresentar ante o rei de Escavalón, e vou pelo caminho mais reto, imagino.
    (VS. 5318-5400)
    —Eu lhe darei uma escolta que lhe conduzirá —disse o senhor—. Como precisa passar por uma terra muito pobre, dar-lhe-ei mantimentos e cavalos para levar.
    Meu senhor Gauvain responde que não tem necessidade de aceitá-lo; pois, se os pode encontrar à venda, terá grande abundância de mantimentos. Também bom albergue e tudo o que necessite, vá onde vá, ele não aceita o oferecimento.
    Nisso o senhor levanta para ir-se, todavia ao fazê-lo vê que pela outra parte vem sua filha pequena, a qual imediatamente abraçou ao Gauvain pelas pernas e dizendo:
    —Gentil senhor, me escute, que venho quedar-me em seus pés, por minha irmã, que me pegou. Faça-me justiça, se o agradar.
    Meu senhor Gauvain ficou calado, porque não sabia a quem se referia. Passou a mão pela cabeça da donzela ela sai dele e diz:
    —Com você falo, gentil senhor, queixo-me de minha irmã, a qual não quero, nem amo, porque por sua causa hoje, fez-me uma grande afronta.
    —E a mim, formosa, o que me diz respeito? —diz ele—. Que justiça posso lhe fazer?
    O senhor, que já se despediu, para ouvir o que sua filha pedia lhe disse:
    —Filha, quem vos manda vir reclamar ante os cavaleiros?
    E Gauvain perguntou:
    —Amável senhor, esta é, pois, sua filha?
    —Sim —responde o senhor—, mas não faça caso de suas palavras. É muito menina, uma boba criatura amalucada.
    —Sim, mas eu seria muito grosseiro —diz meu senhor Gauvain— se não escutasse o que quer. Diga-me —acrescenta—,minha doce e boa menina, que justiça poderia lhe fazer de sua irmã, e como?
    —Senhor, só é preciso que amanhã, por amor a mim, agrade-me entrando armado no torneio.
    —Diga-me, amiga querida, se alguma outra sua vez viu necessidade de requerer a algum cavaleiro.
    —Nunca, senhor.
    —Não faça caso do que diz —interrompe o senhor—, e não escute suas tolices.
    Meu senhor Gauvain lhe disse:
    —Senhor, assim Deus me ajude, há dito umas criancices tão graciosas, como qualquer donzela tão pequena, que não o negarei; já que o deseja, amanhã serei por um momento seu cavaleiro.
    —Agradeço-lhe muito, gentil senhor cavaleiro— disse ela, que estava tão contente que se inclinou a seus pés.
    Então partiram sem dizer nada mais. O senhor coloca sua filha no pescoço do cavalo. Pergunta-lhe porque surgiu tal questão. Conta-lhe a verdade de cabo a rabo, dizendo:
    —Senhor, era-me muito desagradável ouvir minha irmã que assegurava que Meliant de Liz era o melhor e o mais formoso de todos. Eu, que tinha visto abaixo no prado este cavaleiro, não pude evitar contradizê-la afirmando que via um mais formoso. Por isso minha irmã me chamou néscia menina e me surrou, e maldito seja o que lhe divertiu. Deixaria-me cortar as duas tranças até a nuca, o que me afetaria muito, em troca de que no dia de amanhã meu cavaleiro, em meio a briga, derrubasse Meliant de Liz. Cessariam então os gritos de minha senhora irmã, que hoje sustentou uma grande discussão zangando todas as damas; mas, à grande vento pouca chuva.
    (VS. 5401-5493)
    —Formosa filha — diz o senhor—, recomendo-lhe e permito-lhe, por ser de grande cortesia, que lhe envie algum objeto pela amizade, seja uma manga, seja uma touca.
    Ela, que era muito inocente, responde-lhe:
    —Muito grata o farei, se você disser; mas, minhas mangas são tão pequenas que não ousaria lhe enviar uma. Talvez não a apreciasse em nada.
    —Filha —disse o senhor — , já pensei nisso. Agora cale-se, que estou muito satisfeito.
    Assim falando, leva-a entre seus braços. Grande prazer proporciona que a abrace e a agarre, até que chegam ante o palácio. Quando a outra o viu chegar levando diante à pequena, sentiu grande sanha em seu coração e lhe disse:
    —Senhor, de onde vem minha irmã, a Donzela das Mangas Pequenas? Já sabe muitas manhas e muitas argúcias, e se aviva muito breve. Mas onde a levastes?
    —E a você o que importa? —responde ele—. Deveria calar-se, que ela vale mais que você. Pegou e puxou suas tranças, o que muito me pesa. Não obrou com cortesia.
    Ficou muito turvada pela rixa e reprimenda de seu pai.
    Este tirou de um cofre, um tecido de seda vermelha, cortou, fez uma manga muito longa e folgada; chamou sua filha e lhe disse:
    —Filha, levante amanhã bem cedo e vá ao cavaleiro antes de sair. Dê-lhe por amor esta manga nova, e que a leve quando for ao torneio.
    Ela responde a seu pai que, assim que veja amanhecer a alvorada clara, despertará com muito prazer e se lavará e se comporá.
    Depois destas palavras o pai se foi. Ela muito agraciada rogou à todos os seus acompanhantes que não a deixassem dormir muito pela manhã e que se apressassem a despertá-la assim que vissem amanhecer, se realmente queriam seu amor.
    Cumpriram-no fielmente, pois assim que viram pela madrugada quebrar a alvorada, fizeram-na vestir-se e levantar-se. A donzela se levantou cedo. Completamente só foi ao albergue de meu senhor Gauvain. Não chegou tão cedo, porque todos se levantaram antes para ir ao monastério ouvir uma missa cantada para eles. A donzela aguardou na casa do lavrador até que rezaram longamente e ouviram tudo o que deviam ouvir. Quando retornaram do monastério, correu para meu senhor Gauvain e lhe disse:
    —Deus o salve e lhe dê honra no dia de hoje. Mas, por meu amor leve esta manga que lhe trago.
    (VS. 5494-5583)
    —De bom grado a levarei e muito agradeço, amiga —respondeu meu senhor Gauvain.
    Não demorou muito para começar armarem-se os cavaleiros. Reuniram-se fora da vila. Por outro lado as donzelas e todas as damas do castelo, subiram às muralhas e viram a chegada das comitivas de cavaleiros fortes e bravos. Adiantando-se a todos Meliant de Liz galopa para o campo de batalha, deixando seus companheiros atrasados duas trampadas e meia. Quando a amiga vai a seu amigo, não pode calar a língua, e diz:
    —Senhoras, devem ver o qual possui a fama e o senhorio da cavalaria.
    Meu senhor Gauvain precipita-se tanto quanto pode correr seu cavalo, para aquele que não teme e que faz pedaços de sua lança. Meu senhor Gauvain ataca-o. Causa-lhe tal quebra, que o deixa em terra de barriga para cima. Tende a mão para seu cavalo, agarra-o por freio, entrega-o a um pajem. Diz para entregar àquela pela qual torneia. Diz ainda que envia o primeiro troféu que ganhou naquele dia, porque quer que seja dela. O pajem leva o cavalo com sua sela à donzela, que de uma janela da torre tinha visto cair Meliant de Liz, e diz:
    —Irmã, agora pode ver pelo chão Meliant de Liz, ao qual tanto ponderou. Só o bom conhecedor sabe elogiar justamente. Agora confirma-se o que disse ontem. Agora se vê bem claro, assim Deus me salve, quem vale mais.
    Assim, com toda a intenção, vai mortificando sua irmã. Ela cansada da gozação diz:
    —Cale-se, menina! Se voltar a ouvir dizer uma só palavra, darei tantas bofetadas que os pés não lhe agüentarão direita.
    —Não tente Deus, irmã —diz a donzela pequena—, porque não é justo que me pegue por haver dito a verdade. O certo é que eu o vi bem derrubado, e você tão bem como eu; e me parece que ainda não tem forças para levantar-se. Embora arrebentado, devo-lhe acrescentar que não há aqui dama que não o veja espernear jogado no chão.
    A outra, não podia suportá-lo. Tinha lhe dado um soco, mas as damas que estavam ao redor não deixaram que a pegasse. Então viram o escudeiro vindo, que levava o cavalo preso com a mão direita, o qual, quando encontrou à donzela sentada em uma janela, o ofereceu. Deu-lhe mais de sessenta obrigado, e fez guardar o cavalo. O pajem foi transmitir as graças a seu senhor, o qual bem parecia ser o amo e senhor do torneio, pois não há cavaleiro, por mais destro que seja, que se lhe aponta com a lança, não lhe solte os estribos. Nunca tinha tido tanta ânsia de ganhar corcéis. Quatro, que ganhou com seu esforço, ofereceu naquele dia: o primeiro o enviou à donzela pequena; com o segundo correspondeu aos cuidados da mulher do lavrador, a quem lhe agradou muito; e as duas filhas deste tiveram o terceiro e o quarto.
    (VS. 5584-5677)
    Finaliza o torneio. Meu senhor Gauvain retorna pela porta levando a primazia de um campo e de outro. Ainda não era meio-dia quando saiu do campo de batalha. Em sua volta acompanhava meu senhor Gauvain, uma grande comitiva de cavaleiros, enchendo a vila. Todos quantos o seguiam perguntavam e queriam saber quem era e de que país. Frente à porta de seu albergue encontra à donzela, que assim que o viu lhe sujeitou o estribo, saudou-o e lhe disse:
    —Quinhentas mil vezes obrigada, gentil senhor.
    Ele, compreendendo bem o que queria dizer, respondeu-lhe muito afável: .
    —Donzela, minha cabeça estará branca antes de que me desentenda de lhe servir, em qualquer lugar que me ache. Por mais afastado que esteja de você, não haverá obstáculo que me impeça, se souber que necessita, acudir assim que receba a primeira mensagem.
    —Muito obrigada —disse a donzela.
    Conversavam quando chegou à praça o pai, que pôs todo seu empenho em que meu senhor Gauvain ficasse aquela noite e se albergasse em sua casa; mas antes lhe pede e lhe roga que, se o tiver a bem, diga-lhe seu nome. Meu senhor Gauvain declinou o convite e lhe disse:
    —Senhor, meu nome é Gauvain; jamais ocultei meu nome quando perguntado, mas nunca o disse se antes não me pedia.
    Quando o senhor ouviu que era meu senhor Gauvain, seu coração se encheu de alegria e lhe disse:
    —Fique, senhor! Admita que esta noite lhe obsequie, que ontem não o fiz, e lhe posso jurar que jamais vi cavaleiro a quem queria honrar tanto.
    Todavia, meu senhor Gauvain não aceitou o que tanto lhe rogava. A donzela pequena, que não era néscia, nem má, ajoelhou aos seus pés para beijá-los recomendando-o a Deus. Meu senhor Gauvain lhe perguntou com que intenção o tinha feito, e lhe respondeu que lhe tinha beijado o pé com o propósito de que se lembrasse dela em qualquer lugar que estivesse. E lhe disse:
    —Não duvide! Valha-me Deus, formosa amiga, desde que parta daqui jamais lhe esquecerei.
    Então partiu, depois de despedir-se de sua hospedeira, de toda a gente, todos o recomendaram a Deus.


    GAUVAIN EM ESCAVALÓN

    Meu senhor Gauvain dormiu aquela noite em uma abadia, onde não lhe faltou nada. Ao dia seguinte, muito de amanhã, ia cavalgando por seu caminho e deparou-se com uns veados que pastavam nos confins de uma floresta. Disse ao Yonet que se detivera, que se dedicasse ao melhor de seus cavalos, que levava com a mão direita. Pediu para preparar uma lança muito resistente e forte; que se fizesse cargo de seu cavalo; para não se entreter e sem demora lhe entregar o cavalo e a lança. Gauvain fica perseguindo os veados. Deu tantas voltas e os enganou com tantos ardis, que apanhou um branco em um sarçal atingindo-lhe no pescoço com a lança. Mas, o veado salta como um cervo e lhe escapa. Ele o persegue e está a ponto de alcançá-lo, e o tivesse apressado se seu cavalo não tivesse perdido a ferradura de uma de suas patas dianteiras. Meu senhor Gauvain volta a empreender o caminho atrás de seu impedimento, pois nota que seu cavalo se debilita com seu peso, e isso lhe preocupa muito. Não sabe porque coxeia, a não ser que a pata tivesse torcida. Chamou em seguida Yonet e lhe ordenou que o desmontasse; que visse o que acontecia com seu cavalo, que coxeava excessivamente. Segue suas ordens, levanta-lhe uma pata, vê que lhe falta uma ferradura, e diz:
    (VS. 5678-5780)
    —Senhor, terá que ferrá-lo; não anda se não seguir muito devagar até que encontremos um ferrador que possa voltar a ferrá-lo.
    Foram seguindo seu caminho até que viram um grupo de gente que saía de um castelo e que avançava por um meio-fio. Adiante, iam a pé, uns moços arregaçados que levavam cães; logo vinham caçadores com arcos e flechas, e depois cavaleiros. Detrás destes cavaleiros iam dois em dois corcéis; um deles era jovem, o mais gentil e galhardo de todos. Este foi o único que saudou meu senhor Gauvain, dando-lhe a mão e lhe disse:
    —Senhor, detenho-lhes. Vão ali de onde eu venho e entrem em minha mansão. Já é hora e ocasião de albergarem-se, se não lhes incomodar. Tenho uma irmã muito cortês que lhes tratará com muita atenção. Senhor, este que vêem meu lado lhes conduzirá.
    Dirigindo-se ao aludido, ordenou-lhe:
    —Gentil companheiro, vá com estes senhores e os leve à minha irmã. Após apresentá-los, diga que lhe encarrego, em nome do amor e da grande fé que deve existir entre ela e eu, que ame e queira a este cavaleiro como a mim; trate-o como me trataria, que sou seu irmão. Dê-lhe distração; faça-lhe companhia; sejam todos agradáveis, até que retornemos. Depois dela recebê-lo, com toda a amabilidade, sigam-nos rapidamente, porque eu voltarei para lhe fazer companhia o mais rápido que possa.
    O cavaleiro empreende a marcha. Conduz a meu senhor Gauvain ali onde todos o odeiam de morte; todavia, não o conhecem porque nunca o viram, e ele, por sua vez, não crê ter de precaver-se. Contempla a situação do castelo, que estava edificado em um braço de mar; vê os muros e a torre, tão forte que nada pode temer. Olha a vila toda, povoada de gente muito agradável; os bancos de câmbio de ouro e de prata cobertos de moedas; as praças e as ruas cheias de bons menestréis entregues a diversos ofícios. São tão diversos os ofícios que um faz cascos, outro armaduras, um selas, outro escudos; armação da sela de montar, outro esporas; uns lustram espadas; outros batem tecidos, outros os tecem, outros os penteiam e outros os tingem. Outros fundem prata e ouro, para fazerem obras ricas e preciosas: taças, copos, tigelas, jóias incrustadas em esmaltes, anéis, cinturões e broches. Dir-se-ia e acreditar-se-ia que a vila estava sempre em feiras, de tanta riqueza estava cheia: cera, pimenta, grão, peles de arminho e cinzas; e toda classe de mercadorias.
    (VS. 5781-5874)
    Olhando tudo, detendo-se em cada posto, chegaram à torre, da qual saíram pajens que recolheram todos os cavalos e toda a bagagem. O cavaleiro entrou na torre, só com meu senhor Gauvain dando-lhe a mão. Conduziu-o à câmara da donzela, dizendo:
    —Formosa amiga, seu irmão envia saúde recomendando que este senhor seja honrado e servido; não o façam a contra gosto, mas, com todo o coração, como se você fosse sua irmã e ele seu irmão. Procure não se esquivar de fazer toda sua vontade; seja liberal, franca e amável. Cuide dele, que eu vou, porque devo seguir seu irmão no bosque.
    Ela, prazerosamente, diz:
    —Bendito seja quem me enviou tal companhia como esta; quem me proporciona tão gentil companheiro não me odeia, bem ao contrário. Gentil senhor —acrescenta a donzela—, venha sentar-se aqui ao meu lado. Porque o vejo valente e gentil. Por meu irmão que me pede isso, far-lhe-ei a melhor companhia.
    Em seguida o cavaleiro se volta, pois não permanece mais com eles. Meu senhor Gauvain fica. De modo algum se queixa de estar sozinho com a donzela, que era muito cortês e muito formosa. Era tão bem educada que não podia imaginar alguém vigiando ao ficar só com ele. Ambos falavam de amor, porque se falassem de outra coisa, só perderiam o tempo. Meu senhor Gauvain solicita amores, roga-lhe e lhe diz que toda sua vida será seu cavaleiro; e ela não o rejeita, ao contrário o aceita muito de bom grado.
    De repente entrou ali, o que muito lhes incomodou, um lavrador que reconheceu meu senhor Gauvain. Encontrou-os beijando-se e desfrutando muito. Assim que viu aquele prazer não pôde manter a boca calada e gritou com grande força:
    —Mulher, maldita seja! Deus a aniquile e a desoriente porque deixa ser acariciada pelo homem que mais deveria odiar em todo mundo; beija-o e abraça-o. Faz o que é bem próprio que faça, mulher desafortunada e néscia; porque com suas mãos e não com a boca, deveria lhe arrancar o coração das vísceras. Se seus beijos lhe chegarem ao coração, arranca o coração das vísceras; mas teria feito melhor se o tivesse destroçado com as mãos, era o que devia fazer. Nada tem de mulher a que odeia o mal e ama o bem. Equivoca-se quem continuar chamando-a mulher, porque perde o nome quando só ama o bem. Bem vejo que você é mulher, porque o que se senta a seu lado matou seu pai e você o beija. Quando a mulher consegue o que deseja, pouco lhe importa todo o resto.
    Ao acabar estas palavras sai, rapidamente, antes de que meu senhor Gauvain lhe pudesse dizer nada. Ela caiu no pavimento e esteve longo tempo desvanecida. Meu senhor Gauvain levanta-a muito amargurado e doído pelo temor que ela havia sentido. Quando retornou em si disse:
    (VS. 5875-5958)
    —Ah, mortos estamos! Muito injustamente morrerei hoje por você, e você, ao que acredito, por mim. Suponho que virá aqui a plebe desta vila, e logo haverá mais de dez mil aglomerados diante desta torre. Todavia, aqui dentro há muitas armas, com as quais lhe armarei muito em breve. Um mestre só poderia defender esta abóbada contra toda uma hoste.
    Muito intranqüila corre em busca das armas. Quando estava revestido com a armadura, tanto ela como meu senhor Gauvain sentiram-se mais seguros; mas como este, por desgraça, não pôde conseguir escudo, fez um com um tabuleiro de xadrez, e lhe disse:
    —Amiga, não necessito que me busque outro escudo.
    Atirou as peças pelo chão, que eram de marfim, dez vezes maiores e do mais duro osso que qualquer outro xadrez. Viesse quem fosse, a partir de agora estava disposto a defender a porta e a entrada da torre, porque estava protegido com Excalibur, a melhor espada que jamais existiu, que talha ao ferro como se fora madeira.
    O lavrador, que tinha saído dali, encontrou o prefeito, os regentes e grande multidão de burgueses sentados juntos com os vizinhos, os quais não estavam acostumados alimentarem-se de peixes, porque estavam gordos e roliços.
    Com grande celeridade chegou à reunião, dizendo:
    —Às armas, senhores! Vamos prender ao traidor, Gauvain, que matou meu senhor.
    —Onde está? Onde está? —dizem uns e outros.
    — Dou-lhes fé de que encontrei Gauvain, o traidor comprovado, entretendo-se naquela torre —lhes diz—; abraça e beija a nossa donzela, e ela não tão somente não o rechaça, mas sim gosta e o deseja. Venham em seguida, que iremos prendê-lo. Se o entregarem a meu senhor, far-lhe-ão um grande serviço. O traidor merece ser tratado afrontosamente; mas, não obstante, capturem-no vivo, porque meu senhor o preferirá vivo que morto, e não sem razão, que os mortos não têm nada que temer. Alvorocem toda a vila e cumpram com o dever.
    Na mesma hora levantaram-se o prefeito e todos os regentes. Puderam então ver vilões furiosos tomando tochas e lanças. Via-se quem agarrasse: escudo sem tiracolo, porta e passador de sela. A divulgação espalha-se ao bando reunindo todo o povo. Tocam os sinos da comunidade para que não falte ninguém; nenhum há tão carente que não vá com forca, malho, pico ou suplício. Para matar o lesma nunca houve tanto alvoroço na Lombardía, não há ninguém tão humilde que deixe de ir com alguma arma.
    Eis aqui meu senhor Gauvain morto, se Deus não o iluminar. A donzela prepara-se valiosamente a lhe ajudar, e grita aos da comunidade:
    (VS. 5959-6055)
    —Hu, hu, vilarejo, cães raivosos, indignos servos! Que diabo lhes traz aqui? O que procuram? O que querem? Que Deus os estorve todo prazer! Valha-me Deus, que não levarão o cavaleiro que está aqui, pois antes, se a Deus agrada, haverá não sei quantos mortos e aleijados. Não chegou aqui voando, nem por caminhos ocultos, mas o enviou meu irmão em qualidade de hóspede, recomendando muito que o tratasse como a sua própria pessoa. Consideram-me vilã se lhe fizer companhia, der alegria e distração rogada por meu irmão? Quem quer escutá-lo que o escute: não o fiz por nenhuma outra razão, nem jamais imaginei loucura. O que mais lhes censuro é que me façam tanta desonra desembainhando suas espadas à porta de minha câmara, sem saberem dizer por que razão. Mesmo sabendo, nada me disseram, o que é para mim uma grande afronta.
    Enquanto ela dizia o que tinha vontade, os outros golpeavam a porta com suas tochas até parti-la em duas metades. O porteiro de dentro, com firmeza, interceptou-os com sua espada premiou tão bem o primeiro, que outros se acovardaram e nenhum atrevido seguiu adiante; todos cuidam de si mesmo e temem por sua cabeça. Nenhum deles é tão valente que não tenha medo do porteiro, nem há quem é capaz de tocá-lo com a mão, nem que queira avançar um só passo.
    A donzela atira-lhes com muita gana as peças de xadrez que havia pelo chão. Ata a roupa e arregaça-a, jurando encolerizada que, se puder, antes de morrer fará aniquilar a todos. Mas os vilões retiram-se e decidem afundar a torre por cima deles, senão o entregarem; todavia, aqueles se defendem mais e melhor com as grossas peças de xadrez que lhes atiram. A maioria põe-se a correr para trás porque não pode suportar o assalto. Com picos de aço escavam a torre a fim de derrubá-la, já que não ousam assaltá-la, nem combater a bem defendida porta. Têm que me acreditar, se lhes agradar, que a porta era tão estreita e baixa que só com muita dificuldade poderiam-na franquear dois homens ao mesmo tempo; por isso, um valente só podia defendê-la e guardá-la. Não era necessário melhor porteiro que o que ali havia, para defender até os dentes, homens desarmados e maltratá-los.
    De tudo isto, nada sabia o senhor que o albergara. Retornou o mais rápido que pôde do bosque onde fora caçar. Aqueles, enquanto isso, escavavam a torre com picos de aço. De repente, eis aqui Guinganbresil, que nada sabia de toda esta aventura. Chegou ao castelo galopando e ficou muito atônito pelo ruído e o martelar que faziam os vilões. Não sabia se meu senhor Gauvain estava no castelo. Quando se inteirou disso, ordenou que ninguém, fosse quem fosse, apreciaria sua pessoa, atrevendo-se a remover uma só pedra que fosse. Responderam-lhe que por ele não deixariam o que tinham empreendido. Que hoje mesmo derrubariam-no, sepultando sua própria pessoa caso entrasse no castelo. Quando viu que sua proibição não servia de nada, propôs-se ir procurar ao rei e lhe trazer para o alvoroço que tinham iniciado os burgueses. Como o rei já estava retornando do bosque, saiu ao encontro e lhe explicou:
    (VS. 6056-6148)
    —Senhor, grande afronta fez seu prefeito e seus regentes, que desde esta manhã assaltam e derrubam a torre. Se não o pagarem muito caro, não lhes perdoarei isso. Como bem sabe, eu tinha acusado Gauvain de traição, é ele quem albergo em minha mansão. Seria muito justo e razoável que, a partir do momento em que o converti em hóspede, não recebesse aqui nem desonra, nem ultraje.
    E o rei respondeu a Guinganbresil:
    —Mestre, não receberá tal enquanto nós negarmos. Muito me zanga e me pesa o que ocorreu. Não tem que me surpreender que minha gente o odeie para a morte; mas, se puder, evitarei a prisão e as feridas desta pessoa, porque é seu hóspede.
    Assim chegaram à torre. Encontraram-na rodeada de gente movendo-se em muito alvoroço. Disse ao prefeito para ir embora e para os da comunidade que se retirassem. Foram-se, não ficou nenhum, porque esta foi a vontade do prefeito.
    Na praça havia um lavrador, nascido naquela vila, o qual aconselhava todos do país por ter muito bom julgamento.
    —Senhor —disse este lavrador—, agora devo lhe aconselhar bem e de boa fé. De modo algum é surpreendente que quem matou seu pai a traição tenha sido assaltado, pois aqui, como sabem, é justamente odiado a morte. Mas o fato de ter sido albergado por você deve garantir isso e proteger de ser preso e de morte. Se não quer mentir, deve protegê-lo e garanti-lo. Guinganbresil, pelo que vejo, foi a corte do rei o acusar de traição. Não deve ocultar que ele veio a sua corte defender-se; mas, eu o aconselho a postergar esta batalha por um ano. Que ele vá procurar a lança cujo ferro sangra sempre; e nunca está tão enxuto, que dele não caia uma gota de sangue. Ou que lhes entregue esta lança, ou que fique a sua mercê em tal prisão, como está aqui. Então encontrarão melhor pretexto do que o que teriam agora para retê-lo preso. Asseguro que não poderiam lhe impor trabalho mais difícil de levar a termo. Ao que se odeia terá que lhe impor o mais oneroso que se pode e que se sabe; e para torturar a seu inimigo não saberia lhes aconselhar nada melhor.
    O rei se atém a este conselho. Entrou na torre. Ao ver sua irmã, encontrou-a muito encolerizada. dirigiu-se para ele, junto com meu senhor Gauvain, que não muda a cor nem treme por medo que tenha. Guinganbresil aproximou-se dele trazendo abraçado a donzela, que estava muito mudada, disse-lhe inutilmente estas palavras:
    —Senhor Gauvain, senhor Gauvain, eu lhes havia tomado sob minha guarda, mas, impus a condição de que não fosse tão ousado de entrar no castelo, nem na cidade que fosse de meu senhor, e não o permito fazê-lo. Agora não é momento de debater o que aqui fez.
    (VS. 6149-6242)
    Um sábio lavrador disse:
    —Senhor, assim Deus me ajude, tudo se pode resolver. A quem se deve exigir contas se os vilões o assaltaram? O pleito não teria falhado no dia do julgamento. Todavia, se procederá segundo o parecer do rei, meu senhor, que está aqui. Encarrega-me e eu digo que, a condição de que isso não pese nem a você, nem a ele, ambos posterguem, até dentro de um ano, esta batalha. Meu senhor Gauvain se vai, depois de haver tomado meu senhor seu juramento: que antes de um ano, sem mais prorrogação, entregar-lhe-á a lança cuja ponta goteja o sangue claro que chora. Está escrito que chegará a hora na qual todo o reino de Logre, que antigamente foi a terra dos ogros, será destruído por esta lança. Este juramento e esta fiança quer ter meu senhor o rei.
    —Na verdade —disse meu senhor Gauvain— antes me deixe morrer ou adoecer sete anos aqui dentro, do que fazer este juramento e comprometer minha palavra. Não tenho tanto medo à morte que não prefira sofrê-la e suportá-la com honra a viver com vergonha e perjurar.
    —Gentil senhor —disse o lavrador—, no sentido que quero dizer, isso não lhe causará desonra, nem passará a pior estado. A meu ver: você jurará que colocará todo seu empenho em procurar a lança; e se não voltar com ela, reintegrar-lhe-ão nesta torre e completará o juramento.
    —Tal como você diz —respondeu—, estou disposto a prestar o juramento.
    Imediatamente lhe trouxeram um precioso relicário, e ele jurou que poria todo seu empenho em procurar a lança que sangra.
    Assim suspendeu-se a batalha entre ele e Guinganbresil. Foi postergada um ano e escapou de grande perigo quando desta já estava salvo. Antes de sair da torre, despediu-se da donzela. Disse a todos os seus pajens que voltassem para sua terra, levando todos os cavalos, exceto Gringalet. Os pajens separam-se de seu senhor e vão. Não tenho vontade de falar mais deles, nem da dor que sentiram.
    Aqui precisamente o conto cala-se sobre meu senhor Gauvain e começa a tratar de Perceval.




    PERCEVAL E O ERMITÃO

    A história nos diz que Perceval perdeu a memória de tal sorte que não se lembrou mais de Deus. Cinco vezes passaram abril e maio, ou seja, cinco anos inteiros, sem que entrasse em monastério, nem adorasse a Deus, nem sua cruz. Passou cinco anos, mas, não por isso, deixou de procurar cavalarias. Ia em demanda de extraordinárias aventuras, cruéis e duras; quando as encontrou mostrou-se digno delas. Enviou detentos a corte do rei Artur e sessenta cavaleiros de mérito no transcurso de cinco anos. Assim, passou cinco anos sem lembrar-se jamais de Deus. Ao cabo destes cinco anos aconteceu que ia caminhando, como estava acostumado, por um deserto, armado de todas suas armas, quando encontrou três cavaleiros; com eles até dez damas, com as cabeças cobertas com capuzes, andando a pé, descalças e vestidas de tecido simples, ordinário. Estas damas, pela salvação de suas almas e pelos pecados cometidos, faziam penitência a pé, surpreenderam-se muito ao vê-lo armado sustentando lança e escudo. Um dos três cavaleiros o parou e disse:
    (VS. 6243-6330)
    —Amável amigo, acaso não crê em Jesus Cristo, que escreveu a nova lei e deu aos cristãos? Porque, na verdade, não é bom, nem razoável, salvo grande engano, levar armas no dia que Jesus Cristo foi morto.
    Ele, que tão torturado tinha o coração, não se preocupava com o dia, a hora, nem com o tempo, respondeu:
    —Que dia é, pois, hoje?
    —Que dia senhor? Não sabe? Hoje é sexta-feira santa, dia em que se deve adorar a cruz e chorar os pecados, pois, hoje foi cravado na cruz o que foi vendido por trinta dinheiros. Aquele, que livrou de toda culpa. Viu que a culpa atava e manchava todo mundo e se fez homem por nossos pecados. É verdade que foi Deus e homem, nascido de quão virgem concebida pelo Espírito Santo, com o qual Deus recebeu carne e sangue. Foi divindade coberta por carne humana, isto é coisa certa. Quem nisto não crê, não lhe verá a face. Nasceu de Nossa Senhora. Tomou forma e alma de homem com sua Santa divindade. Quem, verdadeiramente, em tal dia como hoje, pereceu na cruz e tirou do inferno todos os seus amigos. Muito santa foi aquela morte, que salvou aos vivos; e aos mortos os ressuscitou de morte a vida. Os falsos judeus, que deveriam ser mortos como cães, por ódio que lhe tinham, fizeram grande mal a si mesmos e grande bem a nós, quando o elevaram na cruz, pois eles se perderam e nos salvaram. Todos os que nele acreditam devem fazer hoje penitência; e, se acredita em Deus, hoje não deve levar armas nem em campo, nem pelo caminho.
    —E, de onde vêm agora, assim? —perguntou Perceval.
    —Senhor, aqui perto. Fomos a um mestre, um santo ermitão que habita nesta floresta, e que é um varão tão santo, que só vive da glória de Deus.
    —Por Deus, senhores, o que fizeram ali? Que pediram? O que buscavam?
    —O que, senhor? —disse uma das damas— Pedimos conselhos para nossos pecados e nos confessamos. Fizemos o mais importante, que pode fazer um cristão, que queira ser semelhante a Nosso Senhor.
    Ouvindo isso, Perceval chorou e propôs ir falar com o mestre.
    —Queria ir lá —disse Perceval—, se eu soubesse o atalho e o caminho.
    —Senhor, se quiser ir, deve seguir sempre reto neste atalho, pelo qual viemos. Através do bosque cerrado e denso. Deve observar os ramos que, com nossas próprias mãos, colocamos enquanto passamos. Fizemos estes sinais para que não se extraviasse quem quisesse ir ao santo ermitão.
    (VS. 6331-6423)
    Então, recomendaram-se, mutuamente, a Deus e não disseram nada mais. Interna-se no caminho. O coração lhe suspirava nas vísceras, porque se sentia culpado para com Deus, pelo que se arrependia muito; e chorando atravessou todo o bosque.
    Quando chegou ao templo, desmontou, desarmou-se, atou o cavalo a um carvalho e entrou na morada do ermitão. Encontrou-o em uma capela, com um presbítero e um coroinha. Na verdade, quando começavam o mais alto e mais doce serviço que possa fazer-se na Santa Igreja. Assim que entrou na capela, Perceval ficou de joelhos. O bom homem, ao vê-lo muito singelo, chorando de tal sorte, que as lágrimas chegavam emanando até o queixo, chamou-o. Perceval, que temia muito ter ofendido a Deus, ajoelhou-se aos pés do ermitão. Inclinou-se diante dele, juntou suas mãos rogando que lhe desse conselho, pois, tinha muita necessidade. O bom homem o induziu à confissão. Não alcança remissão, senão se confessar e se arrepender.
    —Senhor —disse ele—, faz cinco anos que eu não sei onde me encontro, nem amei a Deus, nem acreditei nele e não fiz a não ser mal.
    — Ah, bom amigo! —disse o mestre—Diga-me porque tem feito isto e pede a Deus que tenha piedade da alma de seu pecador.
    —Senhor, estive uma vez na casa do Rei Pescador e vi a lança cujo ferro, sem dúvida alguma, sangra; e nada perguntei sobre aquela gota de sangue, que vi pender da ponta do ferro branco. Logo, na verdade, não a reparei. Não sei a quem serve o Graal que ali vi, e isso me doeu tanto depois, que desejei a morte. Esqueci Nosso Senhor e não lhe pedi perdão, nem fiz nada, que eu saiba, para que pudesse ser perdoado.
    —Ah, gentil amigo! —disse o mestre— Diga-me agora, como se chama.
    —Perceval, senhor.
    Ao ouvir esta palavra o mestre suspirou, por reconhecer o nome, e disse:
    — Irmão, muito se prejudicou com um pecado do qual você não sabe nada: trata-se da dor que sentiu sua mãe quando se separou dela, que caiu desvanecida no chão, com a cabeça na ponte, diante da porta, e por esta dor morreu. Devido o pecado que há em você, ocorreu não perguntar nada sobre a lança, nem sobre o Graal, por isso, vieram muitos males; e tem que saber, que não sobreviveria tanto, se ela não o tivesse encomendado a Nosso Senhor. Entretanto, suas palavras tiveram tal virtude, que Deus, em atenção à ela, preservou-o de morte e salvou-o da prisão. O pecado travou sua língua, quando viu diante de si o ferro, que jamais deixou de sangrar, e não perguntou a razão disso. Néscio critério foi o seu, quando não soube perguntar a quem serve o Graal. Aqueles que com ele se servem é meu irmão e minha irmã que foi sua mãe; e acredito que o rico Pescador é filho do rei que se serve naquele Graal. Não imaginava que nele há peixe, badejo, nem salmão. Com uma só hóstia, que leva neste Graal, o santo varão sua vida sustenta e vigoriza. Tão santa coisa é este Graal, e tão espiritual, que para sua vida não necessita nada mais, do que a hóstia que vai no Graal. Assim esteve doze anos sem sair da câmara onde viu entrar o Graal. Agora quero impor e dar penitência por seu pecado.
    (VS. 6424-6518 )
    —Assim o quero eu de todo coração, bom tio —disse Perceval—. Já que minha mãe foi sua irmã, deve-me chamar sobrinho e eu a você, tio; e devo lhe amar mais.
    —Verdade é, gentil sobrinho, mas agora escuta. Se tiver piedade de sua alma, arrependa-se seriamente. Antes de ir a outro lugar, vem todas as manhãs fazer penitência ao monastério, porque será proveitoso e não o deixe por nenhum motivo. Se encontrar onde haja monastério, capela ou paróquia, acode assim que soe o sino ou antes, se já está levantado, isso não o afligirá, porque prosperará muito sua alma. Ao começar a missa, se ficar fará muito bem; permanece até que o padre o haja dito e cantado tudo. Se fizer isto com vontade, poderá alcançar grande prêmio e conseguirá honra e paraíso. Ama a Deus, acredita em Deus, adora a Deus, honra aos barões e às damas veneráveis e ponha-se em pé na presença de clérigos; é um serviço que custa pouco e que Deus estima muito seriamente porque procede de humildade. Se uma donzela reclamar sua ajuda, ou uma dama viúva, ou uma órfã, presta-a, que será melhor para você. Esta esmola é muito cabal: ajude-as e obrará bem, procura não deixar de o fazer por nada. Isto é o que quero que faça por seus pecados, se quer recuperar a graça e tê-la sua. Diga-me agora se quer fazê-lo.
    —Sim, senhor; muito agradecido.
    —Rogo, que durante dois dias inteiros, permaneça aqui comigo, e que em penitência coma os mesmos mantimentos que eu.
    Perceval outorga tudo. O ermitão lhe confiou ao ouvido uma oração, e insistiu tanto, até que soube. Nesta oração mencionavam-se vários dos nomes do Nosso Senhor, e entre eles os mais sublimes, que boca de homem não deve pronunciá-los, a não ser, em transe de morte. Quando aprendeu bem a oração, proibiu-lhe pronunciar sob nenhum pretexto, salvo em grande perigo. E lhe assegurou:
    —Farei como diz, senhor.
    Ficou, ouviu o serviço e experimentou grande gozo. Terminado o serviço, adorou a cruz e chorou seus pecados. Naquela noite comeu o mesmo alimento do santo ermitão. So alimentou-se de acelga, repolho, alface, agrião, milho; pão de cevada e de aveia; e água clara da fonte. Seu cavalo teve uma terrina cheia de palha e cevada.
    Perceval recordou que, na sexta-feira santa, Deus recebeu morte e foi crucificado. Na Páscoa recebeu Perceval a comunhão muito dignamente.
    O conto aqui não fala mais longamente de Perceval. Ouviram falar muito de meu senhor Gauvain, antes de me ouvirem contar algo dele.


    GAUVAIN E A ORGULHOSA

    (VS. 6519-6604)
    Meu senhor Gauvain tanto andou desde que escapou da torre onde a comunidade lhe tinha assaltado, que ao meio-dia chegou a um outeiro e viu um carvalho alto, grande e tão frondoso dando uma boa sombra. Viu um escudo pendurado no carvalho e a seu lado uma lança direita. Encaminhou-se ao carvalho e viu a seu lado um pequeno cavalo norueguês, o que lhe surpreendeu muito, porque são coisas que não se emparelham, pelo que consta, armas e cavalo. Se o cavalo fosse um grande cavalo, acreditaria que algum vassalo, percorrendo o país para alcançar fama e mérito, teria subido naquela colina. Ao olhar ao pé do carvalho viu sentada uma donzela, que lhe pareceria muito formosa se estivesse contente e alegre; mas tinha os dedos fincados na trança para arrancar os cabelos e se esforçava em manifestar grande duelo. Doía-se por um cavaleiro ao qual muito freqüentemente beijava os olhos, o rosto e a boca. Quando meu senhor Gauvain se aproximou, viu que o cavaleiro estava muito ferido. Tinha o rosto destroçado; no meio da cabeça uma grave ferida de espada, por ambos os lados; no meio dos flancos, corria-lhe muito sangue. Com freqüência o cavaleiro se desvanecia pelo dano que tinha, até que finalmente se acalmou. Quando meu senhor Gauvain chegou, não sabia se estava morto ou vivo, e disse:
    —Formosa, o que pensa que o cavaleiro têm?
    Ela respondeu:
    —Já pode ver que suas feridas são muito perigosas, pois, da mais leve poderia morrer.
    Ele acrescentou:
    —Formosa amiga, desperte-o, não se compadeça, porque quero lhe perguntar novas do que ocorre nesta terra.
    —Senhor —disse a donzela—, antes de despertá-lo, deixaria esfolar-me viva, pois nunca quis tanto a nenhum homem, nem quererei a nenhum, enquanto eu exista. Bem néscia e estúpida seria agora, vejo que dorme e repousa, se fizesse-lhe algo de que pudesse se queixar de mim.
    —Pois eu, por minha fé, quero despertá-lo —disse meu senhor Gauvain.
    Então investe a lança e com o canto tocando-o um pouco na espora; foi tão brandamente, que não lhe causou nenhum dano. O cavaleiro despertou sem pesar, e até lhe agradeceu dizendo:
    —Senhor, agradeço muito, porque tão afável me sacudiu e despertou que não me produziu o menor dano. Mas, para seu bem, rogo que daqui não siga adiante, pois, obraria muito estupidamente. Detê-lo-iam, acredite em meu conselho.
    —Deter-me? E por que?
    —Eu lhe explicarei isso bem, por minha fé, se me quer escutar. Jamais pôde retornar cavaleiro por campos ou caminhos que foi para lá, pois, este é o limite de Galvoya. Não há cavaleiro que o franqueie e logo possa voltar. Nunca tornou nenhum, salvo eu, que estou tão maltratado que, ao que acredito, não viverei mais uma noite. Porque encontrei um cavaleiro, valoroso e ousado; forte e feroz; jamais dava com um tão valente nem me medi com um tão forte. Melhor será se voltar, do que descer desta colina, pois, a volta é muito árdua.
    (VS. 6605-6695)
    —A minha fé—disse meu senhor Gauvain— Eu não vim aqui para voltar. Poderia imputar-me como muito vil covardia, se tendo empreendido o caminho, voltasse. Seguirei adiante até que saiba e veja por que ninguém pode retornar.
    —Vejo que está disposto a fazê-lo —disse o cavaleiro maltratado—; seguirá adiante porque deseja ver crescer e elevar seu mérito. Não obstante, se isso não lhe pese, muito agradecido rogaria se Deus lhe outorgar a honra, que jamais alcançou cavaleiro algum (a qual eu acredito que nenhum a obterá absolutamente, nem você, nem outro), retorne aqui. Venha, se lhe agradar, se eu estiver morto ou vivo, ou se tiver melhorado, ou piorado. Se estiver morto, rogo, por caridade e pela santa Trindade, que tome conta desta donzela para que não receba afronta nem angústia. Faça de boa vontade, pois, Deus nunca criou, nem quis criar outra mais generosa, nem mais afável.
    Meu senhor Gauvain o concede. Acrescenta caso não seja dominado pelas dificuldades, prisão, ou qualquer outro impedimento, voltará para ele e dará à donzela o melhor apoio possível.
    Assim deixa-os e caminha. Sem deter-se em planícies, nem em florestas; até que vê um castelo muito forte. Um lado dava ao mar, com um porto muito grande e navios. Este castelo, que valia pouco menos que Pavía e era de grande nobreza, confinava pela outra parte com vinhedos e com um grande rio, que discorria abaixo e ia rodeando toda a muralha, até dar com seu curso no mar. Desta sorte, o castelo e o burgo estavam completamente circundados.
    Meu senhor Gauvain passou pela ponte. Quando chegou acima, no ponto mais compacto do castelo, encontrou num campo, sob uma árvore, uma doce donzela sozinha. Ele olhava seu rosto e seu pescoço, que eram mais branco que a neve. Um fino aro pôs na cabeça como coroa. Meu senhor Gauvain esporeia para a donzela, e esta lhe grita:
    —Calma, senhor, calma; devagarzinho, que vêm muito loucamente. Não se precipite tanto, que esbanja seu galope; é estúpido o que se empenha em vão.
    —Donzela. Deus lhe abençoe —disse meu senhor Gauvain—. Diga-me, formosa amiga, o que imagina ao recomendar-me tão logo mesura, se não sabe o porquê.
    —Sei, cavaleiro, a minha fé. Sei muito bem o que pensa.
    —O que é? —disse ele.
    —Quer me agarrar e me levar lá embaixo no pescoço de seu cavalo.
    —Disse a verdade, donzela.
    —Já sabia —disse ela—, porém, malharia quem tal coisa imaginou. Guarde bem de pensar que subirei em seu cavalo. Eu não sou dessas boba e tonta, com as quais os cavaleiros se divertem. Levam-nas nos cavalos quando vão a suas cavalarias; a mim você não levará. Não obstante, se ousasse, poderia ir me acompanhando. Se quer dar-se ao trabalho de ir procurar naquele jardim meu cavalo, eu iria consigo até que desgraça, desgosto, dor, vergonha e desdita caíssem sobre você em minha companhia.
    —Só basta ousadia para empreender isto, formosa amiga? —disse ele.
    —Sim, ao que parece, vassalo —disse a donzela.
    —E onde ficará meu cavalo, donzela, se passo pra lá? Porque não poderia passar por aquela pontezinha a qual vejo.
    —Não, cavaleiro; mas, deixe-o e você passa do outro lado a pé. Eu lhe guardarei o cavalo enquanto possa retê-lo. Todavia, apresse-se em voltar, porque se não ficar quieto, não poderei sujeitá-lo muito tempo, ou se por acaso tiram-no à força antes que você retorne.
    —É, diz a verdade —disse ele— Fica livre de responsabilidade, não se incomode, tanto se lhe tirarem, como se escapar; e não volte a falar mais nisso.
    Entrega-o e vai. Pensa em levar todas as armas consigo, acaso encontre no campo quem pretende vedar-lhe ou proibir-lhe que agarre o cavalo; antes haverá alvoroço e briga do que ele voltar sem trazê-lo. Em seguida atravessa a pontezinha, encontra muita gente reunida olhando-o admirados e dizem:
    —Cem diabos queime a donzela, que tanto dano tem feito! Má ventura haja seu corpo, porque jamais quis um mestre; e a tantos mestres tem feito cortar a cabeça que é uma grande dor. Cavaleiro que quer lhe levar o cavalo, ainda não sabe quão maus cairão sobre você se o tocar com sua mão. Cavaleiro, por que se aproxima? Não se aproximaria, se soubesse as grandes afrontas, os grandes danos e as grandes penas, que lhe chegarão, se o levar.
    Diziam todos e todas, porque queriam induzir meu senhor Gauvain que não fosse ao cavalo, e voltasse. Ele os ouve e os entende muito bem, mas não quer deixá-lo por nada. Vai saudando os quais estão agrupados; todos e todas retribuem-lhe a saudação, de tal sorte que parecem sentir muito grande angústia e grande preocupação.
    Meu senhor Gauvain dirige-se ao cavalo e abre a mão para agarrá-lo pelo freio, pois não lhe faltavam, nem freio, nem sela. Entretanto, um musculoso cavaleiro, que estava sentado sob uma verde oliveira, diz-lhe:
    —Cavaleiro, em vão vieste pegar o cavalo. Não aproxime, nem sequer um só dedo, porque seria grande presunção de sua parte. Não obstante, se tanta vontade tiver de agarrá-lo, eu não lhe quero disputar isso, nem proibi-lo. Aconselho que vá, porque se levá-lo fora daqui, encontrará grande obstáculo.
    (VS. 6787-6884)
    —Nem por isso o deixarei, gentil senhor —disse meu senhor Gauvain—, porque a donzela que está olhando lá debaixo daquela árvore, enviou-me por ele. E se não levasse comigo, o que tivesse vindo a procurar aqui? Seria desonrado na terra como covarde e tímido.
    —E você ficará maltratado, bom irmão —disse o forte cavaleiro—. Por Deus, o pai soberano, ao qual queria entregar minha alma! Jamais existiu cavaleiro ousado para agarrá-lo como você agora pretende, que não recebesse tão grande dano cortando-lhe a cabeça fora. Temo que isto ocorra. Se eu lhe proibi isso, não foi com má intenção; porque, se você quiser, leve-o e não se abstenha por mim, nem por ninguém que aqui veja. Todavia, maus serão seus caminhos se ousa tirá-lo daqui. Eu não aconselho que o faça, porque perderia a cabeça.
    Meu senhor Gauvain não se detém nem pouco, nem muito depois, destas palavras. Faz com que o cavalo, que tinha uma parte da cabeça negra e outra branca; passe diante dele a pontezinha. Sabia fazê-lo muito bem porque já tinha passado e era nisso esperto e experiente. Meu senhor Gauvain tomou-o pelas rédeas, que eram de seda indo, diretamente, ao elmo onde a donzela se olhava, para poder ver-se sem estorvo o rosto e o corpo. Tinha deixado cair no chão o manto e a touca. Meu senhor Gauvain entrega-lhe o cavalo com sua sela e lhe diz:
    —Aproxime-se, donzela, que lhe ajudarei montar.
    —Que Deus não o permita contar —respondeu ela— na corte aonde me leve, que me teve em seus braços. Se com sua mão nua tocasse algo que tivesse sobre mim, tentasse-o ou apalpasse, teria afrontado-me. Sentir-me-ia muito desventurada se contasse, ou soubessem, que tocou minha carne. Preferiria que esta com a pele me arrancasse até o osso: aqui mesmo me atrevo a afirmá-lo. Dê-me logo o cavalo, que eu mesma montarei, não necessito de sua ajuda. Que Deus me conceda ver hoje o que desejo a você: que receba grande afronta antes do anoitecer. Olhe para onde queira, mas não se aproximará, de modo algum, nem de meu corpo, nem de minhas roupas. Eu irei sempre atrás de você, até que por minha culpa sobrevenha-lhe algum grande contratempo, humilhação, ou má ventura. Estou completamente segura de que o farei maltratar: não pode evitar, como a morte.
    Meu senhor Gauvain, escuta tudo o que a donzela altiva lhe diz sem responder palavra. Entrega-lhe devolvendo seu cavalo. Inclina-se para recolher do chão o manto dela para que se vestisse. A donzela, que não era lenta, nem covarde, para dizer insultos a um cavaleiro, olha-o e diz:
    —Vassalo, o que lhe importa meu manto e minha touca? Por Deus, que não sou nem a metade tola que lhe aparento. Não tenho o menor desejo de que me sirva, pois não tem as mãos suficientemente limpas para tocar nada que eu vista, ou que ponha na cabeça. Quem é você para agarrar algo que toque meu corpo, minha boca, minha frente ou meu rosto? Que Deus não me conceda nunca a honra de que de algum modo me agrade aceitar seu serviço.
    (VS. 6885-6980)
    E assim a donzela monta, veste-se e cobre a cabeça; dizendo em seguida:
    —Cavaleiro, vá agora aonde queira. Eu o seguirei constantemente, até que o veja afrontado por minha culpa, isso ocorrerá hoje, se Deus quiser.
    Meu senhor Gauvain cala-se, sem lhe responder nenhuma só palavra. Subia muito envergonhado e com a cabeça baixa. Segue para o carvalho onde tinha deixado a donzela, para ver o cavaleiro que tanto necessitava de médico por quão feridas tinha. Meu senhor Gauvain sabia melhor que ninguém curar feridas. Viu numa vegetação uma erva muito boa para tirar a dor das chagas, e a agarrou. Uma vez colhida, seguiu até encontrar a donzela fazendo seu duelo ao pé do carvalho. Imediatamente ao vê-lo, disse-lhe:
    —Gentil senhor, agora sim acredito que este cavaleiro está morto, pois já não me ouve, nem me entende.
    Meu senhor Gauvain desce do cavalo. Ausculta o pulso muito acelerado, sente que não tinha muito fria a boca, nem as bochechas, e lhe disse:
    —Donzela, este cavaleiro está vivo, esteja completamente segura. Está com boa pulsação, compassado, com fôlego, e nenhuma ferida mortal. Trago uma erva e suponho que o aliviará muito; assim que a toque lhe tirará parte da dor das chagas. Dizem os livros que não existe melhor erva para pôr sobre as feridas. Afirmam que tem tão grande virtude, que se alguém a adere à casca de uma árvore doentia, a condição de que não esteja seca de tudo, as raízes se recuperarão e a árvore sanará de tal sorte que dará folhas e flores. Seu amigo não estará em perigo de morte, donzela, assim que lhe tenhamos enfaixado bem as feridas com esta erva; mas para fazer uma atadura convém um tecido fino.
    —Imediatamente lhe darei um de minha touca —respondeu ela, a qual isto não pesava—, porque não tenho aqui outro.
    Tira da cabeça a touca, que era muito leve e branca. Meu senhor Gauvain corta-a como convém, com a erva que havia trazido lhe enfaixa todas as feridas; e a donzela lhe ajuda o melhor que sabe e pode.
    Meu senhor Gauvain não se aparta até que o cavaleiro suspira, recupera a fala e diz:
    —Deus recompense a quem me devolveu a fala, porque tive grande temor de morrer sem confissão. Os diabos em procissão já tinham vindo aqui procurar minha alma. Antes de ser enterrado queria me confessar. Sei de um capelão que está aqui perto; se tivesse no que montar, iria dizer lhe e a lhe enumerar meus pecados em confissão e receberia a comunhão. Uma vez tivesse confessado e comungado, não temeria a morte. Façam-me agora um favor, se não lhes zangar: dêem-me o cavalo daquele escudeiro que por ali vem trotando.
    (VS. 6981-7074)
    Quando ouviu isto meu senhor Gauvain volta-se e vê chegando um desagradável escudeiro. Como era? Dir-lhes-ei: tinha os cabelos emaranhados e vermelhos; rígidos e arrepiados como porco-espinho irritado; iguais eram suas sobrancelhas, que lhe tampavam todo o rosto e todo o nariz até os bigodes, que os tinha retorcidos e compridos. Tinha a boca estreita e a barba espessa, repartida e logo frisada; o pescoço curto e o peito estufado.
    Meu senhor Gauvain se dispunha a aproximar-se dele para saber se poderia conseguir o cavalo, mas antes disse ao cavaleiro:
    —Senhor, valha-me Deus! Não sei quem é este escudeiro. Mas, antes lhes daria sete corcéis, se aqui os tivesse sujeitos da rédea, que este cavalo, seja como for.
    —Senhor — disse ele—, tenha em conta que só procura lhe fazer mau, se puder.
    Meu senhor Gauvain dirige-se ao escudeiro que se aproximava, e lhe pergunta onde vai. E ele, que não era precisamente afável, disse-lhe:
    —Vassalo, o que te importa onde vou, ou de onde venho? Em qualquer lugar que me encaminhe, má ventura haja.
    Meu senhor Gauvain imediatamente dá-lhe seu merecido. Pega-lhe com a palma da mão aberta; como levava o braço armado e dá-lhe com muito prazer. Derruba-o e o faz esvaziar a sela. Quando está a ponto de ficar em pé, cambaleia-se e volta a cair. E caiu de novo sete vezes, ou mais, em menos espaço que a longitude de uma lança de abeto, sem exagero algum. Quando se levantou definitivamente disse:
    -Vassalo, pegaste-me.
    - É certo que o peguei —respondeu ele—, mas não lhe fiz muito dano. E embora me pesa havê-lo feito, Deus é testemunha, que você antes me disse grandes bobagens.
    —Pois, não deixarei de lhe dizer em pagamento pelo recebido: perderá a mão e o braço com o qual me deu o golpe, que não será perdoado.
    Enquanto ocorria isto, ao cavaleiro ferido reanimou-se o coração, que tinha muito desacordado, e disse a meu senhor Gauvain:
    —Deixe este escudeiro, gentil senhor. Não ouvirá dizer nada que lhe honre. Deixe e obrará sensatamente. Traga-me seu cavalo e dê a esta donzela que vê ao meu lado. Coloque a sela no cavalo; ajude depois a donzela montar, que não quero sair daqui. Se puder, montarei nele e irei aonde me possa confessar, que não quero retroceder até ter confessado e comungado e ter sido ungido com a extrema-unção.
    Imediatamente meu senhor Gauvain toma o cavalo e o entrega ao cavaleiro, a quem a vista havia lhe tornado e lhe tinha esclarecido. Viu meu senhor Gauvain e então o reconheceu. Meu senhor Gauvain tinha tomado à donzela; como amável e cortês, tinha-a subido ao cavalo norueguês. Enquanto ajudava a montar, o cavaleiro apoderou-se de seu cavalo, subiu nele e o fez corcovear por ali. Meu senhor Gauvain olha, quando o vê galopar pelo campo, surpreende-se e tornando-se a rir diz:
    (VS. 7075-7161)
    —Senhor cavaleiro, a fé minha! Não é necessário que fazer corcovear meu cavalo. Desmonte e dê-me isso, que poderia piorar e fazer que lhes abrissem as feridas.
    Ele responde:
    —Cale-se, Gauvain. Toma o cavalo e fará melhor, porque ficou sem o cavalo. Fiz corcovear o cavalo, em meu proveito, e levarei ele como se fosse meu.
    —Como é isto? Venho aqui pelo seu bem, e você me pagará com mal? Não leve meu cavalo, que cometeria traição.
    —Gauvain, por muito mal que caísse sobre mim, queria o arrancar com minhas duas mãos o coração das vísceras.
    —Agora entendo bem —responde Gauvain— aquele provérbio que diz: a bom serviço, mau galardão. Queria muito saber por que queria me arrancar o coração e por que me tira meu cavalo, pois, nunca quis maltratá-lo, nem fiz isso em toda minha vida. Não acredito merecer tal coisa; porque que eu saiba, até agora, nunca o tinha visto.
    —Sim merece, Gauvain! Viu-me quando me fez uma grande afronta. Já não se lembra daquele ao qual você causou tanto mal, que lhe fez comer com os cães durante um mês, a viva força, com as mãos atadas às costas? Tem que saber que procedeu tão tolamente, que agora recebe grande afronta.
    —É você, pois, Greoreás, que raptou à força a donzela e fez com cedesse? Não obstante, bem sabia você que na terra do rei Artur as donzelas estão protegidas; o rei lhes outorgou seu amparo e as defende e salvaguarda. Não acredito, nem penso que por este dano me odeie, nem procure meu mau, porque eu o fiz pela estrita justiça estabelecida e assentada em toda a terra do rei.
    —Gauvain, a justiça você a tomou comigo, bem me lembro. Assim, pois, agora é preciso sofrer o que eu farei. Irei ao Gringalet. No momento, não posso tomar maior vingança; não fica melhor justiça que substitui-lo pelo cavalo do escudeiro que derrubou, pois não pode ter nenhum outro.
    Então Greoreás o deixa e vai seguindo rapidamente estendido em sua amiga, que ia com grande celeridade.
    A perversa donzela ri de meu senhor Gauvain e lhe diz:
    —Vassalo, vassalo, o que fará agora? Bem se pode aplicar a você aquilo com que nem todos os parvos morreram. Agora sim que será divertido o seguir, Deus me valha! Em qualquer lugar que vá, com muito prazer, o seguirei. Oxalá, foi uma burrice, que tirou o cavalo do escudeiro! Se o quisesse, ainda seria mais vergonhoso para você.
    Em seguida meu senhor Gauvain monta no no cavalo trotando e ridículo, porque não pode fazer outra coisa. O rocín era uma besta horrível: tinha o pescoço esquálido e gordo; a cabeça, as orelhas largas e papa, todos os achaques da velhice, um beiço de sua boca não encaixava com o outro. Tinha os olhos turvos e escuros, as patas perebentas e os flancos duros e destroçados pelas esporas. Era esquálido e comprido; tinha fraca a garupa e torcido o espinhaço. As rédeas e a frente do freio eram de corda; a sela, fazia muito tempo que foi nova, não levava coberta. Encontra os estribos curtos e frouxos, de maneira que não se atreve a afirmar-se neles.
    (VS. 7162-7257)
    — Ah, agora sim que vai bem a coisa! —diz a donzela exasperada—; agora irei contente e alegre aonde você queira. Agora é justo e razoável que lhe siga com muito agrado, oito ou quinze dias inteiros; ou três semanas, ou um mês. Com boa guarnição monta um bom corcel. Agora parece um cavaleiro adequado, para acompanhar uma donzela. Agora sim vou me divertir, vendo suas desventuras. Cutuque um pouco, com as esporas, seu cavalo e faça-o dar uma corrida. Não se desanime, porque é muito veloz e corredor. Seguir-lhes-ei, porque combinamos. Não o deixarei, até que realmente lhe sobrevenha afronta, que não lhe faltará.
    E lhe responde:
    —Doce amiga, diga o que lhe pareça. Todavia, não é próprio de donzela ser tão maledicente quando já tem mais de dez anos. Se fizer uso de razão tem que ser bem educada, cortês e discreta.
    — Como, cavaleiro? Por sua má ventura me quer dar lições? Suas lições não me importam nada. Siga adiante e cale-se, que agora vai equipado, como eu lhe queria ver.
    Em silêncio cavalgaram até o entardecer, ele na frente e ela atrás.
    Ele não sabe o que fazer com seu cavalo, porque por mais que trabalhe em excesso, não obtém que corra, nem que galope. Tanto faz como tanto fez, tem que ir devagar. Dando-lhe com as esporas faz tão duro o caminho, sacudindo de tal modo as vísceras, que não fica mais remédio a não ser fazê-lo ir mais lento.
    Montado no rocín vai por ermas florestas solitárias, até que chega às terras planas perto de um profundo rio, tão largo que nenhuma catapulta atiraria pedra até a outra margem, nem alcançaria uma flecha que fosse lançada.
    Na outra parte do rio eleva-se um castelo muito bem construído, muito forte e muito rico. Não pretendo que me deixe mentir: o castelo estava edificado em cima de um descampado e era de tal riqueza, que jamais olhos humanos viram fortaleza tão opulenta. Havia nele um palácio muito grande, feito sobre rocha viva, que era todo de mármore escuro. No palácio havia pelo menos quinhentas janelas abertas, todas cheias de damas e donzelas contemplando os prados e a vegetação florida que tinha adiante. As mais belas donzelas vestidas de seda, com estolas de várias cores e tecidos finos com ouro. Aparecendo nas janelas, deixavam ver suas resplandecentes cabeças e os formosos corpos que, da parte de fora, só podiam admirar-se da cintura pra cima.
    (VS. 7258-7352)
    A mais perversa criatura do mundo que levava meu senhor Gauvain, foi diretamente ao rio. Parou, desceu do pequeno cavalo e encontrou na borda uma barco que estava fechado com chave e suspenso num degrau. Na barco havia um remo e no degrau a chave com a qual estava fechado. A donzela, que vil coração tinha nas vísceras, entrou no barco, depois seu cavalo, que já o tinha feito muitas vezes.
    —Vassalo —disse—, desmonte agora e entre aqui comigo com seu cavalo rocín, que está mais fraco que um pintinho. Desamarre este bote e mau ano para você, senão atravessarem logo este rio ou se não lhes põem a nadar em seguida.
    —E por que, donzela?
    —Não vê o que eu vejo, cavaleiro. Acaso visse fugiria velozmente.
    Então meu senhor Gauvain voltou a cabeça e viu pela margem um cavaleiro completamente armado, e lhe perguntou:
    —Amiga, não se zangue e me diga, quem é este montado em meu cavalo, que o tirou; aquele traidor a quem curei as feridas esta manhã?
    —Eu lhe direi isso, por São Martín —disse a donzela alegremente—, Tem que saber a verdade, que por nada do mundo lhe diria isso, se nisso visse algum proveito para você. Como estou segura de que vem para sua má ventura, não lhe ocultarei isso: é o sobrinho de Greoreás, que o enviou atrás de você; direi por que, posto que me perguntou. Seu tio lhe encomendou que o siga até que morra, e que leve sua cabeça como presente. Por isso, o recomendo que desmonte, senão quer receber aqui a morte, que entre por aqui e fuja.
    —De modo algum fugirei dele, donzela, eu o esperarei.
    —Não lhe impedirei disso de modo algum —disse a donzela— Todavia, calo-me, porque será muito bizarro seu espetar e galopar diante dessas donzelas, gentis e formosas que aparecem às janelas para ver e sentir prazer de sua situação. Espete! Gostarão muito, porque vai sobre um bom corcel; agora parece bem um cavaleiro que vai ajustar-se com outro.
    —Custe o que custar, donzela. Não escapulirei, ao contrário, irei a seu encontro, porque se recuperar meu cavalo, estarei muito contente.
    Em seguida, volta-se para a banda e dirige a cabeça de seu rocín para aquele que vinha pelo areal espetando com as esporas. Meu senhor Gauvain o espera. Todavia, afiança-se tão regiamente nos estribos, que rompe sem remissão o esquerdo, descalçando o direito. Espera então, o cavaleiro sem que o rocín arranque; por mais que o esporeie não consegue se mover.
    —Ai de mim!—diz—, Qual mal é para um cavaleiro montar rocín, quando quer exercitar as armas!
    O outro cavaleiro, em troca, avança contra ele seu próprio cavalo, que não coxeia em modo algum, dando-lhe tal golpe atravessado, com a lança, que esta se dobra e se quebra e o ferro fica parecido com um escudo.
    (VS. 7353-7437)
    Meu senhor Gauvain atira-lhe na parte superior do escudo. Bate-lhe tão forte que atravessa, de um lado ao outro, escudo e armadura. Derruba-o na miúda areia; estende a mão, para o cavalo e salta sobre sua sela. Muito agradável foi esta aventura, teve em seu coração a maior alegria de sua vida.
    Dirige-se para a donzela que entrou no barco. Não encontrou nem ela, nem o barco; desagradando-se muito tê-la perdido, não soube mais o que tinha sido dela.



    GAUVAIN NO CASTELO DAS RAINHAS
    Enquanto estava pensando na donzela, viu vindo do castelo um bote, levado por um barqueiro. Assim que chegou a embarcação, o barqueiro disse-lhe:
    —Senhor, trago-lhes saudações da parte daquelas donzelas, ao mesmo tempo, lhes mandam que não detenha meu feudo. Pediram-me para entrega-lo.
    Ele responde:
    —Deus benza, ao mesmo tempo, a companhia das donzelas e você. Nada que possa reclamar justamente será negado por mim, pois, não quero fazer injustiça. Mas, que feudo me pede?
    —Senhor, ante meus olhos derrubou um cavaleiro. Eu devo receber seu cavalo. Se não quer ser injusto comigo, deve dar-me o corcel.
    Aí disse:
    —Amigo, este feudo seria muito difícil satisfazer, porque me obrigaria a partir a pé.
    —Ah sim, cavaleiro! Se não me der meu feudo, aquelas donzelas que ali vê considerar-lhe-ão desleal e tomar-lhe-ão por muito mau. Jamais ocorreu, nem se soube, que um cavaleiro fora derrubado neste porto, que eu saiba, sem que eu tivesse seu cavalo; e senão tive o cavalo, não me faltou o cavaleiro.
    Meu senhor Gauvain lhe disse:
    —Amigo, fica sem discussão alguma com o cavaleiro. Dou-lhe isso.
    —A minha fé, não me interessa este presente, senhor—disse o barqueiro—. A você mesmo, conforme acredito, daria muito trabalho capturá-lo, caso queira resistir. Não obstante, se tanto vale, vá prende-lo. Traga-o e ficará livre de meu feudo.
    —Amigo. Se desmontar, poderei confiar em que você? Guardará meu cavalo com boa fé?
    —Sim, com toda segurança —disse ele—. Guardarei com lealdade. Devolverei o cavalo de bom grado. Enquanto, viva, dou-lhe minha palavra e prometo que não lhe causarei nenhum dano.
    —Eu acredito —disse ele— sob sua palavra e por sua fé.
    A seguir, desce de seu cavalo. Recomenda-o. O outro toma-o e lhe diz que o guardará lealmente. Meu senhor Gauvain, dirige-se com a espada desembainhada, para aquele que já tinha muitas quebras. Estava ferido no flanco e perdera muito sangue. Meu senhor Gauvain o ameaça.
    (VS. 7438-7530)
    —Senhor — diz aquele, que estava muito desfalecido—, não poderia lhe ocultar que estou tão ferido, gravemente, que não pode me ocorrer nada pior; perdi muito sangue e coloco-me a sua mercê.
    — Levante-se daí! —disse ele.
    Levanta-se com dificuldade e meu senhor Gauvain o leva ao barqueiro, quem lhe agradece.
    Meu senhor Gauvain pede que lhe dê novas, se as souber, de uma donzela que o levou até ali e diga-lhe aonde tinha ido. Ao que responde:
    —Senhor, não se preocupe com a donzela, em qualquer lugar que tenha ido. Não é uma donzela e sim algo pior que Satanás; já que neste porto tem feito cortar muitas cabeças de cavaleiros. Se quer acreditar-me, venha albergar-se hoje em minha casa. Não lhe faria nenhum bem ficar nesta ribeira, porque é uma terra selvagem cheia de grandes maravilhas.
    —Amigo. Já que me aconselha isso, quero ater-me a seu conselho, aconteça o que acontecer.
    Segue o parecer do barqueiro. Entra no barco com seu cavalo. Vão até chegar à outra borda. A casa do barqueiro, era tal que nela poderia se hospedar um conde. Estava perto do rio; Gauvain encontrou-se muito bem nela. O barqueiro introduziu seu hóspede e seu prisioneiro. Tratou-os com atenção o mais que pôde. Meu senhor Gauvain foi servido com quanto corresponde a um mestre: faisão, perdiz e outras aves; toda classe de veados tinha para jantar. Os vinhos eram fortes, claros, brancos, tintos, novos e velhos. O barqueiro estava muito satisfeito com seu prisioneiro e com seu hóspede. Quando acabaram de comer, tirou-se a mesa e voltaram a lavar as mãos. De noite meu senhor Gauvain teve recepção e albergue muito a seu gosto. Agradou-o muito aceitar o serviço do barqueiro.
    No dia seguinte, ao amanhecer, levantou-se. Gostava e acostumara-se a levantar cedo. Em atenção a ele, também levantou o barqueiro. Ambos apareceram às janelas de uma pequena torre. Meu senhor Gauvain contemplou o país, que era muito formoso. Viu as florestas, as planícies e o castelo em cima do escarpado.
    —Hóspede— disse-lhe—, senão lhe pesar, queria interroga-lo e perguntar quem é o senhor desta terra e deste castelo daqui ao lado.
    O hóspede lhe respondeu em seguida:
    —Senhor, não sei.
    —Não sabe? É surpreendente o que me diz; porque é servidor do castelo, recebe dele grandes rendas e não sabe quem é seu senhor.
    —Digo-lhe com toda verdade —respondeu ele—, que não sei, nem nunca soube.
    —Gentil hóspede. Diga-me, pois, quem defende e guarda o castelo.
    (VS. 7531-7631)
    —Senhor, há nele muito boa guarnição. Quinhentos homens que sempre estão prontos para disparar arcos e flechas. Se alguém quiser fazer mal, tão engenhosamente estão dispostos, que jamais deixariam de disparar e não se cansariam nunca.
    “A situação é a seguinte: há ali uma rainha, dama muito especial, rica e discreta, que é de alta linhagem. Deve viver neste país com todo seu tesouro, pois, tem muito ouro e muita prata. Fez construírem esta forte residência que vê. Trouxe consigo uma dama que ama muito, chamando rainha e filha. Esta tem por sua vez uma filha, que não desmerece, nem desonra a linhagem. Não acredito, que sob o céu, exista outra mais formosa, nem mais discreta. A sala é muito bem guardada, por arte e por encantamento; como saberá em seguida, se lhe agradar que diga isso. Um homem sábio em astronomia, que a rainha trouxe para este grande palácio, fez tais maravilhas, que jamais ouviram nada semelhante: nenhum cavaleiro que entre pode permanecer vivo, nem são, o tempo que demora para percorrer uma légua, se houver nele cobiça, ou algum mau vício de adulação ou avareza. Aqui não sobrevivem os covardes, nem os traidores; os falsos e os perjuros morrem tão sem remissão, que não podem perdurar, nem viver. Há também muitos pajens, procedentes de diversas terras, que servem com as armas; são mais de quinhentos, uns barbudos e outros não. Cem não têm barba, nem bigode; cem nos quais aponta a barba; cem que se barbeiam e rapam a barba todas as semanas; cem que a têm mais branca que a lã; e cem aos quais vai encarecendo. Há damas anciãs que não têm marido, nem senhor. Injustamente foram deserdadas de terras e honras, quando seus maridos foram mortos. Há também donzelas órfãs, que as duas rainhas têm em grande consideração. Toda esta gente vai e vem pelo palácio com a louca esperança de algo que não poderá ocorrer jamais. Esperam que chegue um cavaleiro que as proteja, que devolva às damas suas honras, que dê marido às donzelas e que faça cavaleiros aos pajens. Gelará todo o mar antes de que se encontre um cavaleiro, que possa permanecer no palácio. Ele teria que ser completamente bravo, sensato, sem cobiça, valoroso, valente, franco, leal; sem vilania, nem mancha alguma. Se fosse possível que um assim chegasse, este poderia possuir o castelo. Devolveria às damas suas terras. Faria acordo de paz em mortais guerras; casaria às donzelas, armaria aos pajens e sem demora alguma acabaria com os encantamentos do palácio.”
    Estas novas foram muito agradáveis a meu senhor Gauvain.
    —Hospedeiro —disse Gauvain— Desçamos. Faça o favor de devolver em seguida, minhas armas e meu cavalo, que não quero estar mais aqui. Quero ir lá.
    —Aonde, senhor? Fique aqui, assim Deus o guarda! Hoje, amanhã, ou mais ainda.
    —Hospedeiro, isto não será agora, e bendita seja sua hospitalidade. Mas, assim Deus me valha, irei lá encima ver as donzelas e as maravilhas.
    —Cale-se, senhor! Se Deus quiser não cometerá esta loucura. Deixe de fazer caso e fique.
    —Cale-se você, anfitrião. Considera-me medroso e covarde. Que Deus não tenha minha alma se eu escutar mais conselhos.
    —Já calarei, por minha fé, senhor. Trabalharia em excesso em vão. Já que tanto lhe agrada, ir lá, embora muita pena me cause. É preciso que eu o conduza. Saiba que nenhuma outra companhia lhe será mais útil que a minha. Mas, quero de você um dom.
    (VS. 7632-7723)
    —Que dom, anfitrião? Diga-me.
    —Antes de sabê-lo têm que prometer.
    —Farei o que queira, gentil anfitrião, com a condição de que não seja nada desonroso.
    Então ordena que tire o corcel do estábulo, arreado para cavalgar. Pede suas armas, que as trazem na hora. Arma-se. Sobe e parte. O barqueiro faz o mesmo em seu cavalo, pois, quer conduzi-lo lealmente, ali aonde vai, contra seu parecer. Chegaram ao pé da escada, que havia diante do palácio. Encontraram, sentado sozinho, em um feixe de plantas como espada, um coxo que tinha uma perna postiça de prata, ou que tinha sido chapeada, e que de vez em quando tinha aros de ouro e de pedras preciosas. O coxo não tinha as mãos ociosas, pois, com uma navalha entretinha-se em desbastar um bastão de madeira. Não dirigiu a palavra aos quais passavam diante dele, nem eles lhe disseram nada. O barqueiro aproxima-se de meu senhor Gauvain e lhe diz:
    —Senhor, o que lhe parece este coxo?
    —Que sua perna não é de madeira de álamo, a minha fé —diz meu senhor Gauvain—, pois, é muito belo o que nela vejo.
    —Pelo nome de Deus —diz o barqueiro— Este coxo é muito rico, porque desfruta de muitas e valiosas rendas. Se não o acompanho e o guio, já tinha ouvido novas que lhe tivessem sido muito desagradáveis.
    Assim seguem os dois, até que chegam ao palácio, cuja entrada era muito alta e suas portas ricas e belas. As dobradiças e os ferrolhos eram de ouro fino, conforme testemunha a história. Uma das portas era de marfim, muito bem cinzelado por cima, e a outra de ébano, igualmente trabalhada, e ambas estavam iluminadas com ouro e pedras preciosas. O pavimento do palácio era verde, vermelho, índigo e azulado, variando em todas as cores, muito trabalhado e polido.
    No centro do palácio, havia um leito que não tinha nada de madeira. Todo ele era absolutamente, de ouro, salvo as cordas, que eram todas de prata. Sobre este leito não lhes conto nenhuma fábula: de cada um dos laços pendia uma campainha, e por cima dele estava estendida uma grande colcha de seda. Sobre cada um dos pés estava engastado um carbúnculo, que davam mais claridade que quatro círios acesos. O leito descansava sobre quatro figuras de cães que faziam ridículas caretas; estes por sua vez descansavam sobre quatro rodas, tão ligeiras e mutáveis, que se alguém tocava o leito com um só dedo, corria ali dentro de um lado ao outro. Assim era o leito que estava no meio do palácio. Para falar a verdade nunca se fez, nem se fará, outro igual, nem para rei, nem para conde.
    Quanto ao palácio, quero que me creia, nele nada tinha que fosse de gesso; suas paredes eram de mármore. Na parte da frente havia umas vidraças tão claras que, se alguém reparasse, veria através de seus vidros todos os que entravam no palácio, assim que atravessassem a porta. Os muros estavam pintados com as cores mais apreciadas e melhores que alguém pode fazer e imaginar; mas não quero explicar nem descrever todas as coisas. No palácio havia até quatrocentas janelas fechadas, e cem abertas.
    (VS. 7724-7820)
    Meu senhor Gauvain foi olhando o palácio minuciosamente, por acima e por abaixo, por aqui e por ali; chamou o barqueiro e lhe disse:
    —Gentil anfitrião, nada vejo aqui que faça temeroso à entrada no palácio. O que diz? O que pretendia quando, tão obstinadamente, proibia-me que viesse vê-lo? Quero sentar-me neste leito e repousar nele só um pouco, pois, nunca vi outro tão rico.
    —Ah, gentil senhor! Deus o livre de aproximar-se, porque se o fizesse morreria da pior morte que jamais morreu um cavaleiro.
    —O que farei, pois, anfitrião?
    —O que, senhor? Dir-lhe-ei. Vejo-o disposto a conservar sua vida. Quando, em minha casa, decidiu vir aqui, pedi-lhe um dom, mas você não soube qual. Agora quero reclamar isso: que volte para sua terra e conte à seus amigos e às pessoas de seu país que viu um palácio tal, que nem você, nem ninguém, sabe de outro tão rico.
    —Isso é tão certo, que acrescentarei, Deus me odeie e que eu seja desonrado. Não obstante, anfitrião, embora me pareça que o diz por meu bem, asseguro-lhe que não deixarei de me sentar neste leito e de ver as donzelas que ontem a tarde vi aparecendo nas janelas.
    Ele, que retrocedia para fugir melhor, responde-lhe:
    —Não verá nenhuma das donzelas das quais fala. Parte daqui como veio. Você não conseguirá ver aqui absolutamente nada. Em troca agora o vêem, através daquelas janelas de vidro, assim Deus me guarde, as donzelas, as rainhas e as damas que estão nas câmaras do outro lado.
    —Por minha fé —disse meu senhor Gauvain— Sentar-me-ei no leito, já que não vejo as donzelas. Penso e acredito que foi feito para que se deite nele um gentil-homem ou uma dama principal. Sentar-me-ei nele, por minha alma, aconteça o que acontecer.
    Ao ver que não pode retê-lo deixa de lhe falar; mas não quer permanecer no palácio quando se sente no leito, e parte, lhe dizendo antes:
    —Senhor, sinto e me pesa muitíssimo sua morte. Não houve cavaleiro que se sentasse neste leito e que saísse vivo. Trata-se do Leito da Maravilha, no qual ninguém que durma, sonhe, descanse, ou sente-se nele, levanta-se vivo e são. Será uma grande desgraça que você deixe aqui a vida num objeto, sem remissão, nem resgate. Já que nem com afeto, nem com discussões, posso separá-lo daqui; Deus tenha piedade de sua alma, que meu coração não poderia suportar que lhe visse morrer.
    (VS. 7821-7917)
    Sai do palácio. Meu senhor Gauvain senta-se no leito, armado como estava, com o escudo pendurado ao pescoço. Assim que se sentou, as cordas deram um grito e todos os sinos soaram, de maneira que ressonou todo o palácio. Abriram-se todas as janelas, descobriram-se as maravilhas e manifestaram-se os encantamentos. Das janelas voaram para ali dentro dardos e flechas; mais de setecentas deram no escudo de meu senhor Gauvain, que não soube quem o atacara. O encantamento era tal, que ninguém podia ver de que ponto vinham os dardos, nem aos arqueiros que os disparavam. Já podem imaginar o ruído que fizeram ao distenderem as flechas e os arcos; mil marcos tivesse dado meu senhor Gauvain por não estar ali naquele momento.
    Todavia, sem demorar, as janelas voltaram a fechar sem que ninguém as tocasse. Meu senhor Gauvain, arrancou os dardos que se cravaram em seu escudo. Em alguns lugares feriram seu corpo, por isso lhe emanava sangue. Antes de ter arrancado todos, veio-lhe em cima uma nova prova. Um vilão deu com o pé em uma porta, abriu-a e de uma abóbada saltou um faminto leão; forte, feroz, grande e temível, que atacou meu senhor Gauvain com grande ferocidade. Com grande sanha, cravou-lhe as unhas no escudo, como se fosse de cera, e o fez cair de joelhos. Todavia, ergueu-se em seguida, despiu a espada, deu-lhe com ela, de modo que lhe cortou a cabeça e duas de suas garras. Contente estava meu senhor Gauvain, porque as garras ficaram dependuradas pelas unhas de seu escudo, de modo que uma estava dentro e a outra pendia por fora.
    Quando o leão morreu, voltou a sentar no leito. Seu anfitrião, com a cara muito alegre, entrou de novo no palácio, encontrou-o sentado no leito, e lhe disse:
    —Senhor, asseguro-lhe: já não têm que temer mais nada. Tire toda a armadura. Cessaram para sempre os encantamentos do palácio. Em virtude de ter vindo aqui será servido e honrado por jovens e anciões. Por tudo isso, Deus seja louvado.
    Chegou então uma multidão de pajens, elegantemente vestidos com armaduras, os quais ficaram de joelhos e disseram:
    —Amado e doce senhor, oferecemo-lhe nosso serviço, para àquele a quem esperamos e desejamos muito.
    —E eu demorei muito em beneficiar-lhes, segundo creio.
    Em seguida, um deles começa a desarmá-lo e outros levam seu cavalo, que tinha ficado fora, no estábulo. Enquanto desarmava-se, entrou uma donzela muito formosa e agradável, que levava na cabeça um aro dourado e tinha os cabelos tão loiros como o ouro, ou mais. Sua branca face tinha sido iluminada, por natureza, com uma cor vermelha e pura. Era muito graciosa, bela, bem formada, alta e erguida. Atrás dela vinham outras donzelas, muito gentis e formosas. Um pajem só, carregado com umas roupas, uma capa, um manto e uma sobre-armadura. O manto era de arminho e de pequenas pedras preciosas negras como amoras; a parte interior era de escarlate vermelho.
    (VS. 7918-8007)
    Meu senhor Gauvain, admirando às donzelas que vê chegar, não pode evitar ficar em pé e lhes dizer:
    —Donzelas, sejam bem vindas.
    A primeira inclina-se e diz:
    —Minha senhora, a rainha, cumprimenta-o, gentil senhor amado. Ordenou à todos os servidores que lhe tenham por seu legítimo senhor e que todos venham lhe servir. Eu a primeira, sem engano, ofereço-lhe meus serviços. Todas estas donzelas que estão aqui lhe consideram seu senhor, pois, muito o desejaram. Agora estão muito satisfeitas, porque vêem o melhor de todos os mestres. E nada mais, senhor, mas sim estamos dispostas a lhe servir.
    Acabando estas palavras todas ajoelham-se e inclinam-se diante ele, como destinadas a servi-lo e honrá-lo. Ele as faz levantar e sentar-se sem demora. Sente prazer em vê-las, em parte porque são formosas; e, mais ainda, porque fazem dele seu príncipe e senhor. Desfruta do maior prazer que já experimentou, por esta honra que Deus lhe concedeu. Então a donzela adiantou-se e disse:
    —Minha senhora, antes de visitá-lo, envia-lhe estas roupas, porque ela, que está cheia de cortesia e de discrição, imagina que terá sofrido grandes trabalhos, grandes afãs e grande calor.Veste-as. Prove-nas para ver se são de sua medida, porque depois do calor, os sensatos guardam-se do frio, que turva o sangue e o endurece. Minha senhora, a rainha, envia-lhe esta roupa de arminho, para que o frio não lhe danifique. Do mesmo modo que a água se transforma em gelo, o sangue se coagula e se coalha depois do calor, quando a gente está tremendo.
    Meu senhor Gauvain responde, como o mais cortês do mundo:
    —Aquele Senhor, a quem nenhum bem falta, salve a minha senhora, a rainha, e a você, que tão bem fala, é tão cortês e tão amável. Imagino que muito discreta tem que ser a senhora quando tão corteses são suas mensageiras. Sabe muito bem o que necessita um cavaleiro e o que lhe convém; quando, por sua grande mercê, envia-me roupas para vestir-me. Agradeça-lhe muito de minha parte.
    —Farei de bom grado, asseguro-lhe —diz a donzela—, e enquanto isso poderá vestir-se e contemplar, através das janelas, as condições deste país. Se lhe agradar, poderá subir a esta torre para ver as florestas, as planícies e os rios, esperando que eu volte.
    A donzela parte e meu senhor Gauvain embeleza-se com as ricas roupas. Coloca no pescoço um broche que pendia do cachecol. A seguir sente desejo de ir ver o que há na torre. Sai com sua anfitriã e sobe por uma escada de caracol encostada ao palácio abobadado, até que chegam à parte superior da torre, de onde vêem o contorno do país mais belo que se poderia descrever. Meu senhor Gauvain contempla o rio, as terras planas e as florestas, cheias de veados, e, olhando a sua anfitriã, diz-lhe:
    (VS. 8008-8109)
    —Por Deus, anfitrião, eu gostaria de muito morar aqui para caçar e cavalgar nas florestas que há a frente a nós.
    —Senhor —diz o barqueiro—, é melhor que se cale; porque muito freqüentemente ouvi dizer, que a aquele que Deus ame tanto, que lhe conceda que aqui lhe chamem amo, senhor e protetor; será ordenado e destinado a não sair nunca desta mansão, com razão ou sem ela. Por isso, não é conveniente que fale de caçar, nem de cavalgar. Têm que residir aqui dentro e não sair fora, nem um só dia.
    —Cale-se, anfitrião —diz ele—, que se lhe ouço falar mais, perderei o juízo. Saiba bem que viver sete dias aqui encerrado, pareceria-me sete vezes vinte anos, senão pudesse sair todas as ocasiões que quisesse.
    Volta abaixo e entra de novo no palácio. Muito indignado e pensativo senta-se outra vez no leito com a cara muito triste e sombria até que retorna a donzela de antes. Quando meu senhor Gauvain a vê, levanta-se, indignado como estava, e avisa-a imediatamente. Ela, ao notar que tinha mudado a voz e a postura, deu-se conta, por seu aspecto, de que estava zangado por algo, mas não se atreve a manifestá-lo e lhe diz:
    —Senhor, quando lhe agradar, minha senhora virá vê-lo. A comida já está preparada, e comerão onde queiram, aqui embaixo ou lá encima.
    Meu senhor Gauvain lhe responde:
    —Formosa, não me preocupa a comida. Mal aventura caia sobre mim, se alimento-me ou regozije-me, antes de que receba novas que permitam me alegrar, pois muita falta me faz ouvi-las.
    A donzela, muito desconcertada, volta-se para porta; e a rainha a chama e lhe pede notícias:
    —Formosa neta —diz a rainha—, em que situação e em que disposição encontra-se o bom senhor que Deus nos enviou?
    —Ah, senhora e honrada rainha! Morta estou de dor e angústia por causa do bom senhor, o generoso. Não lhe pode tirar palavra, que não seja de tristeza e de indignação. Não sei lhe dizer por que razão, porque não me disse. Não o conheço e não me atrevi a perguntar-lhe. Posso dizer-lhe que hoje, a primeira vez, encontrei-o muito afável e falando tão alegremente, que um não pude deixar de escutar suas palavras, nem de ver o prazer de seu rosto. Agora, de repente, está muito diferente, pois, acredito que preferia estar morto, e tudo o zanga.
    —Neta, não se preocupe, porque mudará totalmente, assim que me veja. Por muita tristeza que sinta, eu a tirarei e em seu lugar lhe darei alegria.
    Então a rainha dirigiu-se ao palácio. Com ela, outra rainha, que ia prazerosamente, levavam consigo duzentas e cinqüenta donzelas e outros tantos pajens pelo menos.
    Assim que meu senhor Gauvain viu vir à rainha, que na mão levava a outra, seu coração (porque o coração freqüentemente adivinha) disse-lhe que era a rainha da qual tinha ouvido falar; mas bem o pôde adivinhar porque tinha as tranças brancas, que lhe chegavam até as ancas, vestia seda matizada, branca, com flores de ouro de trabalho fino. Ao vê-la, meu senhor Gauvain adiantou-se para ela e ambos saudaram-se. E lhe disse:
    (VS. 8110-8194)
    —Senhor, depois de você, eu sou a senhora deste palácio; entrego-lhe o senhorio porque ganhou isso. Mas, por acaso, é do exército do rei Artur?
    —Sim, senhora, na verdade sou.
    —E é você, porque quero sabê-lo, um dos cavaleiros sentinelas, que têm feito tantas façanhas?
    —Não, senhora.
    — Acredito-lhe. Diga-me se for um daqueles da Távola Redonda, que são os mais famosos do mundo?
    —Senhora —respondeu ele—, não ousaria dizer que sou um dos mais famosos; não me incluo entre os melhores, mas não acredito estar entre os piores.
    E lhe responde:
    — Gentil senhor, é muito cortês o que lhe ouço dizer, quando não admite o mérito dos melhores, nem a desonra de estar entre os piores. Mas, diga-me quantos filhos teve o rei Lot de sua esposa?
    —Quatro, senhora.
    —Diga-me seus nomes.
    —Senhora, o maior é Gauvain. O seguinte Agrevain, o orgulhoso, dos punhos fortes; e os outros dois chamam-se Gaheriet e Guerehés.
    A rainha acrescentou:
    —Sim. Valha-me Deus, assim se chamam, parece-me. Oxalá estivessem todos agora aqui conosco! Mas, diga-me, conhece o rei Urién?
    —Sim, senhora.
    —Tem na corte algum filho?
    —Sim, senhora; dois muito famosos: um se chama meu senhor Yvain, o cortês e o bem criado. Na manhã que posso vê-lo, fico todo o dia contente, tão sensato e tão cortês o encontro. O outro também se chama Yvain, mas, como só é seu meio-irmão, chama-se Yvain, o Bastardo, e vence a todos os cavaleiros que fazem batalha com ele. Ambos estão na corte. São muito valentes, muito sensatos e muito corteses.
    — Gentil senhor —disse ela—, e como se encontra agora o rei Artur?
    —Melhor que nunca, mais são, mais ligeiro e mais forte.
    —A minha fé, Senhor. Não sem razão, porque o rei Artur é muito menino; se tiver cem anos, não tem, nem pode ter mais. Por último, ainda queria que me falasse, senão lhe pesar, do estado e condição da rainha.
    —Senhora, é ela na verdade tão cortês, tão bela e tão discreta, que jamais fez Deus lei, nem língua, na qual se encontre tão formosa dama. Desde que Deus formou à primeira mulher da costela de Adão, não houve dama tão famosa. E bem justo é que o seja, porque do mesmo modo que o sábio professor doutrina aos meninos pequenos, minha senhora, a rainha, ensina e instrui todo mundo. Dela procedem, vêm e partem todos os bens. Ninguém se separa dela desaconselhado. Sabe bem o que vale cada qual e o que deve fazer a cada um para contentá-lo. Ninguém faz benefícios, nem honras, sem havê-lo aprendido de minha senhora. Não existe homem tão desventurado que se separe de minha senhora, triste.
    (VS. 8195-8277)
    —Passa-se o mesmo comigo, senhor?
    —Bem acredito, senhora —diz ele—, porque antes de lhe ver, nada me importava, de tão triste e doído como estava. E agora estou o mais alegre e contente que poderia estar.
    —Senhor —disse a rainha das brancas tranças—, por aquele Deus que me fez nascer, dobrar-lhe-ão suas alegrias e constantemente crescerá seu prazer; e não lhes acabará nunca. Está contente e alegre, e a comida está preparada, coma quando lhe agradar e onde mais vocês goste. Se o preferir, coma aqui em cima, ou se lhe agradar mais, lá embaixo às câmaras.
    —Senhora, por nenhuma câmara trocaria este palácio, pois me hão dito que aqui nunca se sentou cavaleiro para comer.
    —Não, senhor. Nenhum cavaleiro que logo ao sentar-se, ou que seguisse com vida, o tempo em que se demora de percorrer uma légua, ou meia.
    —Senhora, aqui comerei, pois, se der-me licença.
    —Dou-lhe de muito grado, senhor. Será o primeiro cavaleiro que aqui tenha comido.
    Então, partiu a rainha e deixou suas donzelas. Cinqüenta formosas donzelas, que comeram com ele no palácio, serviram-no e atenderam-no em tudo que ele desejou. Os pajens, que amavelmente lhe serviram a comida, tinham: uns o cabelo branco, outros grisalhos, outros sem cabelos brancos. Outros não tinham nem barba, nem bigode. Dois destes últimos estavam ajoelhados diante dele e o serviam, um destrinchando e o outro lhe dando o vinho. Meu senhor Gauvain fez sentar a seu lado seu anfitrião. A comida não foi breve, pois durou mais que o que dura o dia nos arredores de Natal. Antes de que acabasse já era noite fechada e escura; acenderam-se grossas tochas. Durante a comida conversou-se muito e na sobremesa também. Antes de deitar-se, houve muitas danças e bailes. Todos trabalharam em excesso, em dar muita alegria a seu senhor, que tanto queriam. Quando quis dormir, deitou-se no Leito da Maravilha. Uma das donzelas lhe pôs um travesseiro debaixo da orelha para que dormisse mais confortável.
    GAUVAIN E GUIROMELANT
    Ao despertar pela manhã encontrou preparadas roupas de arminho e de seda. Cedo chegou o barqueiro do qual lhes falei, e o fez levantar, vestir-se e lavar as mãos. Esteve presente Clarissant, a nobre, a formosa, a valiosa, a discreta e de fala elegante. Logo foi às câmaras da rainha sua avó, a qual lhe disse e lhe perguntou:
    —Neta, pela fé que me deve, levantou-se já seu senhor?
    —Sim, senhora; já faz um momento.
    (VS. 8278-8367)
    —E onde está, doce neta?
    —Senhora, foi à torre, e não sei se desceu.
    —Neta, quero ir com ele, e, se Deus quiser, hoje só terá bem, prazer e alegria.
    Naquele momento a rainha levanta-se, pois, desejava estar com ele, até que o encontra na janela de uma torre, de onde olhava uma donzela e um cavaleiro completamente armado que foram por um prado. Enquanto estava olhando-os, eis aqui que chegam, pelo outro lado, as duas rainhas juntas. Encontram, nas janelas meu senhor Gauvain e seu anfitrião.
    —Senhor —dizem as duas rainhas—, que comece bem o dia, e que seja alegre e contente. Isto lhe conceda o glorioso Pai que de sua filha fez sua mãe.
    —Grande prazer, senhoras, dê-lhes Aquele que à terra enviou seu Filho para enaltecer a cristandade. Mas, se lhes agradar, aproximem-se desta janela. Digam-me quem pode ser a donzela que vai por ali com um cavaleiro, que leva um escudo aquartelado.
    —Dir-lhe-ei isso sem demora —disse a dama olhando-os. Que mau fogo consuma, é a que ontem a tarde veio com você até aqui; mas, não se ocupem mais dela, porque é muito altiva e perversa. Rogo-lhes, que tampouco, ocupem-se do cavaleiro que a acompanha, embora seja, saibam sem dúvida alguma, valoroso por cima de todos. Batalhar com ele não é um jogo, pois lhe vi, neste porto, dar morte à vários cavaleiros.
    —Senhora —diz ele—, quero falar com esta donzela, e peço-lhe licença.
    —Senhor, não agrada a Deus, que lhe dê licença para seu mau. Deixe esta donzela irritante que faça o que queira. Se Deus quiser, não sairão deste palácio para empresa tão vadia. Porque daqui não devem sair nunca, se não nos querem fazer injustiça.
    —Como, bondosa rainha! Desgosta-me muito. Mal pago me teria neste palácio se não pudesse sair dele. Não agrada a Deus que eu esteja aqui muito tempo prisioneiro.
    —Ah, senhora! —disse o barqueiro—. Deixe-o fazer o que lhe pareça. Não o detenha contra sua vontade, que poderia morrer de dor.
    —Deixar-lhe-ei sair, pois —disse a rainha—, mas a condição de que, se Deus lhe conservar a vida, volte aqui nesta mesma noite.
    —Senhora, não se preocupe —disse ele—; que se puder, voltarei. Mas lhe peço e solicito um dom, se me queira conceder: se não se zangar, não pergunte meu nome antes de sete dias.
    —Senhor, se lhe convier assim, abster-me-ei disso —diz a rainha— Não quero provocar seu desgosto; se não tivesse proibido isso, a primeira coisa que lhe pediria é que me dissesse seu nome.
    Então desceram da torre. Correram os pajens trazendo suas armas para que as colocasse, e tiraram seu cavalo. Subiu já completamente armado e dirige-se ao porto, acompanhado pelo barqueiro. Entram os dois no barco e navegam com vigor até chegar à outra margem, na qual, meu senhor Gauvain, desembarca.
    (VS. 8368-8455)
    E o outro cavaleiro diz à donzela sem piedade:
    —Amiga, diga-me se conhece este cavaleiro que armado vem para nós.
    E a donzela responde:
    —Não; mas sei bem que é o que ontem me trouxe até aqui.
    E ele replica:
    —Valha-e Deus, que não procurava outro. Tive grande temor de que me escapasse. Não há cavaleiro, nascido de mãe, que atravesse os desfiladeiros de Galvoya eu o veja, encontre-o frente a frente, que possa envaidecer-se em algum sítio de ter retornado deste país. Do momento que Deus o põe diante disso, será preso e retido.
    Sem prévio desafio, nem prévia ameaça, o cavaleiro espeta o cavalo, abraça o escudo e arremete. Meu senhor Gauvain dirige-se à ele. Dá-lhe tão brusco, que o fere no braço e no flanco muito gravemente; mas, não estava ferido de morte, porque tinha tão bem posta a armadura, que o ferro não pôde atravessá-la. Só lhe afundou no corpo um dedo da extremidade da ponta, derrubando-o ao chão. Levantou-se e viu com pesar o sangue que do braço e o flanco corria-lhe pela branca armadura. Atacou-o com a espada, mas, logo depois fatigou-se tanto, que não pôde sustentar-se mais e teve que ficar a mercê.
    Meu senhor Gauvain tomou a fiança e a entregou ao barqueiro, que a esperava. E a perversa donzela tinha desmontado de seu cavalo. Gauvain aproximou-se, saudou-a e lhe disse:
    —Monte de novo, formosa amiga, porque não penso em deixar-lhe aqui, mas virá comigo além deste rio, que vou atravessar.
    —Ah, ah, cavaleiro! —disse ela —, como faz agora o altivo! Muito teria que lutar se meu amigo não estivesse fatigado por antigas feridas que recebeu. Suas bravatas se desvaneceriam agora, não zombaria tanto e estaria mais esmagado que se tivessem dado cheque-mate na esquina do tabuleiro. Reconheça a verdade: crê valer mais que ele por havê-lo derrubado? Freqüentemente terão visto que o fraco derruba ao forte. Se deixar este porto, vir comigo àquela árvore e ser capaz de fazer uma coisa que, sempre que eu queria, fazia por mim meu amigo, que colocou no barco, então confessaria sinceramente que você vale tanto como ele, e já não lhe teria mais por covarde.
    —Donzela —diz ele—, se for até ali, não deixarei de fazer sua vontade.
    E ela disse:
    —Queira Deus que não lhe veja voltar.
    Caminham, ela na frente e ele atrás. As donzelas e as damas do castelo arrancam-se os cabelos, rompem-se e rasgam os vestidos, e dizem:
    (VS. 8456-8552)
    —Ah, desventuradas infelizes! Desventuradas! Por que seguimos vivas, quando vemos nosso senhor ir para a morte e para a desgraça? A perversa donzela, a mal nascida, conduz-o e o leva ali de onde nenhum cavaleiro retorna. Desventuradas! Tem cansado a aflição sobre quando nos considerávamos nascidas em tal fortuna, porque Deus nos enviou a quem sabia de tudo bem, a quem não faltava a valentia, nem nenhuma outra virtude.
    Assim se doíam elas por seu senhor, que viam ir com a perversa donzela.
    Ele e ela chegaram à árvore. Uma vez ali, meu senhor Gauvain interpelou-a dizendo:
    —Formosa, diga-me se agora já estou livre, ou agrada-lhe que faça algo mais. Porque o farei, se puder, antes de alcançar sua graça.
    E a donzela lhe disse logo:
    —Vê ali uma passagem entre as duas margens inclinadas? Meu amigo costumava passar, não sei por onde é melhor.
    —Ah, formosa! Temo que não seja possível, pois por toda parte a borda é muito alta e não se pode descer por ela.
    —Já sabia que não ousaria—disse a donzela—. Certo, nunca imaginei que tivesse bastante coração para se atrever a passar. É este o Vau Perigoso, que ninguém, senão for muito valente, passa por nada do mundo.
    Então meu senhor Gauvain empurra seu cavalo até a borda, vê abaixo a água muito profunda e a borda muito inclinada, mas o leito do rio era estreito. Quando meu senhor Gauvain o vê, pensa que seu cavalo tinha saltado sarjetas maiores. Recorda que tinha ouvido dizer e contar em muitas ocasiões, que o que pudesse passar a água profunda do Vau Perigoso alcançaria o maior mérito do mundo.
    Afasta-se então da borda, e logo volta acima dela galopando para saltar do outro lado, mas não tomou bem o salto e caiu no meio do vau. O cavalo ficou nadando até encontrar terra com as quatro patas. Esforçou-se tanto em saltar que conseguiu alcançar a outra margem, que era muito alta. Uma vez ali, ficou quieto e tranqüilo, sem poder mover-se mais. Então meu senhor Gauvain precisou desmontar, porque notava que seu cavalo estava muito débil. Desce em seguida, com intenção de tirar a sela; faz-o e a investe para que se enxugue. Quando lhe tirou o penacho, secou-lhe a água do dorso, dos flancos e das patas.
    Logo coloca a sela e vai a caminho, até que viu um cavaleiro que estava sozinho caçando com um gavião, e diante dele corriam pelo prado dois cães de caça. O cavaleiro era mais formoso que o que pode dizer alguma boca. Meu senhor Gauvain aproximou-se, saudou-lhe e disse:
    —Gentil senhor, aquele Deus que lhe fez formoso sobre toda outra criatura, dê-lhe gozo e boa ventura.
    E ele respondeu com presteza:
    —Você é bom, nobre e gentil; mas diga-me, senão o contrariar, como deixou sozinha na outra margem a perversa donzela? O que fez de sua companhia?
    (VS. 8553-8640)
    —Senhor —disse ele—, quando a encontrei acompanhava-a um cavaleiro que levava um escudo.
    —E o que fez?
    —Venci-o com as armas.
    —O que aconteceu com o cavaleiro?
    —O barqueiro o levou. Diz que tem direito sobre ele.
    —Certo, bom irmão, diz a verdade. A donzela foi minha amiga, mas eu não fui para ela, porque não se dignou me amar, nem quis me chamar nunca amigo; e se alguma vez a beijei, foi por força, prometo-lhe isso. Nunca fez nada em meu favor, mas eu a amava a pesar disso. Privei-lhe de um amigo dela que estava acostumado a ir em sua companhia; matei-o e levei-a; esforcei-me muito em servi-la. Todavia meu serviço não serviu de nada, pois, assim que pôde, procurou ocasião para me deixar e fez seu amigo àquele a quem recentemente tirou-a, que não é um cavaleiro desdenhável, é muito valente, me valha Deus; mas não até o ponto que depois ousasse ir aonde pudesse me encontrar. Você fez hoje uma façanha que arreda todo cavaleiro. Como atreveu-se empreendê-la conquistou com seu valor, o mérito e a fama do mundo. Grande valentia supõe-se para ter saltado o Vau Perigoso, e tem que saber que jamais o conseguiu nenhum cavaleiro.
    —Senhor —disse ele—, assim, pois, mentiu-me a donzela, quando me disse e me fez acreditar como coisa certa que, por seu amor, seu amigo o passava uma vez ao dia.
    —Disse-lhe isto, a renegada? Ah! Oxalá se asfixiasse no vau quando disse este embuste, pois está cheia de diabos! Não pode negar que o odeia e queria que se afogasse na água rumorosa e profunda, este diabo que Deus confunda. Mas agora nos prometamos mutuamente o seguinte: se você quer me perguntar algo, seja de minhas alegrias, seja de minhas penas, eu por nada do mundo esconderei a verdade, se souber; e você também me dirá, sem mentir em nada, tudo que eu queira saber, se pode me dizer a verdade.
    Feita por ambos esta promessa, meu senhor Gauvain começa a perguntar primeiro:
    — Senhor, pergunto qual é e como se chama uma cidade que ali vejo.
    —Amigo —responde ele—, posso dizer muito bem a verdade desta cidade, porque é tão absolutamente minha, que só depende de mim e só a Deus devo dar conta dela. chama-se Orquelenes.
    —E você como se chama?
    —Guiromelant.
    — Senhor, ouvi dizer que é muito nobre e muito valente; dono de muitas extensas terras. Mas, como se chama esta donzela, da qual, nem perto, nem longe se conta nenhuma boa nova, como você mesmo testemunha?
    —E também posso testemunhar —responde ele— que é muito temida, porque é perversa e desdenhosa. Por isso se chama a Orgulhosa de Logres, pois ali nasceu, e muito pequena colocaram-na aqui.
    (VS. 8641-8723)
    —E como se chama seu amigo, aquele que, de bo grado, ou por força, foi-se prisioneiro com o barqueiro?
    —Amigo, saiba que este maravilhoso cavaleiro chama-se o Orgulhoso da Rocha do Estreito Caminho, e guarda os desfiladeiros da Galvoya.
    —E como se chama este castelo tão alto, forte e belo que há no outro lado, do qual eu venho hoje e no qual ontem à noite comi e bebi?
    Ao ouvir isto Guiromelant mudou como homem, transtornado começou a partir. E Gauvain o chamou:
    —Senhor, senhor, responda-me. Lembre-se de sua promessa.
    Guiromelant deteve-se, virando a cabeça disse:
    —Desventurada e maldita seja a hora em que o vi e dei-lhe minha confiança. Vá, dispenso a promessa e você me dispensa disso; porque eu queria perguntar novas dali, mas você, pelo que vejo, sabe tanto do castelo como da lua.
    —Senhor —disse ele—, ontem à noite estive ali e deitei-me no Leito da Maravilha, que não se parece com nenhum, pois nunca se viu outro igual.
    —Por Deus —diz ele—, surpreende-me muito as novas que me dá. Agora me deleita e me diverte ouvir suas mentiras, e escuto como escutaria os contos de um narrador mentiroso. Vejo que você é um trovador. Imaginava que era um cavaleiro e que ali tivesse feito alguma façanha. Não obstante, faça-me sabedor de alguma das proezas que fez e de algo que ali viu.
    E meu senhor Gauvain lhe diz:
    —Senhor, quando me deitei no leito desencadeou-se no palácio uma grande tormenta. Não creia que lhe minto: as cordas do leito gritaram e soaram umas campainhas que delas pendiam; as janelas, que estavam fechadas, abriram-se por si só; dardos e flechas afiadas atingiram meu escudo. Nele estão ainda aderidas as garras de um grande, feroz e cabeludo leão que durante muito tempo estivera encadeado sob uma abóbada. Um vilão o soltou, lançou-se sobre mim e tão fortemente arremeteu em meu escudo que se aderiu a ele com as unhas e não pôde desprender-se. Crê que não se nota, veja ainda as garras aqui; porque a cabeça, graças a Deus, cortei junto com as patas. O que opina destas amostras?
    Depois de ouvir estas palavras Guiromelant abaixa-se na terra o mais que pode, ajoelha-se, junta as mãos e roga que lhe perdoe pelo que disse.
    —Declaro-lhe livre de culpa — disse—; mas, monte de novo.
    Ele o fez, muito deslocado por sua necessidade, e disse:
    —Senhor, Deus me é testemunha de que não acreditava que houvesse em nenhuma parte, nem perto nem longe, cavaleiro que alcançasse a honra que chegou a você. Diga-me se viu ali a rainha de cabelos brancos e se lhe perguntou quem é, e de onde procede.
    —Nunca me ocorreu perguntar- disse ele—, mas, a vi e falei com ela.
    —Pois eu lhe direi isso: é a mãe do rei Artur.
    (VS. 8724-8822)
    —Pela fé que devo a Deus e a suas virtudes! O rei Artur, conforme acredito, faz muito tempo que não tem mãe; parece-me que faz uns sessenta anos, ou muito mais.
    —Pois é certo, senhor: é sua mãe. Quando Uter Pendragon, seu pai, foi enterrado, ocorreu que a rainha, Yguerna, veio a este país. Trouxe consigo todo seu tesouro; sobre aquela rocha edificou o castelo e o palácio tão rico e formoso como lhe ouvi descrever. Estou seguro de que também viu a outra rainha, a outra senhora, alta e formosa, que foi mulher do rei Lot e mãe daquele que oxalá tenha sempre desgraça, quer dizer, mãe do Gauvain.
    —Conheço muito bem ao Gauvain, gentil senhor; posso dizer que este Gauvain faz pelo menos vinte anos que não tem mãe.
    —É, senhor, não o duvide. Ficou vivendo junto a sua mãe, estando grávida de um menino: que é hoje a alta e muito formoso donzela que é minha amiga e irmã, não lhe quero ocultar isso daquele a quem Deus dê a maior afronta. Na verdade, não voltaria com a cabeça sobre os ombros se eu o atacasse e o tivesse tão perto como tenho a você, porque imediatamente iria cortá-la. De nada lhe valeria sua irmã, porque a odeio tanto, que com as mãos lhe arrancaria o coração das vísceras.
    —Por minha alma —disse meu senhor Gauvain—, você não o ama tanto como eu. Se eu amasse a donzela ou a dama, por seu amor amaria e serviria toda sua linhagem.
    —Têm razão, concedo-o; mas quando me lembro de como o pai de Gauvain matou ao meu, não posso lhe desejar nenhum bem. Ele mesmo o matou com suas próprias mãos um de meus primo-irmão, um cavaleiro valente e nobre. Jamais pude encontrar ocasião e maneira de me vingar dele. Mas me faça um favor: quando voltar ao castelo leve a minha amiga este anel e dê-lhe. Quero que o dê de minha parte. Diga-lhe que tenho tanta confiança e acredito tanto em seu amor, que estou seguro, de que preferiria que seu irmão Gauvain, fosse morto de amarga morte, antes de que eu me ferisse no dedo pequeno de meu pé. Saúde minha amiga e dê-lhe este anel de minha parte, que sou seu amigo.
    Então meu senhor Gauvain colocou o anel no mindinho, e disse:
    —Senhor, pela fé que lhe devo, têm amiga cortês e discreta, gentil dama e de alta linhagem, bela, graciosa e generosa; se estiver de acordo com o que hão dito e contado.
    E ele disse:
    —Senhor, prometo-lhe que me fará um grande benefício se levar à minha querida amiga meu presente, o anel, porque a amo muito. Recompensarei isso dizendo-lhe o nome deste castelo, que me perguntou. Chama-se a Rocha de Champguín. Nele se tecem tecidos muito bons, verdes e sangüíneos e muitos de escarlate; vendem e compram muitas coisas. Já lhe disse quanto quer, sem mentir em uma só palavra, e você também me falou muito bem. Quer me pedir algo?
    (VS. 8823-8907)
    —Nada, senhor, só sua licença.
    E ele disse:
    —Senhor, diga-me seu nome, se não lhe pesar, antes de que o deixe separar-se de mim.
    E meu senhor Gauvain lhe disse:
    —Senhor, assim Deus me valha, que meu nome não lhe será oculto. Eu sou aquele que tanto odeia: sou Gauvain.
    —Você é Gauvain?
    —Sim, o sobrinho do rei Artur.
    —A fé raspava. É muito atrevido ou muito néscio, ao me dizer seu nome, pois sabe que o odeio de morte. Irrita-me e pesa-me muito, não levar agora armadura, nem escudo pendente ao pescoço; porque se estivesse armado como você o está, tenha por certo que agora mesmo cortaria sua cabeça, e nada me impediria isso. Mas se você ousasse me esperar, iria procurar minhas armas e deveria combater consigo; traria também três ou quatro homens para que presenciassem nossa batalha. Se você quiser, pode fazer-se de outro modo: esperemos sete dias, e o sétimo compareceremos neste lugar armados. Você, enquanto isso, terá enviado a procurar o rei, a rainha e toda sua gente. Eu de minha parte, terei reunido amigo por todo meu reino; assim nossa batalha não se dará às escondidas, mas sim, a verão todos os que aqui venham. Porque uma batalha entre dois que são considerados tão valentes como nós não deve fazer-se encoberta, mas, é com razão que a presenciem damas e cavaleiros em grande número. E quando um de nós tiver vencido e saiba todo mundo, o vencedor terá mil vezes mais honra que se unicamente soubesse ele.
    —Senhor —disse meu senhor Gauvain—, de bom grado prescindiria de tudo isso, se fosse possível e pediria que não houvesse batalha; e se algum dano lhe tenha feito, com muito prazer o repararia, de modo bom e razoável, em atenção à seus amigos e aos meus.
    Ele disse:
    —Não vejo que exista nenhuma razão para que não ouse me combater. Proponho duas coisas, e faz a que pareça: ou me espera aqui, caso atrever-se, e eu irei procurar minhas armas, ou irá procurar a sua terra, suas forças, para que estejam aqui dentro de sete dias. Porque no Pentecostes reunirá o rei Artur a sua corte em Orcania, segundo novas que tive, até lá, só há duas jornadas. Seu mensageiro poderá encontrar ao rei e a sua gente preparados. Envia-o, e obrará prudentemente: um dia do prazo vale cem salários.
    Responde:
    —Deus me valha, ali estará a corte, sem dúvida alguma; sabe toda a verdade. Dou-lhe minha palavra de que o enviarei amanhã, ou hoje mesmo, antes de fechar os olhos.
    —Gauvain —disse ele—, quero levar-lhe a melhor ponte do mundo. Aqui o rio é muito rápido e profundo para que possa atravessar algum ser vivente e saltar até a outra borda.
    Meu senhor Gauvain responde:
    (VS. 8908-9004)
    —Por nada que me possa ocorrer procurarei vau, nem ponte, porque o consideraria uma covardia a vil donzela; manterei o que lhe prometi e irei diretamente a ela.
    Espeta então, e o cavalo saltou por cima do rio agilmente sem entorpecimento algum.
    Quando a donzela que tanto o tinha criticado com suas palavras o viu atravessar, arrendou seu cavalo à árvore e foi para ele a pé. Tanto conversaram que mudou seu coração e seu aspecto; saudou-o muito, e lhe disse que lhe devia pedir perdão como culpada das grandes penas que por ela tinha sofrido. Acrescentou-lhe:
    —Gentil senhor, escuta por que fui tão altiva com todos os cavaleiros do mundo que me levaram consigo; quero dizer isso, se não se zangar. Este cavaleiro, que Deus o amaldiçoe, que falou consigo mais à frente do rio, cometeu o engano de pôr em mim seu amor, amou-me e eu o odiei, porque, não o esconderei. Produziu-me grande desgosto ao matar aquele de quem eu era amiga. Logo, imaginou honrar-me muito, pretendendo atrair-me a seu amor, mas de nada lhe valeu, pois assim que foi possível escapei de sua companhia e uni-me àquele de quem você hoje me privou, o qual me importa um cominho. Desde que a morte separou de mim meu primeiro amigo, durante muito tempo fui tão néscia, de tão altivas palavras, tão vil e tão tola, que jamais evitava discutir com ninguém, e o fazia de propósito, porque queria encontrar um que se irritasse e encolerizasse comigo, de sorte que me destroçasse, pois faz tempo que queria estar morta. Gentil senhor, faça justiça comigo, tal que jamais, nenhuma donzela que tenha novas de mim ouse afrontar a nenhum cavaleiro.
    —Formosa —disse ele—, não me incumbe fazer justiça à você. Não agrada ao Filho de Nosso Senhor que receba de mim dano algum. Monte agora, não se entretenha, que iremos àquela fortaleza. Veja o barqueiro no porto, espera-nos para nos levar ali.
    —Submeto-me totalmente a sua vontade —disse a donzela.
    Em seguida montou na sela de um pequeno cavalo. Chegaram ao barqueiro, que sem pena nem trabalho, deixou-os no outro lado do rio. Vêem vir as damas e as donzelas que por ele sentiram pena. Todos os pajens do palácio desesperaram-se de dor. Agora sua alegria é tal, que jamais houve outra maior. A Rainha, que estava sentada diante do palácio esperando-o, fez que as donzelas agarrassem as mãos para dançar e manifestar grande júbilo. Iniciam-no assim que ele chega e colocam-no entre elas. Cantam, dançam e dançam. As damas, as donzelas e as duas rainhas o abraçam e lhe falam com grande entusiasmo. Com alegria desarmam suas pernas, os braços, o torso e a cabeça. Também festejaram muito a que havia trazido consigo. Todos e todas a serviram, em atenção a ele, porque por ela não fariam nada. Prazerosamente vão ao palácio e ali sentam todos.
    (VS. 9005-9096)
    Meu senhor Gauvain empreende a sua irmã, senta-a a seu lado no Leito da Maravilha e lhe diz baixo em segredo:
    —Donzela, de mais à frente do porto trago-lhe um anel de ouro, cuja esmeralda é muito verde. Como amostra de amor envia-o um cavaleiro que vi, e diz que é seu apaixonado.
    —Senhor —diz ela—, bem acredito; mas se de algum modo o amo, é de longe como sou sua amiga, pois nunca me viu, nem eu o vi, a não ser através deste rio. Faz já tempo que mereci que me desse seu amor, e embora jamais veio aqui, suas mensagens me insistiram tanto que não lhe mentiria se lhe dissesse que lhe entreguei meu amor; não obstante, não sou ainda sua amiga,
    —Ah, formosa! Ele se envaideceu que preferiria muito mais a morte de meu senhor Gauvain, que é seu irmão, a que ele recebesse mal nas juntas.
    —Como, senhor! Admira-me muito que diga tão grande loucura. Por Deus, não acreditava que fora tão mal criado. Muito imprudente foi ao me fazer chegar tal mensagem. Desventurada sou! Meu irmão nem tão somente sabe que eu tenha nascido e nunca me viu. Não é certo o que Guiromelant há dito, que, por minha alma, preferiria meu dano que o seu.
    Enquanto eles dois falavam assim e as damas estavam pendentes deles, a velha rainha disse a sua filha, que estava sentada a seu lado:
    —Formosa filha, o que lhe parece do senhor que está; sentado ao lado de sua filha, minha neta?
    _Grande momento – falou-lhe em voz baixa-; não sei do que, mas me agrada, e seria injusto que isso nos zangasse, pois sua magnanimidade o atrai, e é razoável, para a mais formosa e mais discreta que há neste palácio. Oxalá se casasse com ela e gostasse tanto como Lavinia a nós!
    —Ah, senhora! —disse a outra rainha—, Deus obre em seu coração de sorte que sejam como irmão e irmã, e que se amem tanto um ao outro, que sejam ambos uma mesma carne.
    Com sua prece pretende a dama que a ame e tome por esposa, mas ela não tinha reconhecido a seu filho: serão como irmão e irmã, e entre eles não existirá outro amor quando um e outro saibam que são irmãos, e a mãe terá uma alegria distinta da que agora espera.
    Quando meu senhor Gauvain falou com sua formosa irmã, voltou-se e chamou um pajem que viu a sua direita, que lhe pareceu mais veloz, leal e serviçal, o mais prudente e mais capaz de todos os que havia na sala. Com ele sozinho detrás da baixa câmara, e quando estiveram dentro lhe disse:
    —Pajem, suponho-o muito leal, muito sensato e muito acordado. Se o confiar meu segredo, encomendo-o muito que o guarde porque terá proveito. Quero enviá-lo a um lugar onde será recebido com grande alegria.
    —Senhor, preferiria que me arrancasse a língua da garganta antes de que me saísse da boca uma só palavra que você quisesse que calasse.
    (VS. 9097-9188)
    —Irmão —disse ele—, irá, pois, a meu senhor o rei Artur, pois eu sou Gauvain, seu sobrinho. O caminho não é longo, nem difícil, porque o rei estabeleceu sua corte na cidade de Orcania, para celebrar Pentecostes. Se a viagem até ali custa-lhe muito, irá a meu cargo. Quando chegar ante o rei, encontra-lo-á muito pesaroso; mas assim que o cumprimente de minha parte, terá grande alegria. Nenhum só dos que ouçam a nova deixará de estar contente. Dirá ao rei que, pela fé que me deve, pois, é meu senhor e eu sou seu vassalo, que sob nenhum pretexto deixe de encontrar-se, no quinto dia da festa, embaixo desta torre, acampado no prado. Que lhe acompanhe gente elevada e fina que em sua corte se reuniu, porque tenho uma batalha consertada com um cavaleiro que acredita que nem ele, nem eu, valemos nada: trata-se de Guiromelant, que me odeia mortalmente. À rainha dirá o seguinte: que venha pela grande fé que deve existir entre ela e eu, pois é minha senhora e minha amiga. Quando souber estas novas, não deixará de levar, por meu amor, às damas e às donzelas que naquele dia estejam em sua corte. Mas temo muito uma coisa: que não tenha um bom cavalo que o leve logo até lá.
    Responde que tem um grande, veloz, forte e bom, que o levará como se fosse seu.
    —Não me desagrada —diz ele.
    Imediatamente o pajem leva-o a um estábulo. Tira um corcel forte e repousado, um dos quais estava arreado para cavalgar e caminhar, tinha sido ferrado recentemente e não lhe faltava sela, nem freios.
    —A minha fé, pajem—disse meu senhor Gauvain—,que está muito bem equipado. Vai agora, que o Senhor dos reis conceda-lhe ir, voltar e seguir o caminho direito.
    Assim envia ao pajem, que acompanha até o rio e encarrega o barqueiro que o leve na outra borda. O infatigável barqueiro o fez passar, pois tinha muitos remadores. Uma vez na outra borda, o pajem empreende o caminho mais reto para a cidade da Orcania, pois o que sabe perguntar o caminho pode ir por todo mundo.
    Meu senhor Gauvain volta para seu palácio, onde descansa com grande alegria e grande distração, porque todos o amam e lhe servem. A Rainha ordenou que fizessem estufas e esquentassem banhos em quinhentas cubas. Fez entrar nelas todos os pajens para que se banhassem. Confeccionaram vestidos já preparados, quando saíram do banho. As roupas estavam tecidas com ouro e as peles eram de arminho. Os pajens velaram no monastério até depois das matinais, sempre de pé e sem ajoelhar-se. Pela manhã, meu senhor Gauvain, com suas próprias mãos, calçou cada um a espora direita, rodeou-lhes a espada e deu-lhes pancadas nas costas. Então, viu-se acompanhado, de pelo menos quinhentos cavaleiros novos.
    (VS. 9189-9234)
    O pajem cavalgou até chegar à cidade de Orcania, onde o rei celebrava a corte, como correspondia à festividade. Os contrafeitos e quão sarnentos vêem o pajem, dizem:
    —Este vem muito apurado. Acredito que traz para a corte novas e mensagens de longe. Diga o que disser ao rei, encontrara-lo-a mudo e surdo, pois está cheio de pena e de irritação. E quem será capaz de lhe aconselhar quando tiver ouvido o que o mensageiro lhe comunica?
    —Ora! —dizem outros—, quem lhes chama a opinar sobre os conselhos do rei? Todos deveriam estar atemorizados, consternados e transtornados porque perdemos àquele que, em nome de Deus, sustentava-nos e de quem nos chegavam todos os benefícios por amor e por caridade.
    Assim, por toda a cidade, lamentavam a meu senhor Gauvain os pobres, que muito o amavam. O pajem segue adiante, até que encontrou o rei sentado em seu palácio; a seu redor sentavam-se cem condes paladinos, cem reis e cem duques. O rei estava sombrio e pensativo ao contemplar seu grande batalhão e não ver entre eles seu sobrinho; angustiado caiu desvanecido. Não era vagaroso o que primeiro foi levantá-lo, depois, todos correram a sustentá-lo.
    Uma dama, Lore, que estava sentada em uma galeria, via a dor que reinava na sala. Desce da galeria e vai à rainha como transtornada. Quando a rainha a viu, perguntou-lhe o que lhe ocorria.

    Aqui se interrompe O Conto do Graal


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    posted by iSygrun Woelundr @ 1:01 PM   1 comments
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