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    segunda-feira, novembro 13, 2006

    1845
    Escrito por Marx na primavera de 1845. Publicado pela primeira vez por Engels, em 1888, como apêndice
    à edição em livro da sua obra Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica, Estugarda 1888,
    pp. 69-72. Publicado segundo a versão de Engels de 1888, em cotejo com a redação original de Marx.
    Traduzido do alemão.

    A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias - o de Feuerbach incluído - é que as
    coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [dês
    Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não [são tomados] como atividade sensível humana,
    praxes, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao
    materialismo, pelo idealismo - mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece
    a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos
    objetos do pensamento; mas não toma a própria atividade humana como atividade objetiva
    [gegenständliche Tätigkeit]. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica
    como a genuinamente humana, ao passo que a praxe é tomada e fixada apenas na sua forma de
    manifestação sórdida e judaica. Não compreende, por isso, o significado da atividade "revolucionária", de
    crítica prática.
    2
    A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria,
    mas uma questão prática. É na praxe que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e
    o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um
    pensamento que se isola da praxe é uma questão puramente escolástica.
    3
    A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, [de que]
    seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada,
    esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem
    ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes,
    uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen).
    A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente
    entendida como praxes revolucionante.
    4
    Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, da duplicação do mundo no mundo religioso,
    representado, e num real. O seu trabalho consiste em resolver o mundo religioso na sua base mundana.
    Ele perde de vista que depois de completado este trabalho ainda fica por fazer o principal. É que o fato de
    esta base mundana se destacar de si própria e se fixar, um reino autônomo, nas nuvens, só se pode
    explicar precisamente pela autodivisão e pelo contradizer-se a si mesma desta base mundana. É esta
    mesma, portanto, que tem de ser primeiramente entendida na sua contradição e depois praticamente
    revolucionada por meio da eliminação da contradição. Portanto, depois de, por exemplo a família terrena
    estar descoberta como o segredo da sagrada família, é a primeira que tem, então, de ser ela mesma
    teoricamente criticada e praticamente revolucionada.
    5
    Feuerbach, não contente com o pensamento abstrato, apela ao conhecimento sensível [sinnliche
    Anschauung]; mas, não toma o mundo sensível como atividade humana sensível prática.
    6
    Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas, a essência humana não é uma abstração
    inerente a cada indivíduo. Na sua realidade ela é o conjunto das relações sociais.
    Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real, é, por isso, obrigado: 1. a abstrair do processo
    histórico e fixar o sentimento [Gemüt] religioso por si e a pressupor um indivíduo abstratamente -
    isoladamente - humano; 2. nele, por isso, a essência humana só pode ser tomada como "espécie", como
    generalidade interior, muda, que liga apenas naturalmente os muitos indivíduos.
    7
    Feuerbach não vê, por isso, que o próprio "sentimento religioso" é um produto social e que o indivíduo
    abstrato que analisa pertence na realidade a uma determinada forma de sociedade.
    8
    A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo
    encontram a sua solução racional na praxe humana e no compreender desta praxe.
    9
    O máximo que o materialismo contemplativo [der anschauende Materialismus] consegue, isto é, o
    materialismo que não compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Anschauung] dos
    indivíduos isolados na "sociedade civil".
    10
    O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade "civil"; o ponto de vista do novo [materialismo é] a
    sociedade humana, ou a humanidade socializada.
    11
    Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.
    posted by iSygrun Woelundr @ 6:20 PM   0 comments
    Lenine - por Leon Trotski


    1924
    Primeira Edição: França, Librairie du Travail, primavera de 1925
    Tradução de: Elisa Teixeira Pinto
    Fonte: The Marxists Internet Archive
    Prefácio
    ESTE LIVRO não está acabado, o que poderá ser tomado nos dois sentidos da palavra. Em primeiro
    lugar, seria absolutamente inútil tentar encontrar nele uma biografia de Lenine, um esboço do seu carácter,
    ou mesmo uma exposição pormenorizada e completa das suas opiniões e métodos de acção. A obra
    presente oferece apenas material a ser trabalhado, as linhas gerais, o esboço de um futuro trabalho a fazer
    talvez também pelo signatário deste texto. Contudo, este processo de esquiço é inevitável e indispensável.
    A par das biografias populares e dos estudos globais sobre o carácter de Lenine, torna-se necessário, a
    partir de agora, lembrar com mais pormenores e mais atentamente certos episódios, certos aspectos da
    vida e da personalidade de Lenine, tal como os nossos olhos o viram. A parte mais importante do livro
    compõe-se de recordações do autor relativas a dois períodos separados por um intervalo de quinze anos: o
    último semestre do velho Iskra («A Centelha») e o ano decisivo em cujo centro se situa a Revolução de
    Outubro - isto é, aproximadamente de meados de 1917 até ao Outono de 1918.
    Porém, este livro também não está acabado num outro e mais restrito sentido: espero, se as circunstâncias
    me permitirem, trabalhá-lo ainda, introduzir-lhe correcções, precisões, e completá-lo com novos
    episódios, novos capítulos. A doença e a suspensão de actividade prática que ela provocou durante algum
    tempo, permitiram-me reconstituir de memória muitas das coisas contadas neste livro. Ao reler os meus
    primeiros apontamentos continuava a desenrolar o novelo das recordações, a lembrar-me dos factos
    significativos, pelo menos na medida em que se referiam à vida de Lenine ou diziam respeito ao seu
    carácter. Mas este método de trabalho tem um inconveniente: o produto que dele resulta jamais pode
    chegar a bom termo. E foi por isso que me decidi, a certa altura, a parar com o manuscrito e a publicar a
    primeira parte. O que não impede que, como já afirmei, me sinta ainda no direito de trabalhá-lo. Inútil
    será acrescentar que ficarei para sempre reconhecido a todos os participantes dos acontecimentos e
    episódios do período mencionado, caso queiram corrigir o meu trabalho ou reavivar estas ou aquelas
    recordações.
    Não será supérfluo assinalar o silêncio voluntariamente feito sobre um certo número de circunstâncias,
    visto estarem demasiado ligadas às discussões actuais.
    Acrescentei às duas partes essenciais do livro, que têm o carácter de recordações, os artigos e discursos,
    ou as partes dos discursos, em que me foi dado caracterizar Lenine.
    Trabalhando com base em recordações, não me servi, por assim dizer, de nenhum material relativo à
    época que descrevo. Pareceu-me que, não sendo minha intenção apresentar um estudo histórico completo
    sobre um determinado período da vida de Lenine e querendo tão-somente fornecer dados em primeira
    mão, precisamente aqueles com que eu próprio podia contribuir, melhor seria utilizar apenas a minha
    memória.
    Quando o trabalho se encontrava redigido no seu conjunto, reli o tomo XIV das Obras de Lenine e o
    livrinho do camarada Ovsiannikov sobre a paz de Brest-Litovsk; acrescentei então ao meu trabalho a!guns
    aspectos complementares. Estes aditamentos são muito pouco numerosos.
    L. T.
    P. S. - Ao reler este livro, notei que nas minhas recordações chamo Leninegrado quer a Petrogrado, quer a
    Petersburgo.
    Ora alguns camaradas designam pelo nome de Lenine até mesmo o Petrogrado de outrora. Parece-me que
    é um erro. Pode-se dizer, por exemplo: Lenine foi preso em Leninegrado? É evidente que em Leninegrado
    não teria sido possível prender Lenine. Seria ainda mais estranho dizer: Pedro fundou Leninegrado.
    Talvez com o correr dos anos, dezenas de anos, o novo nome da cidade, como de um modo geral todos os
    nomes próprios, perca a sua qualidade de lembrança histórica viva. Porém, neste momento, sentimos
    nitidamente que Petrogrado só é Leninegrado desde 21 de Janeiro de 1924 e que este nome não poderia
    ter sido adaptado mais cedo. Eis porque, nas minhas recordações, conservo relativamente a Leninegrado a
    denominação que se usava na época que descrevo.
    21 de Abril de 1924
    Primeira Parte
    Lenine e o Velho Iskra
    «A cisão de 19O3 foi, por assim dizer, uma antecipação...»
    (Palavras de Lenine em 191O)
    Sem dúvida alguma, para o futuro grande biógrafo de Lenine, o período do velho Iskra («A Centelha»)
    (19OO-19O3) apresentará um interesse psicológico excepcional e, também, grandes dificuldades: pois é
    precisamente durante esses breves anos que Lenine se torna Lenine. Tal não significa que ele vá deixar de
    crescer. Muito pelo contrário, cresce e em que medida! - até Outubro e mais ainda depois de Outubro.
    Porém o crescimento é de ora em diante mais orgânico. O salto foi imenso, da conspiração política ao
    poder do 2ã de Outubro de 1917; mas foi, por assim dizer, uma mudança toda ela material, toda exterior,
    do homem que já havia medido e pesado tudo quanto se podia pesar e medir. Entretanto, no crescimento
    que precedeu a cisão no II Congresso do Partido há um impulso, imperceptível exteriormente, mas tanto
    mais decisivo quanto todo ele era interior.
    As presentes recordações destinam-se a fornecer ao futuro biógrafo alguns dados sobre este período
    extremamente memorável e significativo do desenvolvimento espiritual de Vladimir Ilitch. Desde então
    até ao momento em que se escrevem estas linhas, decorreram mais de duas dezenas de anos, que
    correspondem a períodos bem ricos para a memória humana. Poder-se-ão sentir também naturais
    apreensões: em que medida esta narrativa reproduzirá exactamente o que se passou? Diria que não deixei
    de sentir o mesmo temor, e isto durante todo o tempo do meu trabalho, sabendo que já existem
    demasiadas recordações incoerentes e testemunhos inexactos. Ao escrever este ensaio, não tinha à mão
    qualquer documento, nenhuma recolha de referências, nenhum dossier, etc. Penso, no entanto, que foi
    melhor assim. Tive de me apoiar unicamente na memória e espero que o meu trabalho espontâneo, em tais
    condições, tenha ficado mais bem protegido contra os involuntários retoques retrospectivos que tão
    dificilmente se evitam mesmo quando exercemos sobre nós próprios uma crítica das mais rigorosas. E,
    finalmente, para as pesquisas futuras, esta crítica até será mais fácil quando se pegar nos documentos e,
    em geral, em todos os dossiers que se reportam a esse tempo longínquo.
    Em certas passagens, cito conversas e discussões de então, apresentando-as sob a forma de diálogo. É
    claro que seria impossível pretender-se uma reprodução exacta dos diálogos, decorridos que foram mais
    de vinte anos. Mas, quanto ao essencial, parece-me que a minha caneta me é fiel e, quanto a certas
    expressões mais vivas, é :literal a reprodução.
    Como se trata de materiais para uma biografia de Lenine e, consequentemente, como isto tem uma
    importância excepcional, permitir-me-ão, espero, que diga algumas palavras sobre certas particularidades
    da minha memória. Recordo-me muito mal da topografia das cidades e mesmo das habitações. Em
    Londres, por exemplo, perdi-me mais de uma vez numa distância tão insignificante como a que separava a
    habitação de Lenine da minha. Durante muito tempo tive uma memória péssima para fisionomias, mas,
    neste aspecto, fiz progressos notáveis. Em contrapartida, lembrava-me e lembro-me muito bem das ideias,
    das suas com- binações e das conversas sobre as ideias. Este juízo que faço não é subjectivo, pude
    convencer-me disso e verificá-lo muitas vezes: outras pessoas que tinham assistido às mesmas conversas
    transmitiam-nas com menos exactidão do que eu e aceitavam as minhas correcções. Convém acrescentar a
    esta circunstância que, ao chegar a Londres, eu era um jovem provinciano que desejava fortemente
    conhecer tudo e tudo compreender o mais rapidamente possível. É portanto natural que as minhas
    conversas com Lenine e com outros membros da redacção do Iskra me tenham ficado vivamente gravadas
    na memória. Eis aqui motivos que o biógrafo deverá ter em conta quando quiser julgar do valor histórico
    das recordações que vão seguir-se.
    Cheguei a Londres em 19O2, no Outono, creio que em Outubro, de manhã cedo. Gesticulando, consegui
    fazer-me compreender por um cocheiro e o trem conduziu-me a uma morada que eu trazia num papel e
    que era o meu lugar de destino. Esse local era a habitação de Vladimir Ilitch. Tinham-me ensinado
    antecipadamente a lição (deve ter sido em Zurique), tinham-me dito que batesse várias vezes com a
    aldraba da porta. Tanto quanto me lembro, foi Nadejda Konstantinovna(1) quem veio abrir; deve ter
    saltado da cama, creio, com o barulho que eu fazia. Era ainda muito cedo e qualquer homem mais
    experimentado do que eu, mais habituado aos bons costumes da civilização, teria esperado paulatinamente
    uma hora ou duas na gare, em vez de ir bater, por assim dizer de madrugada, à porta de outrem. Mas eu
    ainda ,estava com o ímpeto da ,minha evasão de Verkolensk. Da mesma maneira, ou quase, tinha
    invadido em Zurique o apartamento de Axelrod, não de madrugada, mas a meio da noite.
    Vladimir Ilitch estava ainda na cama e o seu rosto tanto reflectia amabilidade como um espanto aliás
    compreensível. Foi nestas condições que tivemos a nossa primeira entrevista e que conversámos pela
    primeira vez. Vladimir Ilitch e Nadejda Konstantinovna já me conheciam através de uma carta de Clair
    (M. G. Krjijanovski), o qual, em Samara, me tinha, por assim dizer, introduzido oficialmente na
    organização do Iskra sob o pseudónimo de «Pero» (A Caneta). Foi assim que me receberam: «Pero» tinha
    chegado... Ofereceram-me chá, creio que na cozinha-sala de jantar. Lenine entretanto vestia-se. Eu
    relatava a minha evasão e queixava-me do mau estado da «fronteira» (organização de passagem para o
    estrangeiro) do Iskra: estava ela nas mãos de um «estudante de liceu», socialista-revolucionário que
    tratava os camaradas do Iskra sem grande simpatia, por causa de uma dura polémica que se tinha
    desencadeado; além disso, os contrabandistas tinham-me depenado impiedosamente, exagerando todos os
    preços e retribuições acordados. Entreguei a Nadejda Konstantinovna uma lista algo modesta de
    endereços e locais de encontro, ou, mais exactamente, informações sobre a necessidade de suprimir certos
    endereços que de nada valiam. Por incumbência do grupo de Samarra (de Clair e outros), tinha visitado
    Karkov, Poltava, Kiev, e quase em toda a parte ou, pelo menos, em Karkov e em Poltava, tivera ocasião
    de verificar o estado extremamente deficiente das ligações entre as organizações.
    Não me lembro bem se foi nessa manhã ou no dia seguinte que dei um longo passeio em Londres com
    Vladimir Ilitch. Mostrou-me Westminster (por fora) e outros edifícios importantes. Não recordo como foi
    que ele disse, mas sei que meteu esta nuance na ,frase: «É o ,famoso Westminster deles». -É evidente que
    o «deles» dizia respeito não aos ingleses, mas aos inimigos. Esta nuance, nunca sublinhada,
    profundamente orgânica, traduzida sobretudo pelo timbre da voz, existia sempre em Lenine quando falava
    .de valores culturais, de progressos recentes, das instalações do British Museum, da riqueza das
    informações do Times ou, muitos anos mais tarde, da artilharia alemã ou da aviação francesa: «eles»
    sabem, «eles» têm, «eles» fizeram, «eles» obtiveram, - mas que inimigos! Uma sombra imperceptível, a da
    classe dos exploradores, parecia aos seus olhos estender-se sobre toda a cultura humana, e ele era sempre
    sensível a esta sombra, tão claramente visível como a luz do dia.
    Tanto quanto me lembro, prestei dessa vez muito pouca atenção à arquitectura londrina. Atirado
    bruscamente de Verkolensk para o estrangeiro, onde de resto me encontrava pela primeira vez, tomava
    apenas umas primeiras impressões muito sumárias de Viena, de Paris e Londres, e não podia descer a
    «pormenores» tais como o Palácio de Westminster. Além do mais, como se compreende, não fora para
    isso que Vladimir Ilitch me tinha arrastado para esse longo passeio. O seu objectivo era conhecer-me e
    submeter-me a um exame.
    E o exame versou efectivamente «todas as matérias do curso». Respondi às suas perguntas descrevendo a
    composição do contingente exilado no Lena e dos agrupamentos que no seu interior se desenhavam. A
    grande linha de separação das tendências definia-se então pelas opiniões que se professavam sobre a luta
    política activa, o centralismo de organização e o terror.
    - Bem, mas há divergências teóricas sobre a doutrina de Bernstein? - perguntou Vladimir Ilitch.
    Contei que tínhamos lido o livro de Bernstein e a réplica de Kautski - tínhamos lido isso na prisão de
    Moscovo e depois nos locais de deportação. Nem um só marxista, entre nós, havia elevado a voz em
    defesa de Bernstein. Achava-se, como coisa evidente, que Kautski tinha razão. Mas entre os debates
    teóricos que prosseguíamos então no plano internacional e nas discussões sobre organização política, nós
    não estabelecíamos qualquer relação, não pensávamos sequer na possibilidade de uma relação, pelo
    menos até ao momento em que, no Lena, apareceram os primeiros números do Iskra e a brochura de
    Lenine «Que fazer?»
    Contei também que tínhamos lido com muito interesse os primeiros livrinhos filosóficos de Bogdanov.
    Lembro-me perfeitamente do sentido de uma observação de Vladimir Ilitch a este respeito: a pequena
    obra, que tratava da natureza considerada sob um ponto de vista histórico, parecia-lhe, também a ele,
    muito apreciável, mas - enfim! -Plekanov não a aprovava, dizia que aquilo não era materialismo. Nessa
    altura Vladimir Ilitch não tinha nenhuma opinião sobre o assunto, contentando-se em transmitir a opinião
    de Plekanov, cuja autoridade filosófica respeitava, mas não sem ficar um tanto desconcertado. A
    apreciação de Plekanov também me surpreendeu bastante.
    Interroguei ainda Vladimir Ilitch sobre as questões económicas. Contei-lhe como na prisão de
    transferência de deportados, em Moscovo, tínhamos estudado colectivamente o seu livro O
    Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e como, na Sibéria, trabalháramos no livro O Capital, tendo
    ficado pelo Tomo II. Recordei a enorme quantidade de dados estatísticos que tinham sido trabalhados em
    O Desenvolvimento do Capitalismo.
    - Na prisão de Moscovo, falámos mais de uma vez com admiração, deste trabalho gigantesco.
    - Pudera! ele não se fez de uma só vez - respondeu Lenine.
    Era-lhe visivelmente agradável verificar que camaradas jovens estudavam atentamente a mais importante
    das suas obras económicas.
    Depois falámos da «doutrina» de Makhaiski, da impressão que causara aos deportados, daqueles que, em
    maior ou menor número, ela seduzira. Contei que o primeiro caderno policopiado de Makhaiski nos tinha
    chegado a Lena vindo «de cima» e que tinha produzido na maioria de nós uma forte impressão pela sua
    crítica violenta ao oportunismo social-democrata, no que havia coincidência com a marcha dos nossos
    próprios pensamentos, determinada pela polémica entre Kautski e Bernstein. O segundo caderno, onde
    Makhaiski «arrancava a máscara» às fórmulas marxistas sobre a produção, vendo aí uma justificação
    teórica da exploração do proletariado pelos intelectuais, esse tinha-nos indignado e desconcertado. Enfim,
    o terceiro caderno, que havíamos recebido mais tarde e que continha um programa positivo, no qual as
    sobrevivências do «economismo» se conciliavam com um embrião de sindicalismo, tinha-nos dado uma
    sensação de absoluta inconsistência.
    Quando passámos a falar do meu trabalho futuro, a conversa limitou-se, é claro, a generalidades. Eu
    queria antes do mais tomar conhecimento do que tinha sido recentemente publicado e pensava regressar
    depois à Rússia ilegalmente. Ficou decidido que começaria por «olhar à minha volta».
    Nadejda Konstantinovna, para me alojar, levou-me para outro bairro, a uma casa onde habitavam
    Zassulitch, Martov e Blumenfeld, que dirigia a tipografia do Iskra. Havia lá um quarto livre para mim. O
    apartamento, de acordo com a disposição habitual das habitações inglesas, estava dividido não em
    comprimento, mas verticalmente: no quarto de baixo morava a dona da casa e os locatários habitavam uns
    por cima dos outros. Havia ainda uma divisão livre, que servia de sala comum, à qual Plekanov, depois da
    sua primeira visita, tinha dado o nome de covil. Neste antro, um pouco por culpa de Vera Ivanovna
    Zalssulitch, mas também com .a cumplicidade de Martov, reinava a maior das desordens. Era ali que se
    tomava o café, que nos reuníamos para conversar, que se fumava, etc. Daí a alcunha.
    Assim começou o curto período londrino da minha existência. Atirava-me avidamente aos números do
    Iskra e às brochuras do Zaria. É também a essa época que remonta a minha colaboração no Iskra.
    Para o segundo centenário da fundação da fortaleza de Schlüsselburg redigi uma nota, que foi, creio, o
    meu primeiro trabalho para o Iskra. Esta nota terminava com uma citação de Homero, ou mais
    exactamente, do tradutor russo de Homero, Gneditch, falando eu das «mãos invencíveis» que a revolução
    lançaria sobre o csarismo (a caminho da Sibéria, de comboio, eu ,tinha devorado a Ilíada). A nota agradou
    a Lenine. Mas, a propósito das «mãos invencíveis», levantou uma dúvida legítima que me transmitiu com
    um sorriso bonacheirão. «Mas foi extraída dum verso de Homero», retorqui eu para me justificar; no
    entanto, confessei de bom grado que a citação clássica não era indispensáve1. Esta nota encontra-se no
    Iskra, mas sem as «mãos invencíveis».
    Foi nessa altura que fiz as primeiras conferências em White-Chapel, onde «me media» com o velho
    Tchaïkovski (já então ele era um velho) e com o anarquista Tcherkezov, que também não era novo. Como
    resultado, fiquei sinceramente espantado ao ver que famosos emigrados de barba grisalha eram capazes de
    debitar asneiras de grande quilate. A nossa ligação com White-Chapel era assegurada pelo velho
    «londrino» Alexeiev, um emigrado marxista que tinha relações com a redacção do Iskra. Foi ele que me
    iniciou na vida inglesa e, de uma maneira geral, constituiu para mim a fonte de toda a espécie de noções e
    conhecimentos. Lembro-me que, na sequência de uma conversa circunstanciada com Alexeiev a caminho
    de White-Chapel e depois no regresso, comuniquei duas opiniões suas a Vladimir Ilitch: uma respeitante à
    queda do regime russo, a outra sobre o último livro de Kautski. A mudança de regime, dizia Alexeiev,
    devia produzir-se não gradualmente, mas com uma enorme rapidez, por causa da rigidez da autocracia.
    Esta palavra rigidez ficou vivamente gravada na minha memória.
    - Pois bem, mas ele pode ter razão - disse Lenine depois de ter escutado a narrativa.
    A outra opinião de Alexeiev reportava-se ao livro de Kautski «O Amanhã da Revolução Social».
    Eu sabia que esta brochura interessava muito a Lenine, brochura que, conforme ele próprio me disse, tinha
    lido duas vezes e na qual acabara então de pegar pela terceira vez. Suponho que foi ele quem me
    encarregou de ultimar a tradução russa. Quanto a mim, acabava de estudar atentamente a obra, seguindo o
    conselho de Vladimir Ilitch. Ora Alexeiev achava que era obra de um oportunista.
    - Imbecil - disse Lenine de repente, e fez uma careta como sempre acontecia quando não estava satisfeito.
    Quanto a Alexeiev, este tinha o maior respeito por Lenine: - Julgo - dizia ele - que, para a revolução,
    Lenine é mais importante do que Plekanov. Não repeti essas palavras diante de Lenine, claro, mas disse-as
    a Martov, que nada respondeu.
    A redacção do Iskra e do Zaria era composta, como se sabe, por seis pessoas: três «velhos», Plekanov,
    Zassulitch e Axelrod, e três jovens, Lenine, Martov e Potressov. Plekanov e Axelrod viviam na Suíça.
    Zassulitch residia em Londres, com os jovens. Nessa época, Potressov encontrava-se algures no
    continente. Esta dispersão dos colaboradores tinha certos inconvenientes, mas Lenine não parecia
    preocupar-se com isso e até se sentia satisfeito. Antes de me deixar voltar a atravessar a Mancha, inicioume
    com prudência nos assuntos internos do jornal e disse-me, entre outras coisas, que Plekanov insistia
    em que toda a redacção fosse estabelecer-se na Suíça, mas que ele, Lenine, se opunha a tal transferência
    porque isso só poderia prejudicar o trabalho. Foi então que compreendi pela primeira vez, ou antes,
    adivinhei por indícios ténues, que a presença da redacção em Londres devia explicar-se por razões entre
    as quais a polícia, sem dúvida, tinha o seu papel, mas onde também a influência dos redactores alguma
    coisa tinha a ver. No trabalho corrente de organização política, Lenine desejava a máxima independência
    possível em relação aos «velhos» e, sobretudo, a Plekanov, com o qual já tivera graves conflitos,
    particularmente ao elaborar um projecto de programa do partido. Os mediadores eram, em casos destes,
    Zassulitch e Martov: Zassulitch desempenhava de algum modo o papel de testemunha de Plekanov nestes
    duelos, e Martov era a testemunha de Lenine. Os dois intermediários estavam de facto dispostos a
    conseguir a conciliação e, além disso, tinham muita amizade um pelo outro. Só a pouco e pouco consegui
    conhecer os diferendos verdadeiramente sérios que tinham surgido entre Lenine e Plekanov sobre a parte
    teórica do programa. Lembro-me que Vladimir Ilitch me perguntou o que pensava do programa que
    acabava de ser publicado (no nº2ã do Iskra, se não me engano) . Porém, eu tinha apenas assimilado o
    programa nas suas grandes linhas e, portanto, era incapaz de exprimir uma opinião sobre a questão interna
    que interessava Lenine. As divergências assentavam na necessidade de definir, segundo Lenine, mais
    clara e categoricamente as tendências essenciais do capitalismo, a concentração da produção, a decadência
    das classes intermediárias, a diferenciação das classes, etc.; nestas questões Plekanov exigia mais reserva
    e maior prudência. O programa, com se sabe, está todo semeado de «mais ou menos» que se devem a
    Plekanov. Tanto quanto me lembro, de acordo com o que nos contaram Martov e Zassulitch, o primeiro
    esboço de Lenine, em oposição ao de Plekanov, tinha merecido uma crítica muito dura por parte deste
    último, formulada em tom de mofa arrogante, com a qual, em casos destes, se distinguia Jorge
    Valentinovitch. Mas não era assim, claro está, que se podia desencorajar ou intimidar Lenine. O conflito
    tomou um carácter verdadeiramente dramático. Vera Ivanovna, segundo ela própria contou, dissera a
    Lenine: - Jorge (Plekanov) é um galgo: mordisca bem mas acaba sempre por largar; você é um buldogue:
    quando morde nunca mais larga.
    Recordo-me perfeitamente desta frase, bem como da conclusão de Zassulitch: - Lenine ficou muito
    contente com esta comparação. -«Eu mordo e não largo mais?...É isso?», perguntou ele ainda, encantado.
    E Vera Ivanovna imitava com uma bonomia trocista a entoação.
    Durante a minha estadia em Londres, Plekanov esteve lá alguns dias. Foi então que o vi pela primeira vez.
    Visitou a nossa habitação comum, passou pelo «covil», mas eu estava ausente.
    - Jorge veio cá - disse-me Vera Ivanovna; como ele quer vê-lo, vá a casa dele.
    - Que Jorge? - perguntei intrigado, pensando para comigo que existia mais um personagem famoso que eu
    não conhecia.
    - Essa é boa! Plekanov... Nós chamamos-lhe Jorge. Fui à noite a casa dele. Num quarto pequeno estavam
    com Plekanov, o social-democrata alemão Beer, escritor bastante conhecido, e o inglês Askew. Não
    sabendo onde meter-me, porque todas as cadeiras estavam ocupadas, Plekanov, não sem ter hesitado,
    convidou-me a sentar na cama. Achei que era efectivamente natural, não adivinhando que Plekanov,
    europeu até às unhas dos pés, não podia decidir-se por uma medida tão excepcional a não ser num caso de
    extrema necessidade. A conversa era em alemão; Plekanov não dominava suficientemente esta língua e
    limitava-se a monossílabos. Primeiro Beer referiu-se à maneira como a burguesia inglesa sabia seduzir os
    operários dignos de atenção; depois falou-se dos predecessores ingleses do materialismo francês. Beer e
    Askew foram embora logo de seguida. Jorge Valentinovitch esperava, aliás com razão, ver-me partir com
    eles, pois já era tarde e não se devia incomodar os donos da casa com o barulho da conversa. Ora, muito
    pelo contrário, eu pensava nesse momento que a verdadeira conversa ainda mal havia começado.
    - Foi muito interessante o que Beer disse - observei. - Sim, a propósito da política inglesa, é interessante;
    quanto à filosofia, são bagatelas - respondeu Plekanov. Vendo que eu não me dispunha a sair, Jorge
    Valentinovitch propôs-me ir beber cerveja ali perto. Fez algumas perguntas sem importância, foi amável,
    mas havia nessa amabilidade não sei que impaciência escondida. Sentia que a sua atenção estava dispersa.
    Talvez estivesse simplesmente fatigado de dia de trabalho. No entanto, eu saí pouco satisfeito, com um
    sentimento de amargura.
    Durante este período em Londres, como depois em Genebra, encontrava muito mais vezes Zassulitch e
    Martov do que Lenine. Em Londres, na mesma habitação, em Genebra, almoçando e jantando
    habitualmente nos mesmos pequenos restaurantes, Martov, Zassulitch e eu víamo-nos várias vezes ao dia,
    enquanto Lenine vivia no seu ambiente familiar; por causa disso, cada encontro com ele, fora das sessões
    oficiais, adquiria a importância de um pequeno acontecimento.
    Zassulitch era uma personagem singular e singularmente simpática. Escrevia muito lentamente, sofrendo
    verdadeiramente todos os tormentos da criação literária.
    - O que Vera Ivanovna faz não é uma composição, é um mosaico - disse-me um dia, nessa época,
    Vladimir Ilitch.
    E, de facto, ela aplicava o texto frase a frase sobre o papel, andando longamente no quarto de um lado
    para o outro, deslizando e martelando o chão com as pantufas, fumando sem parar cigarros que ela própria
    enrolava, atirando pontas ou meios cigarros para todos os lados, sobre os peitoris das janelas, sobre as
    mesas, espalhando cinza sobre a blusa, sobre os braços, sobre os manuscritos, no copo de chá e, se a
    ocasião se apresentasse, para cima do seu interlocutor. Era e manteve-se até ao fim uma velha intelectual
    radical, a quem o acaso tinha infligido a inoculação do marxismo. Os artigos de Zassulitch provam que
    ela tinha assimilado admiravelmente os elementos teóricos de Marx. Mas, ao mesmo tempo, a base moral
    e política de uma radical russa dos anos 7O-71 conservou-se nela intacta até ao fim. Na intimidade,
    permitia-se amuar contra certos processos ou deduções do marxismo. A palavra «revolucionário»
    continha para si um significado particular, independente da consciência de classe. Lembro-me de ter tido
    com ela uma conversa acerca dos seus Revolucionários nos meios burgueses. Servi-me da expressão: os
    revolucionários burgueses-democratas.
    - Mas não - replicou Vera Ivanovna, com um toque de despeito ou, mais exactamente, de desgosto - nem
    burgueses, nem proletários, mas simplesmente revolucionários. Pode dizer-se, é claro, os revolucionários
    pequeno-burgueses - acrescentou - se se meter na pequena burguesia tudo o que não se pode encaixar
    noutro lado...
    O local de concentração das ideias social-democratas era então a Alemanha, e nós seguíamos com
    extrema atenção a luta dos ortodoxos contra os revisionistas na social-democracia alemã. Mas sobre isso
    Vera Ivanovna pensava apenas o que muito bem entendia, dizendo de repente:
    - Está bem!... Eles acabarão com o revisionismo, eles restabelecerão Marx, eles transformar-se-ão na
    maioria e, no entanto, viverão com o seu Kaiser.
    - «Eles» quem, Vera Ivanovna?
    - Os sociais-democratas alemães, claro.
    Aliás, sobre este ponto, Vera Ivanovna não se enganava tanto quanto nessa altura parecia, muito embora
    tudo viesse a passar-se de outro modo, que ela não previa, e por razões diferentes...
    Relativamente ao programa de repartição das terras, Zassulitch mostrava-se céptica - não que ela o
    recusasse formalmente, mas ria-se disso com bom humor.
    Recordo-me doutro episódio. Pouco antes do Congresso, veio a Genebra Constantino Constantinovitch
    Bauer, um dos velhos marxistas, homem aliás pouco equilibrado, que durante certo tempo manteve ,
    relações amigáveis com Struve, mas que, nessa altura, hesitava entre o grupo do Iskra e o do
    Osvobojdénie (A Emancipação). Em Genebra começou a pender para o Iskra, mas recusava-se a aceitar o
    princípio da repartição. Foi a casa de Lenine, a quem provavelmente já conhecia. No entanto, não voltou
    de lá convencido, sem dúvida porque Vladimir Ilitch, conhecendo a sua natureza de Hamlet não se deu ao
    trabalho de o persuadir. Eu conhecera Bauer durante a deportação: tive com ele uma conversa muito longa
    sobre aquela malfadada repartição. Não sem muito suor, expus-lhe todas as razões que tivera tempo de
    reunir ao longo de seis meses de intermináveis discussões com os socialistas-revolucionários e, em geral,
    com todos os adeptos do programa agrário do Iskra. E eis que, nessa mesma noite, Martov (lembro-me
    que foi ele) comunicou na reunião da redacção, na minha presença, que Bauer tinha ido a sua casa e se
    declarara definitivamente «partidário do Iskra». Trotski, dizia-se, ter-lhe-ia dissipado todas as dúvidas...
    - E quanto à repartição, ele também está convencido?- perguntou Zassulitch, quase assustada.
    - Muito particularmente quanto à repartição.
    - O po-o-bre!... - exclamou Vera Ivanovna com um tom tão impagável que desatámos todos a rir.
    Lenine disse-me um dia:
    - Em Vera Ivanovna, muitas coisas assentam na moral, no sentimento.
    E contou-me que ela e Martov tinham parecido inclinar-se para o terror individual quando Val, o
    governador de Vilna, mandou vergastar os manifestantes operários.
    Vestígios deste «desvio» temporário, como hoje diríamos, podem encontrar-se num dos números do Iskra.
    Eis, creio, o que se terá passado:
    Martov e Zassulitch estavam a preparar o número sem o auxílio de Lenine, que se encontrava no
    continente. Recebeu-se um telegrama - sobre a aplicação da vergasta aos detidos de Vilna. Em Vera
    Ivanovna acordo heroína radical que atira sobre Trepov porque este mandava chicotear os detidos
    políticos. Martov apoiou-a nessa ocasião... Ao receber o último número do Iskra, Lenine ficou indignado:
    - É o primeiro passo para a capitulação face ao socialismo-revolucionário - gritou.
    Ao mesmo tempo recebeu-se um protesto de Plekanov.
    Este episódio teve lugar antes da minha chegada a Londres, podendo muito bem acontecer que haja
    algumas inexactidões na minha narrativa; porém, da base do incidente lembro-me eu sem risco de erro.
    - É certo que - dizia-me Vera Ivanovna à laia de explicação - não se trata aqui de maneira nenhuma do
    terror como sistema; mas eu penso que através do terror se pode ensinar essa gente a nunca mais
    chicotear...
    Zassulitch nunca entrava em verdadeiras discussões; menos ainda sabia falar em público. Nunca
    respondia directamente aos argumentos do seu interlocutor, mas dentro dela gerava-se qualquer coisa, e
    depois, bruscamente, inflamava-se e lançava rapidamente, tão rapidamente que quase sufocava, uma série
    de frases, dirigindo-se não a quem dela esperava uma resposta, mas àquele que, assim o julgava, era capaz
    de a compreender.
    Se os debates decorriam segundo um processo regulamentar, sob a direcção de um presidente, Vera
    Ivanovna nunca se inscrevia para tomar a palavra, pois para dizer qualquer coisa tinha necessidade de se
    excitar. Mas em tal caso, mesmo assim ela falava, sem ligar nenhuma às inscrições, formalidade que
    desprezava em absoluto, e interrompia sempre tanto o orador como o presidente, dizendo até ao fim o que
    tinha para dizer. Para a compreender era necessário entrar por reflexão no curso dos seus pensamentos. E
    os seus pensamentos - justos ou errados - eram sempre interessantes e só a ela pertenciam. Não é difícil
    imaginar o contraste que representava Vera Ivanovna, com o seu radicalismo difuso e o seu subjectivismo,
    com toda a sua desordem, em relação a Vladimir Ilitch. Não se pode dizer que não houvesse entre ambos
    simpatia, mas o que é certo é que também ali existia o sentimento profundo de uma incompatibilidade
    orgânica. Entretanto, Zassulitch, psicologicamente, sentia desde então, não sem um certo desagrado, a
    força de Lenine; era o que ela queria exprimir com a frase: «Ele morde e não larga mais».
    A complexidade das relações existentes entre os membros da redacção só se me foi tornando inteligível a
    pouco e pouco, e não sem esforço. Tinha chegado a Londres, como já disse, como provinciano autêntico,
    em todos os sentidos da palavra. Não só me encontrava no estrangeiro pela primeira vez, como também
    nunca tinha visto Petersburgo! Em Moscovo, como em Kiev, vivera apenas na prisão de transferência. Só
    conhecia os escritores marxistas através dos seus artigos. Na Sibéria, tinha lido números do Iskra e o «Que
    fazer?», de Lenine. A respeito de Ilitch, autor do «Desenvolvimento do Capitalismo», ouvira vagamente
    falar na prisão de Moscovo (por Vanovski, creio), como sendo a estrela mais próxima da socialdemocracia.
    Sabia poucas coisas de Martov e nada sobre Potressov. Em Londres, estudando afanosamente
    o Iskra, o Zaria e, em geral, as nossas publicações no estrangeiro, encontrei um dos números do Zaria
    onde havia um brilhante artigo dirigido contra Prokopovitch sobre o papel e o significado dos sindicatos.
    - Quem é este Molotov? - perguntei a Martov. - É Parvus.
    Mas eu também nada sabia sobre Parvus. Tomava o Iskra como um todo e, durante esses meses, a ideia de
    ali procurar, no jornal ou na redacção, tendências diferentes, nuances, influências, etc., ,era-me ainda
    estranha e, diria mesmo interiormente hostil.
    Lembro-me de ter notado que alguns editoriais e artigos do Iskra, se bem que não assinados, eram
    redigidos por alguém que falava de si próprio na primeira pessoa: «naquele número, eu disse», «já escrevi
    sobre este assunto», etc.. Tirei informações para conhecer o autor desses artigos. Acontece que tudo era de
    Lenine. Numa conversa fiz-lhe notar que, em minha opinião, do ponto de vista literário não vinha muito a
    propósito falar na primeira pessoa em artigos não assinados.
    - Porque é que acha falta de propósito? - perguntou ele, intrigado, pensando talvez que nesse momento eu
    não estava de facto a falar por acaso e que não exprimia apenas uma opinião pessoal.
    - Parece-me que é assim - respondi sem precisão, pois não tinha qualquer ideia nítida sobre o assunto.
    - Não sou da sua opinião - disse Lenine com um riso enigmático.
    Nessa época, este processo literário podia parecer imbuído de um certo «egocentrismo». Na realidade,
    dando aos seus artigos, mesmo aos não assinados, um carácter singular, Lenine imprimia uma garantia à
    sua :linha doutrinária, ;pois não estava lá muito seguro quanto à dos seus colaboradores mais próximos.
    Devemos aqui reconhecer, no mais ínfimo pormenor, esta obstinada tensão para o objectivo, perseverante,
    persistente, independente de todas as convenções, indiferente às formalidades, que caracteriza
    essencialmente Lenine como chefe.
    O director político do Iskra era ele, mas Martov era o seu principal recurso como redactor. Escrevia fácil e
    interminavelmente, tal como falava. Quanto a Lenine, esse passava longas horas na biblioteca do British
    Museum, onde trabalhava nas questões teóricas.
    Recordo-me que um dia, na sala de leitura, Lenine escreveu um artigo contra Nadejdine, o qual tinha
    então na Suíça a sua pequena casa editora, formando uma espécie de grupo intermédio entre os socialdemocratas
    e os socialistas-revolucionários. Entretanto, Martov, na noite anterior (ele trabalhava
    sobretudo de noite), tivera tempo de escrever um grande artigo sobre Nadejdine e enviara-o a Lenine.
    - Você leu o artigo do Júlio? - perguntou-me Vladimir Ilitch no museu.
    - Li.
    - Que pensa dele?
    - Parece-me bom.
    - Bem, bem, pode ser bom, mas não é suficientemente claro. Não tira conclusões. Acabei de tomar aqui
    algumas notas, mas não sei de momento que lhes fazer: a menos que as acrescente como observações
    complementares ao artigo do Júlio...
    Passou-me um caderninho cheio de notas escritas a lápis. No número seguinte do Iskra o artigo de Martov
    apareceu com as notas de Lenine em pé de página. Nem o artigo nem as notas estão assinados. Não sei se
    estas notas foram incluídas nas Obras Completas de Lenine. Garanto que o autor é ele.
    Meses mais tarde, nas semanas que precederam o Congresso, houve na redacção um violento incidente
    entre Lenine e Martov, que estavam em desacordo sobre a táctica das manifestações de rua, mais
    exactamente sobre a questão da luta armada contra a polícia. Lenine dizia que era preciso criar pequenos
    grupos armados e treinar operários militantes para se baterem contra as forças da polícia. Martov opunhase
    a esta ideia. O debate teve lugar perante a redacção.
    - Mas não dará isso origem a qualquer coisa do género dum terrorismo de grupos? - perguntei eu a
    propósito.
    (Devo lembrar que neste período a luta contra a táctica terrorista dos socialistas-revolucionários
    desempenhava um grande papel na nossa acção.)
    Martov agarrou nesta observação e desenvolveu a ideia de que era preciso ensinar a proteger as
    manifestações de massa contra a polícia, mas não criar grupos de combate. Plekanov, de quem eu e, sem
    dúvida, os outros esperávamos alguma coisa, furtou-se a qualquer resposta, convidando somente Martov a
    esboçar um projecto de resolução que permitisse debater a questão sobre um texto determinado. Este
    episódio foi, aliás, abafado pelos acontecimentos que o Congresso nos trazia. Fora das reuniões e das
    conferências não tive muita oportunidade de observar Martov e Lenine em diálogo. As longas discussões,
    as conversas caóticas, que degeneravam constantemente em mexericos de emigrados e em tagarelices,
    género de ocupação pela qual Martov se sentia atraído, já então desagradavam a Lenine. Este prodigioso
    maquinista da revolução, fosse na política, ,fosse nos trabalhos teóricos, nos estudos filosóficos como no
    estudo das línguas estrangeiras ou nas conversações, tinha apenas uma e a mesma coisa em vista: o
    objectivo final. Era talvez o mais inflexível utilitarista que jamais terá saído do laboratório dos tempos.
    Mas como o seu utilitarismo se caracterizava pela mais ampla grandeza histórica, a sua personalidade
    nunca diminuiu nem empobreceu com isso: pelo contrário, desenvolvia-se e enriquecia incessantemente, à
    medida que cresciam a sua experiência da vida e a sua esfera de acção.
    Ao lado de Lenine, Martov, nessa época seu mais próximo companheiro de luta, já não se sentia à
    vontade. Ainda se tratavam por tu, porém começava a sentir-se um pequeno esfriamento nas suas
    relações. Martov vivia muito mais do momento presente, das zangas, do trabalho corrente de publicista,
    das polémicas, últimas novidades e tagarelices. Lenine, mastigando os factos do dia-a-dia, penetrava
    profundamente, através do pensamento, no amanhã. Martov tinha inúmeras e por vezes brilhantes
    intuições, concebia hipóteses, fazia propostas que ele próprio depressa esquecia; Lenine, esse, retinha
    aquilo ,de que necessitava e somente no momento em que necessitava. A transparente fragilidade dos
    pensamentos de Martov obrigou, mais de uma vez Lenine a abanar a cabeça em sinal de apreensão. Ainda
    não tinha havido tempo de definir-se, nem mesmo de aparecer, qualquer diferença entre as respectivas
    linhas políticas; apenas se podem sentir as diferenças voltando ao passado, à luz do que depois aconteceu.
    Mais tarde, aquando da cisão no II Congresso, os colaboradores do Iskra dividiram-se em duros e brandos.
    Estas denominações, como se sabe, ocorreram nos primeiros tempos, o que provava que ainda não existia
    nenhuma linha de divisão, havendo no entanto uma diferença na maneira de abordar as questões, na
    decisão, na persistência para o objectivo final. Voltando às relações entre Lenine e Martov, pode dizer-se
    que, antes da cisão, antes do Congresso, Lenine já era um «duro», enquanto Martov era um «brando». E
    ambos bem o sabiam.
    Lenine observava Martov, a quem muito estimava, com um olho crítico e ligeiramente desconfiado;
    Martov, sentindo esse olhar, ficava aborrecido e, em resultado de um tique nervoso, erguia os seus magros
    ombros. Quando se encontravam e conversavam, já não havia entre eles entoações amigáveis,
    brincadeiras - ou, pelo menos, eu não me apercebia disso. Lenine, ao falar, deixava escorregar o olhar para
    o lado de Martov, e os olhos deste vitrificavam-se sob as lunetas que nunca limpava. E quando Vladimir
    Ilitch falava comigo de Martov, havia na sua voz uma nuance particular: «O quê, foi o Júlio que disse
    isso?». E então o nome de Júlio era pronunciado de uma certa maneira, ligeiramente sublinhada, como se
    Lenine fizesse um aviso: «Ele é bom, sem dúvida, ele é bom, é mesmo notável, mas infelizmente é um
    brando».
    Sem dúvida .alguma, Vera Ivanovna tinha também sobre Martov uma certa influência, não política, mas
    psicológica, conservando-o um pouco afastado de Lenine. É claro que o que eu aqui digo é mais uma
    generalização psicológica do que a constatação de um facto Imaterial; e isto reporta-se a coisa que se
    passaram já lá vão vinte e dois anos. Durante este tempo, muitas outras coisas vieram inscrever-se na
    minha memória e, na imagem que dou de momentos imponderáveis para caracterizar relações pessoais,
    pode haver inexactidões ou um desvio de perspectiva. Qual a parte da memória e qual a da imaginação
    que reconstrói involuntariamente à sua maneira o passado? Penso, contudo, que no essencial, a minha
    memória reproduz o que se passou e como se passou.
    Depois das minhas conferências experimentais, por assim dizer, em White-Chapel (Alexeiev apresentou
    sobre isso um «relatório» à redacção), mandaram-me fazer conferências no continente, em Bruxelas,
    Liège e Paris. O tema destas conferências era o seguinte: «Do materialismo histórico e do modo como ele
    é compreendido pelos socialistas-revolucionários». Vladimir Ilitch mostrou muita curiosidade pelo
    assunto. Apresentei-lhe um resumo pormenorizado, acompanhado de citações. Aconselhou-me a trabalhar
    o tema e a fazer sobre ele um artigo para o número seguinte do Zaria, porém não tive tal audácia.
    De Paris fui logo de seguida chamado por telegrama a Londres. Tratava-se de me enviarem ilegalmente à
    Rússia, de acordo com o esquema de Vladimir Ilitch: lá queixavam-se de carências, da falta de camaradas,
    e era Clair, creio, que reclamava o meu regresso. Mas, mal tivera tempo de chegar a Londres, já o plano
    estava modificado. L. G. Deutch, que então se encontrava em Londres e era muito bom para mim, contoume
    mais tarde como «interviera a meu favor», demonstrando que «este adolescente» (nunca me chamava
    de outra maneira) tinha necessidade de viver no estrangeiro para completar a sua instrução; Lenine, após
    ter discutido um pouco, aceitou a ideia. Era muito sedutor trabalhar na organização russa do Iskra; no
    entanto, aceitei de bom grado ficar ainda mais um tempo no estrangeiro. Um domingo, fui com Vladimir
    Ilitch e Nadejda Konstantinovna à igreja socialista de Londres, onde um meeting social-democrata se
    fazia acompanhar do canto de salmos, piedosamente revolucionários. O orador era um compositortipógrafo
    que regressara, creio, da Austrália. Vladimir Ilitch traduzia-nos em voz baixa o seu discurso, o
    qual tinha um sentido bastante revolucionário, pelo menos para essa época. Em seguida, todos se
    levantaram e cantaram: «Deus todo-poderoso, faz com que não haja mais sobre a terra nem reis, nem
    ricos...» ou qualquer coisa ,do género.
    - Há no proletariado inglês uma multidão de elementos revolucionários e socialistas que estão dispersos -
    disse a propósito Vladimir Ilitch, quando saímos da igreja; - mas tudo isso se combina com o
    conservadorismo, a religião, os preconceitos, e não consegue vingar e generalizar-se...
    Interessa aqui fazer notar que Zassulitch e Martov viviam completamente à margem do movimento
    operário inglês, estando totalmente absorvidos pelo Iskra e por aquilo que o rodeava; enquanto Lenine, de
    tempos a tempos, fazia incursões nos meios operários ingleses.
    É inútil dizer que Vladimir Ilitch, Nadejda Konstantinovna e a mãe desta viviam mais que modestamente.
    Regressados da igreja social democrata, almoçámos na pequena cozinha - sala de jantar da habitação
    composta por duas divisões. Vejo ainda os pequenos bocados de carne grelhada que foram servidos na
    frigideira. Tomou-se chá. Gracejaram, como sempre, acerca do meu regresso a casa, perguntando se eu
    seria capaz de encontrar sozinho o caminho: eu era muito desastrado a reconhecer as ruas e, com a minha
    tendência para a sistematização, chamava a este defeito «a minha cretinice topográfica».
    Aproximava-se a data fixada para o Congresso e, finalmente, foi decidido transferir o centro do Iskra para
    Genebra: a vida lá I era incomparavelmente mais barata e as ligações com a Rússia mais fáceis. Lenine,
    contra vontade, consentiu. Endossaram-me para Paris, de onde, juntamente com Martov, deveria partir
    para Genebra. A preparação do Congresso intensificou-se. Pouco tempo depois também Lenine chegou a
    Paris. Deveria fazer três conferências sobre a questão agrária na Escola de Altos Estudos Sociais, escola
    fundada em Paris pelos professores que haviam sido escorraçados das universidades russas. Os estudantes
    marxistas tinham insistido para que Lenine fosse convidado, tanto mais que Tchernov já anteriormente
    tomara a palavra neste estabelecimento. Os professores estavam preocupados e suplicavam ao
    conferencista agressivo que, na medida do possível, não provocasse polémica. Mas Lenine recusou aceitar
    qualquer condição e começou a primeira conferência dizendo que o marxismo era uma teoria
    revolucionária, a qual, por consequência, provocava polémica, mas que esta combatividade não estava de
    modo algum em contradição com o seu carácter científico.
    Lembro-me que antes desta primeira conferência Vladimir Ilitch estava muito excitado. Porém, na
    tribuna, dominou-se logo ou, pelo menos, tinha ar disso. O professor Gambarov, que viera para o ouvir,
    comunicou a Deutch a sua impressão em duas palavras: «Um verdadeiro professor!» Este homem amável
    julgava que fazia o maior dos elogios. Em todas as conferências entrou a polémica contra os Populistas e
    o social-reformista agrário David, que Lenine punha ao lado dos populistas; entretanto, as lições
    mantiveram-se no âmbito da teoria económica, sem tocar na luta política de então, no programa agrário da
    social-democracia, dos socialistas-revolucionários, etc. O conferencista quisera limitar-se assim, tendo em
    conta o carácter académico da cátedra. Mas, depois da terceira lição, Lenine fez uma conferência política
    sobre a questão agrária numa sala, creio que no nº 11O da avenida de Choisy; esta reunião foi organizada
    não pela Escola de Altos Estudos, mas pelo grupo parisiense do Iskra. A sala estava cheia. Todos os
    estudantes da Escola foram lá ouvir as deduções práticas do curso teórico que lhes tinha sido ministrado.
    A prelecção incidiu sobre o programa agrário do Iskra dessa época e, em particular, sobre a restituição às
    comunas das terras repartidas. Não me recordo do nome dos opositores que tomaram a palavra. Mas
    lembro-me que, na sua conclusão, Vladimir Ilitch foi maravilhoso. Um dos camaradas parisienses do Iskra
    disse-me à saída: «Hoje, Lenine ultrapassou-se». Como é habitual, os camaradas foram com o
    conferencista para o café. Estavam todos muito satisfeitos e o próprio Lenine encontrava-se num estado
    de agradável excitação. O tesoureiro do grupo, muito contente, comunicou-nos o montante da receita que
    ia entrar na caixa do Iskra: qualquer coisa como 75 ou 1OO francos, uma soma que não era de desprezar.
    Passou-se isto no princípio de 19O3. Não posso, neste momento, determinar exactamente a data, mas
    julgo que não será muito difícil fazê-lo, se é que não está já feito.
    Foi durante esta estadia de Lenine em Paris que se decidiu fazê-lo assistir a um espectáculo de ópera. N. I.
    Sedova, membro do Iskra, ficou encarregado disso. Vladimir Ilitch foi à Ópera Cómica e regressou com a
    pasta que não largava desde que ia dar os cursos na Escola dos Altos Estudos. Representava-se Louise, de
    Gustave Charpentier, um drama lírico cujo tema é muito democrático. Formávamos um grupo no
    galinheiro. Além de Lenine, Sedova e eu, estava também Martov, creio. Não me lembro dos outros. Esta
    ida à Ópera Cómica incluiu um pequeno incidente completamente estranho à música, mas que, no
    entanto, se gravou fortemente na minha memória. Lenine tinha comprado sapatos em Paris, mas eram
    muito apertados. Sofreu durante várias horas e, finalmente, decidiu desfazer-se deles. Como por acaso, os
    meus próprios sapatos precisavam de ser substituídos. Lenine deu-me os dele e, ao princípio, pareceu-me
    que eram mesmo da minha medida, tão contente fiquei. Decidi estreá-los ao ir à ópera Cómica. Na ida
    tudo correu bem. Mas no teatro comecei a sentir que a coisa estava a correr mal. Talvez por isso não me
    lembre da impressão que a ópera causou a Lenine e a mim próprio. Recordo apenas que ele estava então
    muito disposto a brincar e que ria muito. No regresso, eu já sofria cruelmente e Vladimir Illitch, sem
    qualquer piedade, gozou-me durante todo o caminho. No entanto, havia uma certa comiseração na sua
    troça: não tinha ele próprio sofrido o suplício dos sapatos durante várias horas?
    Falei atrás na agitação que sentia Lenine antes de começar as suas conferências. Impõe-se voltar ao
    assunto. Emoções deste género manifestaram-se em Lenine noutras circunstâncias e, muito mais tarde,
    quando teve de aparecer em público; e eram tanto mais fortes quanto mais «estrangeiro» era para ele o
    auditório e quanto mais acidental a ocasião do discurso. A maneira de falar de Lenine mostrava-se sempre
    cheia de segurança, de veemência; ele dizia rapidamente o que tinha para dizer, de modo que os seus
    discursos eram uma prova bastante dura para os estenógrafos. Mas quando não se sentia à vontade, a sua
    voz ficava com um som que não era o dele e que se parecia com uma espécie de eco reflectido e
    impessoal. Pelo contrário, quando Lenine sentia que o auditório era precisamente aquele que tinha grande
    necessidade de o ouvir, então a voz adquiria uma extrema vivacidade, tornava-se leve e persuasiva; já não
    era a voz de um «orador», no sentido comum do termo, era a voz de um conversador, mas elevada ao tom
    necessário à tribuna. Já não era arte oratória, ultrapassava a eloquência vulgar. Poder-se-á objectar, é
    verdade, que qualquer orador fala muito melhor quando se sente entre os seus. Em geral, está correcto.
    Mas a questão reside em saber em que auditório e em que circunstâncias um orador se sente como em
    casa. Os europeus, do tipo Vandervelde, formados nos hábitos parlamentares, precisam de um certo
    envolvimento solene e de tudo quanto apela para a eloquência. Nas reuniões em que se festejam
    aniversários ou se homenageiam entidades oficiais, sentem-se de facto bem. Mas, para Lenine, reuniões
    deste género representavam verdadeiras desgraçazinhas pessoais. Ele falava com muito brilho e de uma
    maneira persuasiva quando tinha de analisar questões de política de combate. As suas melhores peças de
    oratória devem ser os discursos que proferiu no Comité Central nas vésperas de Outubro.
    Notas: Primeira Parte
    (1)Nome próprio e nome paterno de Krupskaia, mulher de Lenine. - (N. do Ed.). (retornar ao texto)
    Antes das conferências de Paris tinha ouvido Lenine uma só vez, creio, em Londres, em fins de Dezembro
    de 19O2. Coisa bizarra, não me resta qualquer lembrança do carácter dessa manifestação, nem do tema
    que foi tratado. Estaria quase disposto a duvidar da realidade desta recordação. No entanto, tenho a
    certeza que houve então uma reunião de russos, muito importante para Londres, à qual assistiu Lenine; se
    ele não tivesse lá ido para fazer uma conferência, provavelmente não o teríamos visto. Explico da seguinte
    maneira esta lacuna da minha memória: a conferência foi provavelmente consagrada, como habitualmente
    se fazia, a um tema tratado no último número do Iskra; eu tivera assim a possibilidade de ler o artigo de
    Lenine sobre o assunto e, consequentemente, a conferência não apresentava para mim nada de novo; além
    disso, não houve debates; os poucos adversários que se encontravam em Londres não tiveram a audácia de
    tomar a palavra contra Lenine; o auditório, composto em parte por «bundistas», em parte por anarquistas,
    constituía um meio bastante ingrato; como resultado de tudo isso, a conferência deixou poucos vestígios.
    Lembro-me apenas que no fim da reunião os B..., marido e mulher, do antigo grupo de Petersburgo «O
    Pensamento Operário» (Rabotchaia Misl), que viviam há bastante tempo em Londres, se aproximaram de
    mim e me convidaram:
    - Venha a nossa casa na véspera do Ano-Novo. (É por isso que eu localizo a data da reunião no fim de
    Dezembro).
    - Porquê? - perguntei espantado, como autêntico bárbaro.
    - Passaremos o tempo entre camaradas. Ulianov estará lá e Krupskaia também. i Lembro-me bem que
    eles disseram Ulianov e não Lenine; não compreendi logo à primeira de quem é que se tratava. Zassulitch
    e Martov foram igualmente convidados. No dia seguinte, no «covil», reunimo-nos em conselho para saber
    o que fazer; perguntámos a Lenine se ele corresponderia ao convite. Julgo que ninguém lá foi. E foi pena:
    teria sido uma ocasião excepcional única no género, para ver Lenine, com Zassulitch e Martov, numa
    festa de Ano-Novo.
    Quando cheguei a Genebra ido de Paris, fui convidado para casa de Plekanov, com Martov e Zassulitch;
    penso que Vladimir Ilitch também lá foi. No entanto, dessa noite apenas me resta uma recordação
    extremamente confusa. Em todo o caso, essa reunião não teve qualquer carácter político; poderia dizer-se
    que foi «mundana» ou, ainda, das mais banais. Eu conservei-me na minha cadeira, lembro-me disso,
    bastante desanimado e aborrecido e, desde que o dono ou a dona da casa não me prestassem o mínimo
    sinal de atenção, não sabia que fazer de mim próprio. As filhas de Plekanov serviam chá e bolinhos.
    Havia em todas as palavras, em todos os gestos, qualquer coisa de tenso, uma espécie de constrangimento
    que provavelmente não era só eu a sentir. Talvez por causa da minha juventude eu sentisse essa ligeira
    frieza mais vivamente que os outros. Esta visita a Plekanov foi a primeira e a última. É claro que as
    impressões que me ficaram foram das mais fugidias e, muito possivelmente, fortuitas, tal como foram
    fugidios e fortuitos todos os meus encontros com Plekanov. Tentei noutro lado caracterizar
    resumidamente a brilhante figura do primeiro mestre em marxismo que jamais a Rússia teve., Limito-me
    aqui às impressões dos primeiros encontros, nos quais, ai de mim, não tive realmente grande sorte.
    Zassulitch, que ficava muito triste com tudo isto, dizia-me
    - Sei que o Jorge é algumas vezes insuportável, mas, no fundo, é um animal do mais amável que há. (Era
    a maneira dela fazer um elogio).
    Não pude evitar referir aqui que na família de Axelrod reinava uma atmosfera de simplicidade e de
    sincera camaradagem. Ainda hoje me lembro, com gratidão, das horas que passei à mesa hospitaleira dos
    Axelrod quando das minhas frequentes idas a Zurique. Vladimir Ilitch também lá foi mais do que uma vez
    e, tanto quanto eu sei pelas narrativas desta família, sentia-se ali confortado e à vontade. Aliás, não tive
    oportunidade de o encontrar em casa dos Axelrod.
    Quanto a Zassulitch, a sua simplicidade e afabilidade em relação aos jovens camaradas eram
    verdadeiramente incomparáveis. Se não se pode falar da sua hospitalidade no sentido habitual do termo, é
    que ela tinha mais necessidade de lhe receber o benefício do que de a proporcionar aos outros. Vivia,
    vestia-se e alimentava-se como a mais modesta das estudantes. No domínio dos valores materiais, as suas
    maiores alegrias eram o tabaco e a mostarda. Consumia um e outra em grandes quantidades. Quando
    espalhava sobre uma fatia muito fina de presunto uma espessa camada de mostarda, nós dizíamos: «Vera
    Ivanovna está na farra ».
    L. G. Deutch, quarto membro do grupo A Emancipação do Trabalho, também se distinguia pela sua
    bondade e atenção para com a juventude. Até agora não referi que, na qualidade de administrador do
    Iskra, ele assistia às sessões da redacção com voz consultiva. Deutch acompanhava geralmente Plekanov,
    tendo opiniões mais que moderadas sobre a táctica revolucionária. Um dia pôs-me estupefacto ao
    declarar:
    - Nunca haverá um levantamento armado, meu jovem, e tal não é necessário. Na penitenciária havia
    «galos» entre nós que, ao primeiro pretexto, procuravam combater e faziam-se agredir. Eu seguia outra
    conduta: ser firme, fazer constar à administração que se poderia vir a dar uma grande batalha, mas sem
    nunca se chegar a vias de facto. Por este meio, obtinha um certo respeito por parte da administração e
    condições mais suaves no regime. É a táctica que devemos empregar face ao csarismo; de outro modo,
    demolir-nos-ão, aniquilar-nos-ão sem qualquer utilidade para a causa...
    Fiquei de tal maneira fulminado com este sermão sobre a táctica que falei dele sucessivamente a Martov,
    a Zassulitch e a Lenine. Não me lembro qual foi a reacção de Martov. Vera Ivanovna disse-me:
    - O Eugénio (era o velho pseudónimo de Deutch) foi sempre assim: pessoalmente é um homem duma
    coragem excepcional; mas, em política, é extremamente prudente e comedido.
    Lenine, depois de me ter ouvido, pronunciou qualquer coisa ,do género de: «Hum...hum...si-im», e
    desatámos ambos a rir, sem mais comentários.
    Os primeiros delegados do próximo II Congresso começavam a reunir-se em Genebra e nós
    conferenciávamos com eles ininterruptamente. Neste trabalho preparatório Lenine tinha indiscutivelmente
    preponderância, muito embora o seu papel não fosse sempre perceptível. Havia sessões da redacção do
    Iskra, sessões de organização do Iskra, reuniões separadas com grupos de delegados e assembleias
    plenárias. Uma parte dos delegados tinha chegado com dúvidas, objecções ou reclamações de grupos. Este
    trabalho preparatório absorvia muito tempo.
    Apenas três operários vieram ao congresso. Lenine conversou em pormenor com cada um deles e
    conquistou-os a todos. Um deles era Schotmann, de Petersburgo. Era ainda muito jovem, mas prudente e
    ponderado. Lembro-me que, regressados de uma conversa com Lenine (Schotmann tinha ficado na mesma
    casa onde eu estava), repetia sem parar:
    - Como brilham os seus olhinhos! Dir-se-ia que eles vêem através de nós!...
    O delegado de Nicolaiev era Kalafati. Vladimir Ilitch interrogou-me longamente sobre a pessoa dele,
    porque eu o tinha conhecido lá, em Nicolaiev, e depois, com um ar malicioso, acrescentou:
    - Ele diz que, quando o conheceu, você era qualquer coisa do género dum tolstoiniano.
    - Pois bem! Aí está uma asneira! - exclamei, quase indignado.
    - Bah! não há grande mal nisso! - replicou Lenine, fosse para me consolar, fosse para me atazanar. - Você
    tinha então, creio, dezoito anos, e bem sabe que as pessoas não nascem marxistas.
    - Pode ser - respondi -, mas quanto ao tolstoiismo, nunca tive nada de comum com isso.
    Nas reuniões preparatórias demos muita atenção à elaboração dos estatutos; um dos momentos mais
    importantes nos debates sobre o esquema de organização foi aquele em que se discutiram as relações
    mútuas entre o jornal central e o Comité Central. Eu tinha ido para o estrangeiro com a ideia de que o
    jornal central devia «subordinar-se» ao Comité Central. Tal era O estado de espírito da maioria dos
    «russos» do Iskra, sem que, contudo, esta opinião fosse muito clara e firme.
    - Isso não funciona - replicou-me Vladimir Ilitch. A proporção das forças não se apresenta assim.
    Vejamos, como farão eles para nos comandar de lá dos confins da Rússia? Isso não funciona... Nós
    formamos um centro estável e somos nós que comandaremos daqui.
    Estava dito num dos projectos que o órgão central seria obrigado a publicar os artigos dos membros do
    Comité Central.
    - Mesmo contra o jornal central? - perguntou Lenine.
    - Evidentemente.
    - E para quê? Isso não tem razão de ser. Uma polémica entre dois membros do órgão central poderia ser
    útil em certas condições; mas uma polémica dos «russos» do Comité Central (quer dizer, dos membros
    que residiam na Rússia) contra o órgão central seria inaceitável.
    - Então, é a ditadura completa do jornal central? - perguntei eu.
    - E que mal vê nisso? - replicou Lenine. É assim que tem de ser na presente situação.
    Houve nesse período muito reboliço à volta da questão do «direito de cooptação». Numa das reuniões,
    nós, os jovens, acabámos por decidir sobre o direito de cooptação positiva e negativa.
    - Mas aquilo a que vocês chamam cooptação negativa é, pura e simplesmente, aquilo que em bom russo se
    chama «pôr no olho da rua» - disse-me no dia seguinte Vladimir Ilitch, que se pôs a rir. - Não é tão
    simples como parece. Experimente só - ha! ha! ha! - fazer uma cooptação negativa na redacção do Iskra!
    Para Lenine, a mais grave das questões consistia em saber como se organizaria em seguida o órgão central
    que, em suma, devia desempenhar simultaneamente o papel do Comité Central. Lenine julgava
    impossível manter o antigo conselho dos seis. Quase infalivelmente, Zassulitch e Axelrod tomavam em
    todas as questões litigiosas o partido de Plekanov, .em consequência do que, no melhor dos casos,
    estávamos três contra três. Nem um nem outro destes dois grupos teria consentido eliminar um dos
    membros do Conselho. Portanto, nada mais restava senão seguir o caminho oposto e ampliar o Conselho.
    Lenine queria que eu fosse o sétimo, de modo que, sendo o Conselho dos sete considerado como uma
    redacção ampliada, formaríamos um grupo redactorial mais restrito, composto por Lenine, Plekanov e
    Martov. Vladimir Ilitch punha-me pouco a pouco ao corrente deste plano, sem dizer, aliás, uma só palavra
    sobre a proposta que fizera de me pôr a mim como sétimo membro da redacção, sem me dizer que esta
    proposta tinha sido aceite por todos, salvo Plekanov, em quem o plano encontrou um adversário firme. A
    introdução de um sétimo já significava por si mesma, aos olhos de Plekanov, um aumento do grupo da
    Emancipação do Trabalho: quatro «jovens» contra três «velhos»!
    Penso que este plano foi a causa principal da atitude eminentemente antipática de Jorge Valentinovitch
    relativamente à minha pessoa. Além disso, para cúmulo do azar, manifestaram-se abertamente entre nós
    pequenos mal entendidos diante dos olhos dos delegados. Isto começou, parece-me, por causa dum
    projecto de um jornal popular. Certos delegados insistiam na necessidade de se criar, a par do Iskra, um
    órgão que aparecesse, se possível, na Rússia. Tal era particularmente a ideia do grupo «O Jovem
    Operário». Lenine era um adversário firme deste projecto. Os motivos que apresentava para isso eram de
    diversa ordem, mas o principal residia no medo de que se formasse um grupo particular que pudesse
    constituir-se na base de uma «popularização» simplificada das ideias da social-democracia antes que o
    núcleo do partido tivesse tempo de consolidar-se como devia. Plekanov declarava-se resolutamente pela
    criação de um órgão popular, opondo-se a Lenine e procurando evidentemente o apoio dos delegados
    regionais. Eu apoiava Lenine. Numa das reuniões desenvolvi a ideia - certa ou errada, já não importa
    agora - de que nós tínhamos necessidade não de um órgão popular, mas de uma série de brochuras e
    folhetos de propaganda, que ajudariam os operários mais evoluídos a elevar-se ao nível do Iskra, e que um
    jornal popular reduziria o lugar ocupado pelo Iskra e faria desaparecer a fisionomia política do Partido,
    fazendo-o descer ao «economismo» e ao socialismo-revolucionário. Plekanov replicou-me:
    - Por que razão faria o jornal desaparecer a fisionomia do Partido? É claro que, num órgão popular, nós
    não poderemos dizer tudo quanto temos para dizer. Apresentaremos nele reivindicações, palavras de
    ordem, sem nos ocuparmos com questões de táctica. Diremos ao operário que é preciso lutar contra o
    capitalismo, mas, como é evidente, não faremos teoria sobre a maneira como se deve lutar contra o
    capitalismo.
    Servi-me desta argumentação:
    - Mas - disse eu -, os «economistas» e os socialistas-revolucionários dizem todos que é preciso lutar
    contra o capitalismo. A divergência começa justamente no ponto onde é preciso determinar a maneira de
    lutar. Se num órgão popular nós não respondermos a esta questão, faremos desaparecer, por isso mesmo, a
    diferença entre nós e os socialistas-revolucionários...
    A minha réplica pareceu vitoriosa. Plekanov não encontrou nada para lhe opor. É evidente que este
    episódio não contribuiu para melhorar as nossas relações.
    Depressa se produziu um novo conflito numa sessão da redacção, que decidiu, enquanto esperava que o
    Congresso regulasse a questão do efectivo redactorial, admitir-me nas sessões com voz consultiva.
    Plekanov opôs-se categoricamente. Mas Vera Ivanovna disse-lhe:
    - Pois bem, quem o leva sou eu. E, com efeito, levou-me à sessão. Só muito mais tarde tive conhecimento
    deste segredo de bastidores; apresentei-me na redacção sem saber de nada, sem nada ter adivinhado. Jorge
    Valentinovitch saudou-me com a polidez refinada em que se tinha tornado mestre.
    Por infelicidade, a redacção iria nessa mesma sessão examinar um conflito que tinha eclodido entre
    Deutch e Blumenfeld, de que já atrás falei. Deutch era administrador do Iskra. Blumenfeld dirigia a
    tipografia. Neste campo surgiu uma contestação acerca das competências. Blumenfeld queixava-se da
    intromissão de Deutch nos assuntos internos da tipografia. Plekanov, por razões de velha amizade, apoiou
    Deutch e propôs que se limitassem os direitos de Blumenfeld à técnica tipográfica.
    Eu repliquei que era impossível dirigir-se uma tipografia restringindo-se a pessoa simplesmente ao
    domínio da execução técnica; que também existiam problemas de organização e de administração, e que
    Blumenfeld devia ter autonomia em todas estas questões.
    Lembro-me da réplica azeda de Plekanov:
    - Sem dúvida que o camarada Trotski tem razão ao dizer que à técnica se sobrepõem a diversos elementos
    administrativos e outros, como nos ensina a teoria do materialismo histórico; no entanto..., etc..
    Lenine e Martov apoiaram-me com circunspecção e fizeram adoptar uma decisão no sentido por mim
    apontado. Foi a gota que fez transbordar o copo.
    Nestas duas circunstâncias Vladimir Ilitch colocou-se, como vimos, do meu lado. Mas, ao mesmo tempo,
    observava com apreensão o modo como as minhas relações com Plekanov se iam deteriorando, o que
    ameaçava comprometer definitivamente o plano de reorganização da redacção que ele tinha delineado.
    Numa das reuniões seguintes, onde se encontravam delegados chegados de novo, Lenine, puxando-me
    para o lado, disse-me:
    - Na questão do jornal popular, deixe que seja antes Martov a responder a Plekanov. Martov deixará
    escorregar o assunto, enquanto você quererá mesmo cortar. É melhor deixar escorregar.
    Estas expressões «cortar» e «deixar escorregar» ficaram nitidamente gravadas na minha memória.
    Depois de uma das sessões da redacção no café «Landolt», talvez depois da sessão de que acabei de falar,
    Zassulitch, com o tom particular que empregava em tais circunstâncias, numa voz timidamente insistente,
    queixou-se de nos ver atacar «demasiado» os liberais. Era nela o ponto fraco.
    - Vejam - dizia -, como eles se esforçam. - O seu olhar evitava Lenine, mas era sobretudo a ele que se
    dirigia. - No último número da Emancipação, Struve dá o exemplo de Jaurés; exige que os liberais russos
    não rompam com o socialismo, sem o que ficariam sob a ameaça de sofrer a miserável sorte do
    liberalismo alemão; quer que eles se inspirem no exemplo dos radicais-socialistas franceses.
    Lenine estava em pé, próximo da mesa, com um falso «panamá» na cabeça, que tinha puxado para a testa
    (a sessão terminara e ele ,preparava-se para sair).
    - É preciso bater neles ainda com mais força - disse, sorrindo alegremente e como que para arreliar Vera
    Ivanovna. - Pois! pois! - exclamou ela verdadeiramente desolada - dão um passo para nós, e nós devemos
    bater-lhes!
    - Precisamente. Struve disse aos seus liberais: em vez de usarem contra o nosso socialismo os grosseiros
    processos alemães, devem empregar os meios mais subtis dos franceses; é preciso atrair, amimar, enganar,
    desviar à maneira dos radicais de esquerda, franceses que andam de namoro com o jauressismo.
    Está visto que eu não relato literalmente esta memorável conversa. Mas o seu sentido e espírito gravaramse-
    me na memória com a maior nitidez. Não tenho à mão, neste momento, material que me permita
    verificar aquilo que relato, mas não é difícil fazer esta verificação: basta folhear os números de A
    Emancipação da Primavera de 19O3 e encontrar-se-á um artigo de Struve consagrado à questão da atitude
    dos liberais face ao socialismo democrático em geral, bem como ao jauressismo em particular. lembro-me
    desse artigo de acordo com o que me disse Vera Ivanovna na cena que acabo de relatar. Se se somar à data
    inscrita no número de A Emancipação a que me refiro o lapso de tempo para que essa publicação
    chegasse a Genebra, se encontrasse nas mãos de Vera Ivanovna e fosse lida, quer dizer, três a quatro dias,
    poder-se-á estabelecer de uma forma bastante ,exacta a data da discussão que acabo de narrar, no café
    «Landolt». Foi, lembro-me, num dia primaveril (talvez no princípio do Verão), o sol brilhava alegremente
    e o risinho vindo da garganta de Lenine era jovial. Recordo-me do seu ar tranquilamente trocista, seguro
    de si mesmo e «sólido» - precisamente sólido, embora Vladimir Ilitch fosse então bastante magro e não
    como era no último período da sua vida. Vera Ivanovna, como sempre, exultava, voltando-se ora para um
    ora para outro. Mas ninguém, parece-me, se meteu na discussão, a qual, aliás, não durou muito tempo,
    apenas o tempo de se pegar nos chapéus.
    Eu e Zassulitch regressámos juntos. Ela mostrava-se abatida, sentindo que o jogo de Struve estava de
    facto estragado. Eu não lhe podia dar nenhum consolo. Entretanto, nenhum de nós pressentia então em
    que medida, quão admiravelmente, tinham sido anulados os trunfos do liberalismo russo neste pequeno
    diálogo que teve lugar perto da porta do café «Landolt».
    * * *
    Reconheço todas as insuficiências daquilo que acabo de contar: a minha narrativa é mais pobre do que eu
    a imaginava quando lancei mãos a este trabalho. No entanto, diligentemente recolhi tudo o que a minha
    memória reteve, mesmo o menos significativo, pois actualmente já não resta ninguém que possa falar em
    pormenor deste período. Plekanov está morto. Zassulitch morreu. Martov morreu. E Lenine também. É
    duvidoso que algum deles tenha deixado as suas memórias. Talvez Vera Ivanovna? Mas não ouvimos
    falar disso. Da redacção do Iskra dessa época apenas restam Axelrod e Potressov. Tanto um como outro,
    excluídos motivos de outra ordem, não tomaram parte de modo significativo no trabalho da redacção e
    assistiram poucas vezes às nossas reuniões. L. G. Deutch poderia contar alguma coisa, mas também ele
    partiu para o estrangeiro próximo do fim da época atrás descrita, pouco tempo antes de mim próprio, e,
    além disso, não participou directamente nos trabalhos da redacção. Informações inestimáveis poderão ser
    dadas e sê-lo-ão, esperemos, por Nadejda Konstantinovna. Ela estava então no fulcro de todo o trabalho
    de organização; era ela que recebia os camaradas vindos de longe, era ela que fazia as recomendações e
    que conduzia ao caminho de ferro os que partiam; era ela que estabelecia as ligações, que fixava os
    encontros, que escrevia as cartas, que cifrava, que decifrava. No seu quarto sentia-se quase sempre o
    cheiro de papel aquecido à chama. E frequentemente lamentava-se, com a sua doce insistência, por não
    receber muitas cartas, ou por haver engano na cifra ou por terem sido escritas com tinta química de tal
    modo que uma linha se sobre- punha a outra, etc.. Claro que mais importante ainda é o facto de, neste
    trabalho de organização ao lado de Lenine, Nadejda Konstantinovna poder dia a dia observar tudo o que
    se passava com ele e ao seu redor. No entanto, estas linhas, assim o espero, não serão supérfluas, em parte
    porque Nadejda Konstantinovna assistia poucas vezes és reuniões da redacção, pelo menos àquelas onde
    estive presente. E, finalmente, sobretudo porque o observador do exterior regista mais facilmente aquilo
    que não se vê quando a presença é constante. Seja como for, contei o que fui capaz. Porém, agora,
    gostaria de formular algumas reflexões gerais, gostaria de dizer por que razão, em minha opinião, na
    época do antigo Iskra se produziu uma crise decisiva no sentimento político que Lenine devia ter em
    relação a si próprio, na maneira como, por assim dizer, a si mesmo se apreciava; por que razão esta crise
    foi inevitável e se tornou indispensável. Lenine chegou ao estrangeiro na maturidade, com a idade de
    trinta anos. Na Rússia, nos círculos estudantis, nos primeiros grupos da social-democracia, nas colónias
    de deportados, tinha ocupado o primeiro lugar. Ele não podia deixar de sentir a sua própria forma, até pela
    simples razão de que todos aqueles, com quem contactava e trabalhava a reconheciam. Partiu para o
    estrangeiro de posse de uma bagagem teórica muito importante, com uma séria provisão de experiência
    política e todo animado dessa tensão para o objectivo que constituía a sua verdadeira natureza espiritual.
    No estrangeiro iria primeiramente colaborar com o grupo de A Emancipação do Trabalho e, antes do
    mais, com Plekanov, o profundo e brilhante comentador de Marx, o mestre de várias gerações, teórico,
    pensador político, publicista, orador que criara uma nome europeu e ligações em toda a Europa. Ao lado
    de :Plekanov encontravam-se duas grandes autoridades: Zassulitch e Axelrod. Não só o passado heróico
    de Vera Ivanovna a colocava na vanguarda, como também ela era dotada de um espirito dos mais
    penetrantes, de uma vasta cultura, principalmente histórica, e de uma rara intuição psicológica. Por
    intermédio de Zassulitch tinha-se estabelecido no seu tempo a ligação do «Grupo» com o velho Engels.
    Ao contrário de Plekanov e de Zassulitch, que estavam mais estreitamente ligados ao socialismo latino,
    Axelrod representava no «Grupo» as ideias e a experiência da social-democracia alemã. Esta diferença das
    «esferas de influência» exprimia-se mesmo através dos locais de residência. Plekanov e Zassulitch
    habitavam sobretudo em Genebra, Axelrod em Zurique. Axelrod tinha-se dedicado és questões de táctica.
    Como é sabido, não deixou nenhum estudo de teoria ou história. Geralmente escrevia pouco. Mas aquilo
    que escrevia tratava quase sempre das questões de táctica do socialismo. Neste domínio Axelrod mostrava
    originalidade e penetração. Pelas múltiplas conversas que tive com ele (durante algum tempo eu e ele
    estivemos muito ligados, bem como com Zassulitch), imagino perfeitamente que muitas das coisas
    escritas por Plekanov sobre as questões de táctica foram o resultado de um trabalho colectivo e que neste
    trabalho a parte de Axelrod é muito mais importante do que possa parecer através dos documentos
    impressos. O próprio Axelrod dissera mais de uma vez a Plekanov, chefe indiscutível e querido do
    «Grupo» (até à ruptura em 19O3):
    - Tu, Jorge, tu tens a tromba comprida, consegues ir buscar tudo quanto precisas.
    Axelrod escreveu, como se sabe, o prefácio dum manuscrito enviado da Rússia por Lenine: «As Tarefas
    dos Social-Democratas na Rússia».
    Em consequência disso, o «Grupo» adoptou de algum modo o jovem e dotado trabalhador russo, mas, ao
    mesmo tempo, isto provava que ele era considerado como um discípulo. Foi precisamente na qualidade de
    discípulo que Lenine chegou ao estrangeiro, com dois outros alunos.
    Não assisti aos primeiros encontros dos alunos com os mestres, as conversas em que foi elaborada a linha
    principal do Iskra. Não é, porém, difícil de compreender, à luz das observações sobre o semestre que
    acabei de descrever e particularmente à luz do II Congresso do partido, que a gravidade do conflito, para
    além das questões de principio que só então começavam a levantar-se, tinha como causa a inexactidão do
    julgamento feito pelos antigos sobre a importância crescente e o significado do leninismo.
    Durante o II Congresso e logo após, a indignação de Axelrod e dos outros membros da redacção contra
    Lenine fazia-se acompanhar de uma certa espantação:
    - Como ousou ele ir tão longe? A surpresa aumentou ainda mais quando depois da ruptura de Plekanov a
    Lenine, que se deu logo a seguir ao congresso, Lenine continuou apesar de tudo, a conduzir a batalha.
    O estado de espirito de Axelrod e dos outros poderia talvez exprimir-se nestes termos: «Que mosca lhe
    mordeu?»
    «Ainda não há muito tempo que chegou ao estrangeiro, diziam os antigos; veio na qualidade de discípulo
    e foi assim que ele se apresentou (naquilo que contou sobre os primeiros meses do Iskra, Axelrod insistia
    especialmente neste ponto. Donde lhe vem agora, de repente, esta bela segurança? Que audácia é esta?»
    etc..
    Em seguida, procuravam adivinhar-lhe os esquemas: ele tinha preparado o seu terreno na Rússia, não era
    de espantar que todos os meios de ligação estivessem nas mãos de Nadejda Konstantinovna; era 1á que
    muito discretamente se trabalhava a opinião dos camaradas russos contra o Grupo da Emancipação do
    Trabalho. Zassulitch não estava menos indignada que os outros, mas talvez ela compreendesse um pouco
    melhor. Não fora em vão que dissera a Lenine que quando ele mordia «não largava mais», e nisso se
    distinguia de Plekanov. E sabe-se lá que impressão não teriam produzido estas palavras no seu tempo?
    Não tinha Lenine repetido: «Sim, é verdade: quem conhecerá melhor Plekanov do que Zassulitch? Ele
    mordisca, puxa e abandona a Presa; ora não se trata aqui de mordiscar para depois largar... é preciso
    morder e segurar firme».
    Em que medida e em que sentido podia ser verdade ter Lenine antecipadamente «trabalhado» a opinião
    dos camaradas na Rússia, é Nadejda Konstantinovna que no-lo contará melhor que ninguém. Mas num
    sentido mais amplo e sem invocar factos concretos, pode dizer-se que essa preparação dos espíritos teve
    lugar. Lenine pensava sempre no amanhã quando estabelecia e reforçava as bases de hoje. O seu
    pensamento criador nunca arrefecia e a sua vigilância não se deixava adormecer. E quando ele se
    convenceu de que o Grupo da Emancipação do Trabalho não era capaz de tomar nas próprias mãos a
    direcção imediata da vanguarda proletária para organizar a luta face à revolução que se aproximava, tirou
    dai todas as conclusões que se lhe impunham. Foi neste ponto que os antigos se enganaram, e não só os
    antigos: aquele que tinham diante de si já não era simplesmente o jovem trabalhador de espirito notável a
    quem Axelrod concedera a distinção dum prefácio amigavelmente protector; era um chefe, todo ele virado
    para o seu objectivo, e que, ao que me parece, se sentia em definitivo chefe quando no seu trabalho estava
    lado a lado com os antigos, com os mestres. Tinha verificado que era mais forte e mais indispensável do
    que eles. É verdade que também na Rússia, segundo Martov, Lenine era o primeiro entre os seus pares.
    No entanto, tratava-se então unicamente dos primeiros círculos social-democratas, de jovens
    organizações. Na Rússia, as reputações tinham ainda um caracter provinciano: quantos Lassalle russos
    havia então, quantos Bebel! O Grupo da Emancipação do Trabalho era outra coisa: Plekanov, Axelrod e
    Zassulitch encontravam-se ao mesmo nível de Kautski, Lafargue, Guesdo e Bebel, o verdadeiro Bebel
    alemão. A medir forças com eles no trabalho é que Lenine ganha a sua dimensão europeia. Foi
    precisamente nos diferendos com Plekanov, quando a redacção se agrupava segundo dois eixos, foi então
    que Lenine reforçou a segurança em si próprio, endurecimento sem o qual mais tarde não teria sido
    Lenine.
    Ora os diferendos com os antigos eram inevitáveis. Não porque se estivesse, à primeira vista, em presença
    de duas concepções diferentes do movimento revolucionário. Não, nesse período ainda não era assim.
    Mas o próprio lado pelo qual se abordavam os acontecimentos políticos, as tarefas de organização e, em
    geral, todos os trabalhos práticos, e pelo qual, consequentemente, se abordava a próxima revolução, esse
    era profundamente distinto para cada um dos campos. Nessa época os antigos já estavam na emigração há
    uma vintena de anos. Para eles o Iskra e o Zaria eram, acima de tudo, empresas jornalísticas. Porém, para
    Lenine eram um instrumento directo da acção revolucionária. Em Plekanov, como se viu alguns anos
    mais tarde, em 19O5-19O6, e ainda mais tragicamente na época da guerra imperialista, em Plekanov
    havia lá no fundo um céptico da revolução; ele olhava de alto esta tensão para o objective que
    caracterizava Lenine e, quanto a este assunto, tinha guardadas no saco várias piadas condescendentes e
    venenosas. Axelrod, como já se disse, andava mais próximo dos problemas da táctica, mas o seu
    pensamento obstinava-se a não sair do circulo das questões da preparação para a preparação. Muitas vezes
    Axelrod analisava com uma grande arte as tendências e as nuances no interior dos diversos grupos
    socialistas de intelectuais revolucionários. Era um homeopata da política pré-revolucionária. Os seus
    métodos e procedimentos tinham um caracter de laboratório, de farmácia. As quantidades sobre as quais
    trabalha são sempre infinitamente pequenas: os grupos que estuda, vê-se obrigado a pô-los numa balança
    de precisão devido aos seus pesos mais que minúsculos. Não era em vão que L. G. Deutch assemelhava
    Axelrod ao tipo de Spinoza; e não era em vão que Spinoza era lapidador de diamantes: este trabalho,
    como é sabido, faz-se á lupa. Ora Lenine considerava os acontecimentos e as relações sociais «em
    grosso», habituava o pensamento a dominar as massas sociais, e deste modo reflectia a imagem da
    revolução em marcha, o que, por imprevisto, surpreendia quer Plekanov, quer Axelrod.
    O aproximar da revolução era sentido, ao que parece, mais directamente por Vera Ivanovna Zassulitch do
    que pelos outros antigos. O seu conhecimento vivo da história, livre de todo e qualquer pedantismo,
    saturado de intuição, ajudou-a muito neste caso. Porém, ela sentia a revolução como uma velha radical.
    Até ao fundo da sua alma, estava convencida de que nós possuíamos todos os elementos da revolução à
    excepção de um «verdadeiro» liberalismo, seguro de si mesmo, que deveria tomar a direcção do
    movimento; pensava que nós outros, marxistas, pela nossa critica prematura e pela nossa maneira de
    «encurralar» os liberais, apenas os podíamos assustar, e que, por isso mesmo, desempenhávamos, de
    facto, um papel contra-revolucionário. Na imprensa, diga-se a verdade, Vera Ivanovna não dizia nada. E
    nas converses pessoais nem sempre exprimia o seu pensamento até ao fim. Mas, apesar de tudo, era
    aquela a sua convicção mais intima. E dai resultava o antagonismo com Paul (Axelrod), que ela
    considerava um doutrinário. Efectivamente, dentro dos limites da homeopatia táctica, Axelrod defendia,
    sem falhar, a hegemonia revolucionária da social-democracia. Apenas se recusava a alterar este ponto de
    vista, a abandonar a linguagem dos grupos e dos pequenos círculos para tomar a das classes, num
    momento em que as classes se puseram em movimento. Era aí que se abria o abismo entre ele a Lenine.
    Lenine não chegou ao estrangeiro como um marxista «em geral», para desempenhar uma tarefa de
    literatura revolucionária «em geral», não simplesmente para continuar o trabalho de vinte anos do Grupo
    da Emancipação do Trabalho. Não, ele chegou como um chefe virtual; não como chefe «em geral», mas
    como o chefe desta revolução que ia crescendo, que ele sentia, palpava. Chegou para preparar, no mais
    curto espaço de tempo possível, as ideias e o aparelho da organização desta revolução. E quando falo da
    sua tensão para o objectivo, a um tempo frenética e disciplinada, não o entendo no sentido de que ele,
    Lenine, se esforçasse por concorrer para o triunfo «final»; não, seria uma frase demasiado genérica e vazia
    - mas entendo-o neste sentido concreto, director imediato, de que ele se fixou um objectivo prático:
    acelerar a chegada da revolução e garantir-lhe a vitória. Quando Lenine, no seu trabalho no estrangeiro, se
    encontrou lado a lado com Plekanov, quando entre eles desapareceu aquilo a que os alemães chamam
    gravemente a «distância», não podia deixar de ser luminoso para o «discípulo» que, na questão para ele
    essencial do seu tempo, quase nada tinha a aprender do mestre e que, até, tal mestre contemporizador, por
    cepticismo, era capaz, com a sua autoridade, de entravar o trabalho salutar e de lhe roubar a ele, Lenine,
    colaboradores mais jovens. Dai o cuidado vigilante com que Lenine se ocupou da composição da
    redacção, dai a combinação dos «sete» e dos «três», dai o seu esforço para desligar Plekanov do Grupo da
    Emancipação do Trabalho, para criar uma direcção ternária, na qual Lenine «aguentaria» sempre Plekanov
    nas questões de teoria revolucionária e Martov nas questões política. As combinações pessoais podiam
    mudar; mas «a antecipação» restava imutável no essencial e, finalmente, tomou forma em carne, em osso
    e em sangue.
    No II Congresso Lenine conquistou Plekanov, mas sem esperança de o conservar por muito tempo;
    simultaneamente perdeu Martov, o este para sempre. Plekanov tinha evidentemente sentido qualquer
    coisa no II Congresso; pelo menos, disse na altura a Axelrod, em resposta às queixas amargas deste e ao
    espanto que lhe causava a aliança de Plekanov com Lenine: «É desta massa que se fazem os
    Robespierres!» Não sei se esta frase notável foi alguma vez citada na imprensa e até se ela é conhecida do
    partido; porém, garanto-lhe a autenticidade., «É desta massa que se fazem os Robespierres!» E mesmo
    algo mais, Jorge Valentinovitch! - respondeu a história. Mas, evidentemente, esta revelação da história
    cedo empalideceu na consciência do próprio Plekanov. Rompeu com Lenine, voltou ao cepticismo e às
    piadas venenosas que, com o tempo, perderam aliás o veneno.
    Mas na antecipação «divisionista» não se tratava apenas de Plekanov, nem apenas dos antigos. Com o
    segundo Congresso terminava de algum modo a frase primária do período preparatório. A circunstância
    de a organização do Iskra se ter cindido de uma maneira de facto inesperada no Congresso, de se ter
    dividido em duas partes quase iguais, esta circunstância prova por si mesma que, na fase primária, tinha
    ainda havido bastantes reticências. O partido de classe estava ainda justamente a furar a casca do
    radicalismo intelectual. A corrente que conduzia os intelectuais ao marxismo ainda não fora interrompida
    O movimento estudantil, através da sua ala esquerda, estava em contacto com o Iskra. Nos meios da
    juventude intelectual, sobretudo no estrangeiro, os grupos que prestavam colaboração ao Iskra eram muito
    numerosos. Tudo isto estava ainda muito verde, pouco maduro e, na maioria dos casos, instável. As
    estudantes ligadas ao Iskra puseram então a um conferencista a seguinte questão: «Uma camarada do Iskra
    tem o direito de casar com um oficial de marinha?» No II Congresso apenas estiveram presentes três
    operários; e não foi fácil fazê-los lá ir. Por um lado, o Iskra reunia e educava um quadro de
    revolucionários profissionais e atraia, sob a sua bandeira, jovens operários animados de espirito heróico;
    por outro lado, grupos consideráveis de intelectuais mais não faziam que passar pelo Iskra, para logo se
    mudarem e transformarem em «emancipadores». O Iskra tinha êxito não só como órgão marxista do
    partido proletário em construção, mas também, simplesmente, como publicação de combate político, de
    extrema-esquerda, que não se atrapalhava nada para arranjar palavras violentas. Os elementos mais
    radicais da inteligência aceitavam, no seu primeiro ardor, lutar pela liberdade sob a bandeira do Iskra. E,
    entretanto, o espirito progressista-pedagógico dos intelectuais, que os mantinha desconfiados
    relativamente às forças do proletariado, espirito que no passado encontrara a sua expressão no
    «economismo», tinha acabado agora, e isto duma maneira bastante sincera, de tomar a cor do Iskra, sem
    alterar nada da sua própria essência. Ao fim e ao cabo, a brilhante vitória do Iskra era bem maior do que
    eram as suas conquistas reais. Não me permito neste momento julgar em que medida Lenine se apercebia
    disso clara e completamente antes do II Congresso, mas, em todo o caso, ele via mais claro e
    completamente do que ninguém. Nestas tendências bastante variadas que se agrupavam sob a bandeira do
    Iskra, encontrando o seu reflexo na própria redacção, Lenine era o único que representava o amanhãs, com
    todas as suas rudes tarefas, seus cruéis conflitos e inúmeras vitimas. Dai a sua vigilância e as suas dúvidas
    de combatente. Dai a sua maneira de pôr claramente as questões de organização, que encontrou a sua
    expressão simbólica na questão das adesões de membros ao partido. (Parágrafo 1º dos Estatutos).
    É pois natural que no II Congresso, que se preparava para recolher os frutos das vitórias espirituais do
    Iskra, tivesse sido Lenine quem começou o trabalho de uma nova distribuição, de uma nova selecção,
    mais exigente, mais severa. Para se decidir por uma tal diligência, tendo contra si metade do congresso,
    sendo Plekanov apenas um meio-aliado e pouco seguro, sendo todos os outros membros da redacção
    adversários declarados ,e resolutos, para se decidir em tais condições por uma nova selecção era
    necessário ter já uma fé bem excepcional, não só na sua causa, mas também nas suas forças.
    Esta fé devia-a Lenine ao juízo que fazia de si próprio, verificado pela experiência, que resultou da sua
    colaboração com os «mestres», e dos primeiros relâmpagos que anunciaram as próximas tempestades do
    conflito e o fracasso da cisão.
    Foi precisa toda esta poderosa tensão de Lenine para o objectivo para empreender uma tal obra e levá-la
    até ao fim. Lenine, infatigavelmente, puxava a corda do arco até ao limite, até ao impossível, e, ao mesmo
    tempo, tacteava prudentemente com o dedo: não haveria cedência, ameaça de ruptura? - Impossível puxar
    até este ponto, o arco vai quebrar-se! - gritavam de vários lados. - Não quebrará, respondia o mestre
    arqueiro. O nosso arco é feito desta matéria proletária que não rompe; quanto à corda do partido, é preciso
    puxá-la mais e mais, pois temos de atirar para muito longe a pesada flecha.
    5 de Março de 1924
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo I - Antes de Outubro
    LENINE chegara a Petersburgo, tendo discursado em comícios operários contra a guerra e contra o
    governo provisório; soube-o através de jornais americanos, pois encontrava-me
    então em Amherst, no Canadá, num campo de concentração. Os marinheiros alemães aí internados
    manifestaram imediatamente um vivo interesse pela pessoa de Lenine, cujo nome aparecia pela primeira
    vez nos noticiários das agências. Todos estes homens esperavam com ansiedade o fim da guerra, que
    deveria abrir-lhes as portas da prisão. Prestavam a maior atenção a qualquer voz que se levantasse contra
    a guerra. Até então apenas conheciam Liebknecht. Mas tinha-lhes sido afirmado frequentemente que
    Liebknecht se deixara comprar. Começavam agora a conhecer Lenine. Eu falava-lhes dos tempos
    passados em Zimmerwald e em Kienthal. A actuação pública de Lenine reconduziu a Liebknecht um
    grande número deles.
    Foi ao atravessar a Finlândia que encontrei os primeiros jornais russos, chegados há pouco: continham
    telegramas anunciando a entrada de Tseretelli, Skobelev e de outros «socialistas » para o governo
    provisório. As circunstâncias apresentavam-se assim, dum modo perfeitamente claro. Tomei
    conhecimento, no dia seguinte à minha chegada ou no dia imediato a esse, das teses de Abril de Lenine.
    Era precisamente o que faltava para iniciar a revolução. Só mais tarde li no Pravda o artigo de Lenine
    enviado anteriormente da Suíça: A primeira etapa da primeira Revolução. Ainda se pode e deve ler com o
    mais vivo interesse e proveito político os primeiros números, tão confusos, do Pravda pré-revolucionário:
    perante este fundo, a Carta de longe de Lenine surge com toda a sua força concentrada. Este , artigo,
    muito calmo e de um tom teórico e explicativo, poderia comparar-se a uma enorme espiral de aço
    fortemente enrolada sobre si própria que deveria seguidamente desenrolar-se e expandir-se, abrangendo
    no seu desenrolar o conteúdo da revolução.
    Combinei com o camarada Kamenev falar com a redacção do Pravda logo após a minha chegada. Esta
    primeira entrevista teve lugar, parece-me, a 5 ou 6 de Maio. Disse a Lenine que nada me afastava das suas
    teses de Abril e da linha seguida pelo partido após o seu regresso à Rússia; tinha perante mim uma
    alternativa: ou entrar individualmente numa organização do partido, ou tentar levar para Petersburgo a
    elite dos «unionistas», de cuja organização faziam parte cerca de 3000 operários e a que estavam ligadas
    numerosas e preciosas forças revolucionárias: Uritski, Lunatcharski, Loffé, Vladimirov, Manuilski,
    Karakhan, Jureniev, Posern, Litkens e outros. Antonov-Ovseenko já tinha nessa altura aderido ao partido,
    e parece-me que Sokolnikov também.
    Lenine não se pronunciava categoricamente nem a favor de uma nem de outra solução. Importava, antes
    de mais nada, orientarem-se duma forma mais concreta no meio das circunstâncias e dos homens. Lenine
    não excluía a possibilidade duma espécie de cooperação com Martov ou, em geral, com uma parte dos
    mencheviques internacionalistas recém-chegados do estrangeiro. Ao mesmo tempo, tornava-se necessário
    ver o modo como, no decorrer do trabalho, se ajustariam as relações entre os «internacionalistas».
    No que me tocava, mediante uma convenção tácita, não procurava forçar o desenrolar natural dos
    acontecimentos. A nossa política era comum. Desde o dia da minha chegada exprimia-me nos seguintes
    termos durante os comícios de operários e de soldados: «Nós, os bolcheviques e internacionalistas»; e
    como a preposição «e» constituía no discurso um estorvo inútil quando estas palavras eram repetidas
    frequentemente, não levei muito tempo a abreviar a fórmula e a dizer: «Nós, os bolcheviques
    internacionalistas». Assim, a fusão política precedia a fusão das organizações.(1)
    Até às jornadas de Julho viram-me duas ou três vezes na redacção do Pravda durante os momentos mais
    críticos. Nestes primeiros encontros e, mais ainda, após as jornadas de Julho, Lenine aparentava uma
    concentração de todo o seu ser levada ao mais alto grau, um notável recolhimento interior, sob uma
    aparência de calma e de simplicidade «prosaica». Nessa altura, o regime de Kerenski parecia ser todopoderoso.
    O bolchevismo apresentava-se apenas como um «punhado insignificante» de pessoas. O próprio
    partido não tomara ainda consciência da sua força futura. E, simultaneamente, Lenine ia-o conduzindo
    com mão segura para tarefas mais importantes...
    Os discursos que pronunciou no Primeiro Congresso dos Sovietes causaram surpresa e inquietação na
    maioria socialistas-revolucionários e mencheviques. Sentiam, de um modo confuso, que este homem fazia
    mira para muito longe. Porém, não conseguiam ver o alvo e os pequeno-burgueses revolucionários
    interrogavam-se: quem é? quem é ele? um simples maníaco? ou um projéctil histórico duma força
    explosiva inaudita?
    O discurso de Lenine no Congresso dos Sovietes, em que falava da necessidade de prender 50 capitalistas,
    não foi talvez totalmente «feliz» do ponto de vista oratório. Teve, contudo, um significado excepcional.
    Breves aplausos dos bolcheviques, relativamente pouco numerosos, apoiaram o orador que desceu da
    tribuna com o ar de um homem que ainda não disse tudo e que talvez não tenha dito o que tinha para dizer
    exactamente como desejava... E, ao mesmo tempo, perpassara na sala um sopro extraordinário. Todos
    sentiram nesse momento o vento do futuro, enquanto olhares assustados acompanhavam esse homem de
    aspecto tão comum e contudo enigmático.
    Quem era? Quem era ele? Não dissera Plekanov no seu jornal, acerca do primeiro discurso de Lenine no
    território revolucionário de Petersburgo, que se tratava de delírio? Não estavam os delegados eleitos pelas
    massas quase todos ligados aos socialistas-revolucionários e aos mencheviques? E até nos meios
    bolcheviques, não tinha a posição de Lenine provocado o mais vivo descontentamento?
    Por um lado, Lenine exigia categoricamente uma ruptura não apenas com o liberalismo burguês, mas com
    todos os partidários de uma «defesa nacional». Organizava a luta no interior do seu próprio partido contra
    esses «velhos bolcheviques que - escrevia - tinham desempenhado já, por mais de uma vez, um triste
    papel na história do nosso partido, repetindo sem nexo uma fórmula aprendida de cor, em vez de estudar
    na sua originalidade singular a nova realidade viva». (2) Assim, e para um observador superficial, Lenine
    enfraquecia o partido. Embora, ao mesmo tempo, declarasse no Congresso dos Sovietes: «Não é verdade
    que, neste momento, nenhum partido consinta em tomar o poder; existe um partido disposto a fazê-lo: o
    nosso». Não existirá uma contradição monstruosa entre a situação dum «pequeno círculo de
    propagandistas» isolando-se de todos os outros e essa pretensão claramente expressa de tomar o poder
    num país imenso abalado até ao âmago?
    Contudo, o Congresso dos Sovietes ignorava totalmente o que queria, o que podia esperar este homem
    estranho, este visionário frio que escrevia pequenos artigos num minúsculo jornal.
    Quando Lenine, com uma simplicidade magnífica, que aos verdadeiros ingénuos parecia ser ingenuidade,
    declarou no Congresso dos Sovietes: «O nosso partido está pronto a tomar o :poder em toda a sua
    extensão», ouviu-se uma gargalhada geral. «Riam à vontade!» retorquiu Lenine, conhecedor do provérbio:
    «Rira bien qui rira le dernier.» Lenine gostava desta expressão francesa, pois estava firmemente disposto,
    no que lhe dizia respeito, a ser o último a rir.
    Tranquilamente continuava a demonstrar que seria preciso, de início, prender cinquenta ou cem dos
    milionários mais importantes e declarar ao povo que considerávamos bandidos todos os capitalistas e que
    Terechtchenko não valia mais do que Miliukov, sendo apenas mais estúpido. Ah as ideias simples,
    terrivelmente, inexoravelmente ingénuas! E este representante de uma pequena parte do Soviete, que de
    vez em quando o aplaudia moderadamente, dizia ainda à assembleia: «Receais o poder? Pois bem, nós
    estamos prontos a tomá-lo». Riam-se, riam-se, é claro, de um riso então quase indulgente, mas apesar de
    tudo um pouco inquieto.
    Lenine escolheu para texto do seu segundo discurso algumas palavras de uma simplicidade extraordinária;
    citou o que lhe escreveu um camponês; o homenzinho pensava que deveria exercer-se uma maior pressão
    sobre a burguesia, de forma a fazê-la rebentar pelas costuras; acabar-se-ia assim com a guerra; mas, dizia
    ainda, se a burguesia fosse poupada, as coisas poderiam correr mal...
    Era então esta citação simples, estas palavras ingénuas que resumiam todo o programa de Lenine? Como
    não ficar estupefacto? De novo se ouviam risinhos, risinhos que brotavam indulgentes e inquietos. Com
    efeito, se quisesse considerar-se de uma forma abstracta o programa dos propagandistas, as palavras
    «carregar, fazer pressão sobre a burguesia» não tinham muita importância. Todavia, aqueles que se
    admiravam não compreendiam que Lenine detectara, sem qualquer possibilidade de erro, o ruído surdo da
    pressão crescente exercida pela nova era sobre a burguesia e previra que, sob o efeito dessa pressão, ela
    deveria de facto «rebentar pelas costuras».
    Na realidade, Lenine não se enganara quando, em Maio, explicava a M. Maklakov que «este país de
    operários e de camponeses indigentes situa-se mil vezes mais à esquerda do que os Tchernov e os
    Tseretelli e cem vezes mais à esquerda do que nós, os bolcheviques».
    É aqui que se torna necessário apercebermo-nos da fonte principal em que se baseia a táctica de Lenine.
    Sob a película recentemente formada, mas já bastante turva, da democracia, ele conseguia atingir as zonas
    profundas do «país de operários e de camponeses indigentes». E este país estava pronto para fazer a maior
    de todas as revoluções. Contudo, não era ainda capaz de manifestar tal disposição em termos políticos.
    Os partidos que falavam, que falam em nome dos operários e dos camponeses, enganavam-nos
    simplesmente. Milhões de operários e de camponeses ignoravam ainda o nosso partido, não o tinham ,
    descoberto, não sabiam que ele exprimia as suas tendências; e, simultaneamente, o nosso partido não
    compreendera ainda todo o seu poder virtual; por isso encontrava-se «cem vezes mais à direita» do que os
    operários e os camponeses. Era necessário reuni-los, era preciso mostrar ao partido os milhões de homens
    que dele necessitavam e mostrar o partido a esses milhões de homens. Deveria evitar-se correr muito
    depressa, mas não se podia ficar para trás. Tornava-se necessário dar explicações pacientes e
    perseverantes. Ora o que se devia explicar era extremamente simples:
    «Abaixo os dez ministros capitalistas!» Os mencheviques estavam em desacordo? Abaixo os
    mencheviques. Riam às gargalhadas? Não ririam sempre... pois ri melhor quem ri no fim.
    Lembro-me de então ter proposto exigir-se ao Congresso dos Sovietes que pusesse com urgência uma
    questão sobre a ofensiva que estava a preparar-se na frente.
    Lenine aprovou a ideia, mas era evidente que desejava, antes de mais nada, deliberar com os outros
    membros do Comité Central.
    Na primeira sessão do Congresso o camarada Kamenev apresentou um projecto esboçado apressadamente
    por Lenine, projecto este relativo à declaração dos bolcheviques sobre a ofensiva. Ignoro se o documento
    foi conservado. O Congresso julgou o texto inaceitável, já não sei por que motivo: foi essa a opinião dos
    bolcheviques, bem como a dos internacionalistas. Posern, a quem queríamos confiar a missão de o dizer,
    formulou igualmente objecções contra esse texto. Eu redigi um outro que foi adoptado e lido.
    Esta intervenção foi organizada, se não me engano, por Sverdlov, que encontrei pela primeira vez
    precisamente nesse Congresso dos Sovietes, onde presidia à facção bolchevique.
    Não obstante a pequena estatura e magreza, dando a impressão de um estado doentio, a figura de Sverdlov
    impunha-se pela sua gravidade e calma energia. Presidia duma maneira igual, sem barulho nem lances
    bruscos, tal como funciona um bom motor. O segredo desta actuação não se encontrava, como é óbvio,
    apenas na arte de presidir, mas sim no facto de Sverdlov conhecer perfeitamente a composição da sala e
    saber admiravelmente aquilo a que queria chegar.
    Antes de cada sessão, travava conversas separadas com
    os delegados, a quem interrogava e admoestava, por vezes. Antes do abrir da sessão já ele imaginava, no
    seu conjunto, o decorrer dos debates. Mas nem precisava das conversas prévias para saber, melhor do que
    ninguém, a atitude que este ou aquele militante iria adoptar acerca da questão levantada. O número de
    camaradas cujo pensamento político ele conseguia claramente desvendar era, nessa época, muito grande
    em proporção com o nosso partido. Possuía faculdades inatas de organização e de combinação. Cada
    questão política apresentava-se-lhe antes de mais nada, na sua natureza concreta, do ponto de vista da
    organização: via em cada uma delas uma questão ,de relações entre pessoas e grupos no seio da
    organização do partido, e de relações entre a organização considerada no seu conjunto e as massas. Nas
    fórmulas algébricas, incluía algarismos imediata e quase que automaticamente. Efectuava, deste modo, a
    verificação muito importante das fórmulas políticas, na medida em que estas se referiam à acção
    revolucionária.
    Após se ter renunciado à demonstração de 10 de Junho, como a atmosfera do primeiro Congresso dos
    Sovietes tivesse chegado ao rubro e Tseretelli ameaçasse desarmar os operários de Petrogrado, dirigimonos,
    o camarada Kamenev e eu próprio, à redacção, e aí, após uma breve troca de opiniões, redigi segundo
    proposta de Lenine um projecto de declaração do Comité Central ao Comité Executivo.
    NO decorrer desta entrevista, Lenine pronunciou algumas palavras sobre Tseretelli, - a propósito do seu
    último discurso (11 de Junho):
    - Era, contudo, um revolucionário! Quantos anos passados na prisão! E agora renega completamente tudo
    quanto fez...
    Não havia nesta frase qualquer intenção política: tratava-se apenas duma reflexão rápida sobre o triste
    destino de um homem que fora outrora um grande revolucionário. O tom era o de uma certa compaixão,
    de um certo desprezo, expressos de uma forma breve e seca: pois não existia nada de mais odioso para
    Lenine do que o mais ténue vislumbre de sentimentalismo ou de raciocínio psicológico.
    A 4 ou 5 de Julho vi Lenine (bem como Zinoviev?), parece-me, no palácio de Táurida. A ofensiva tinha
    sido rechaçada. Entre os governantes, o furor contra os bolcheviques atingia o seu mais alto grau.
    - Agora vão-nos fuzilar a todos, dizia Lenine. Seria para eles o melhor momento.
    O seu pensamento dominante de então era de que seria preciso tocar a recolher e voltar, na medida em que
    se tornasse necessário, à acção clandestina. Esta constituiu uma das reviravoltas bruscas da estratégia de
    Lenine, motivada, como sempre, por uma rápida apreciação das circunstâncias.
    Mais tarde, na altura do III Congresso da Internacional Comunista, Vladimir Ilitch disse um dia:
    - Em Julho fartámo-nos de fazer asneiras...
    Queria ele dizer que a acção militar fora prematura, que
    a manifestação tomara formas demasiado agressivas que não estavam em relação com as nossas forças,
    em proporção com a vastidão do país.
    Tanto mais notável é para nós a serena decisão com que, a 4 e 5 de Julho, definiu as posições respectivas
    da revolução e dos seus adversários e, colocando-se no lugar destes, concluiu que «para eles» tinha
    chegado o bom momento de nos fuzilar.
    Felizmente os nossos inimigos encontravam-se então incapazes de actuar com tanta lógica e resolução.
    Limitaram-se à preparação química, às combinações de Perevertzev. É porém muito possível que, se
    tivessem conseguido, nos dias que se seguiram à manifestação de Julho, apoderar-se de Lenine, o
    tivessem tratado, ou melhor, os seus oficiais o tivessem tratado do mesmo modo que, menos de dois anos
    mais tarde, procederam os oficiais alemães relativamente a Liebknecht e a Rosa Luxemburgo.
    Na entrevista a que acabamos de referir-nos, não ficou claramente decidido se devíamos desaparecer ou
    retirar-nos para a acção clandestina. A revolta de Kornilov punha-se gradualmente em movimento. No
    que me diz respeito, mantive-me ainda dois ou três dias em evidência. Usei da palavra em várias reuniões
    do partido e de organizações sobre o tema: «Que fazer?» O ímpeto furioso desencadeado contra os
    bolcheviques parecia insuperável. Os mencheviques tentavam, por todos os meios, aproveitar-se duma
    situação que não teria sido criada sem o seu concurso.
    Recordo-me que tive a oportunidade de falar na biblioteca do palácio de Táurida, numa reunião de
    representantes dos sindicatos. A sala compunha-se, quando muito, de algumas dezenas de homens, isto é,
    de «cúpulas». Os mencheviques dominavam. Demonstrei a necessidade que tinham os sindicatos de
    protestar contra a alegação que acusava os bolcheviques de estarem ligados ao militarismo alemão.
    Rememoro confusamente as peripécias desta reunião, mas recordo com nitidez duas ou três fisionomias
    sarcásticas que mais não pediam do que serem esbofeteadas...
    No entanto o terror aumentava.. Prendiam-se pessoas. Mantive-me escondido durante vários dias na
    habitação do camarada Larine. Seguidamente comecei a sair, fiz uma aparição no pa1ácio de Táurida e em
    breve fui preso.
    Só fui posto em liberdade quando a revolta de Kornilov atingia o ponto máximo e quando o fluxo do
    bolchevismo começava a subir em força. Nessa altura os «unionistas» já tinham entrado para o partido.
    Sverdlov propôs-me ir ver Lenine, que ainda se encontrava escondido... Já não me lembro quem me
    conduziu à habitação proletária, centro de «conspiração», onde deveria encontrar Vladimir Ilitch; foi
    talvez Rakhia quem me levou lá. Também aí apareceu Kalinine, que Lenine continuou a interrogar
    longamente na minha presença sobre o estado de espírito dos operários, perguntando-lhe se estes iriam
    combater, se continuariam até ao fim, se seria possível tomar-se conta do poder, etc...
    Quais seriam então os estados de alma de Lenine? Se quisermos caracterizá-los em duas palavras,
    poderemos dizer que consistiam em impaciência reprimida e numa profunda inquietação. Ele apercebia-se
    claramente que chegara o momento de jogar tudo por tudo, parecendo-lhe ao mesmo tempo, não sem
    razão, que nas esferas superiores do partido não se sabia discernir todas as conclusões que se impunham.
    A conduta do Comité Central parecia-lhe demasiado passiva e oportunista.
    Lenine julgava não lhe ser possível retornar abertamente à acção, pois temia, e com razão, que o
    prendessem e que essa medida fixasse e reforçasse até a atitude de expectativa dos principais militantes
    do partido: o que nos levaria forçosamente a deixar escapar uma situação excepcionalmente
    revolucionária.
    É por isso que a vigilância desconfiada de Vladimir Ilitch, a sua susceptibilidade relativamente a qualquer
    sintoma de espírito contemporizador, a qualquer indício de irresolução e amedrontamento, aumentaram
    nesses dias e nessas semanas, atingindo o seu mais elevado grau. Ele exigia que se realizasse
    imediatamente uma conjura em forma: seria preciso surpreender o inimigo com a rapidez de um raio e
    arrancar-lhe o poder; em seguida ver-se-ia... Isto deverá, portanto, ser contado com mais pormenor.
    O biógrafo terá de apreciar do modo mais escrupuloso o próprio facto do regresso de Lenine à Rússia e o
    contacto que estabeleceu com as massas operárias.
    Com excepção de um curto espaço de tempo situado em 1905, Lenine passara mais de quinze anos
    emigrado. O seu sentido da realidade, a sua percepção íntima do trabalhador real, tal como é na vida, em
    lugar de enfraquecerem ,durante esse longo período, tinham-se ao contrário fortalecido pelo labor do
    pensamento teórico e da imaginação criadora. Através dos encontros e das observações que lhe fornecia o
    acaso, ele desvendava e reconstituía a imagem do conjunto.
    Vivera, porém, como emigrado o período durante o qual amadureceu e cresceu definitivamente para o
    desempenho do seu papel histórico. Quando chegou a Petersburgo, trazia consigo generalizações já feitas
    em que resumia toda a experiência social teórica e prática da sua vida. Mal tocara no solo da Rússia
    apressara-se a lançar a palavra de ordem da revolução social. Mas foi apenas então, na experiência vivida
    com as reais massas trabalhadoras, despertadas na Rússia, que começou a verificação de todo o conjunto
    de pensamentos acumulados, revistos, fixados durante tantos anos.
    As fórmulas resistiram a esta prova. E mais ainda, foi somente aí, na Rússia, em Petrogrado, que elas se
    rechearam do seu conteúdo concreto, quotidiano, irrefutável, ganhando consequentemente uma força
    irresistível.
    A partir de então já não se tratava de reconstruir, segundo modelos mais ou menos ocasionais, a
    perspectiva do conjunto. Era o próprio conjunto que se afirmava claramente através de todas as vozes da
    revolução.
    Lenine mostrou então, e talvez ele próprio o sentisse completamente pela primeira vez, até que ponto era
    capaz de entender o clamor ainda caótico das massas que despertavam. Com que desprezo profundamente
    orgânico não observava as corridinhas de ratos dos partidos dirigentes da Revolução de Fevereiro, essas
    vagas duma «poderosa» opinião pública que, por ricochete, se empurravam de um jornal para o outro;
    com que desdém surpreendia a miopia, o enfatuamento, a verborreia, tudo quanto caracterizava a Rússia
    oficial de Fevereiro!
    Sob a capa democrática que cobria o palco, ouvia crescer o rugido de acontecimentos de outra
    envergadura. Quando os cépticos lhe apontavam as grandes dificuldades do seu empreendimento, a
    mobilização da opinião pública burguesa, a presença das forças elementares da pequena burguesia,
    cerrava os dentes e os seus malares tornavam-se mais evidentes sob pele do rosto. Isto significava que se
    continha para não dizer aos cépticos, muito simples e francamente, o que pensava deles.
    Via e compreendia as dificuldades tão bem ou melhor do que qualquer outra pessoa, mas tinha a sensação
    nítida, física, como que de algo palpável das gigantescas forças históricas que se tinham acumulado e que,
    agora, davam um impulso formidável para a destruição de todos os obstáculos.
    Via, compreendia e sentia, antes do mais, o operário russo, essa classe trabalhadora cujo número
    aumentara consideravelmente, que não esquecera ainda a experiência de 1906, que passara pela escola da
    guerra, tendo conhecido as suas ilusões, que sofrera as hipocrisias e as imposturas da defesa nacional e
    que se encontrava agora pronta para suportar os maiores sacrifícios e arriscar esforços inauditos.
    Sentia a alma do soldado, do soldado embrutecido por três anos duma carnificina diabólica - sem razão e
    sem objectivo -, do soldado despertado pelo trovão da revolução e que se dispunha a vingar-se de todas as
    imolações estúpidas, de todas as humilhações, de todas as afrontas, através de uma explosão de ódio
    furioso que nada pouparia.
    Compreendia e sentia o mujique que arrastava ainda os entraves duma servidão multissecular e que agora,
    graças ao violento impulso da guerra, se apercebera pela primeira vez da possibilidade de se vingar de
    todos os opressores, os esclavagistas, os senhores: vingança terrível, implacável.
    O mujique continuava a marcar passo, não sabendo o que decidir, hesitando entre a volubilidade vazia de
    Tchernov e o seu próprio «trunfo», que consistia numa grande revolta agrária O soldado permanecia ainda
    suspenso, tanto num pé como no outro, hesitando na escolha de um caminho entre o patriotismo e o
    frenesim da deserção.
    Os operários ouviam até ao fim, embora já com desconfiança, com uma certa hostilidade, as últimas
    tiradas de Tseretelli.
    Já rugia impaciente o vapor nas caldeiras dos navios de guerra de Cronstadt. O marinheiro, que guardava
    no seu íntimo ódios operários, aguçados como pontas de aço, e a obtusa cólera de urso do mujique, o
    marinheiro que se queimara no fogo do terrível massacre, lançava já pela borda fora aqueles que, a seus
    olhos, encarnavam todas as formas de opressão, a opressão de classe, da burocracia e da autoridade
    militar.
    A Revolução de Fevereiro estava periclitante. Os farrapos que restavam do regime de legalidade czarista
    eram reunidos por uma coligação de salvadores; esticavam-nos, cosiam-nos uns aos outros, e eles
    acabavam por transformar-se num ténue véu de legalidade democrática.
    Contudo, lá por baixo, tudo fervia e rosnava, todos os ódios do passado procuravam escapar-se: era o ódio
    do guarda rural, do comissário de bairro, do chefe da policia, do chefe do registo criminal, do sargento, do
    fabricante, do usurário, do proprietário, do parasita, do homem de «mãos limpas», do caluniador, do
    tirano: preparava-se assim a maior erupção revolucionária que a História jamais conheceu.
    Eis o que Lenine entendeu e viu, eis o que sentiu fisicamente com uma nitidez irresistível, com uma
    certeza absoluta quando, após uma longa ausência, entrou em contacto com o país dominado pelos
    espasmos da revolução.
    «Imbecis, gabarolas, cretinos, pensais que a História se faz nos salões onde pequenos arrivistas
    democratas tratam familiarmente, como «amigos da onça» que são, os liberais titulares ou os pés
    descalços de ontem, onde os pequenos advogados de província aprendem a beijar efusivamente mãos
    finas de Altezas? Imbecis! Gabarolas! Cretinos!
    «A História faz-se nas trincheiras onde o soldado, possuído pelo pesadelo, pela embriaguez da guerra,
    enfia a baioneta no ventre do oficial e, em seguida, agarrado aos pára-choques duma carruagem, foge para
    a sua aldeia natal onde ateará um incêndio para colocar a «bandeira vermelha» no telhado do proprietário.
    «Esta brutalidade não vos agrada? Não vos incomodeis, responde a História: a mais bela mulher do
    mundo apenas pode dar o que tem. O que se passa deriva simplesmente daquilo que o precedeu. Podeis
    realmente imaginar que a História se faz nas vossas «comissões de contacto»? Parvoíces, verborreia
    infantil, fantasmagoria, cretinice!
    «A História - ficai a saber! - escolheu desta feita para laboratório dos seus preparativos o palácio de
    Kchessinskaia, a bailarina, ex-amante do czar. E daí, desse edifício que simboliza a antiga Rússia, prepara
    o aniquilamento de toda a vossa luxúria, da dissolução crapulosa do vosso Petrogrado monárquico,
    burocrático, aristocrático, burguês. Convergem para o palácio da dita bailarina imperial as multidões
    negras de fuligem, os delegados das fábricas, os enviados vindos a pé das trincheiras, homens cinzentos,
    mal amanhados, cobertos de pulgas; e será daqui que espalharão pelo país a nova ordem, as palavras
    fatídicas...»
    Os desprezíveis ministros da revolução deliberavam e interrogavam-se sobre o que fazer para restituir o
    palácio à sua proprietária legítima. Os jornalistas burgueses, socialistas-revolucionários, mencheviques,
    rangiam os dentes cariados, lamentando-se pelo facto de Lenine, do alto da varanda de Kchessinskaia,
    lançar as palavras de ordem do levantamento social. Mas estes esforços tardios até nem chegavam para
    aumentar o ódio que Lenine sentia pela antiga Rússia, nem para dar mais vigor ao seu desejo de
    represálias: tanto um como o outro tinham atingido o limite máximo. O Lenine que se erguia na varanda
    de Kchessinskaia era o mesmo que, dois meses mais tarde, se esconderia numa meda de feno e que,
    algumas semanas depois, ocuparia o cargo de presidente do Conselho dos Comissários do Povo. Ao
    mesmo tempo, Lenine notava que no interior do partido começava a criar-se uma certa resistência
    conservadora - no início mais psicológica do que política - perante o imenso passo em frente que era
    necessário arriscar.
    Observava com inquietação as divergências que se manifestavam cada vez mais nas disposições de certos
    dirigentes do partido e no estado de alma das massas trabalhadoras. Não considerou, nem por um minuto,
    ser suficiente que o Comité Central adoptasse a fórmula da insurreição armada. Sabia bem como é difícil
    passar das palavras aos actos. Com toda a energia e com todos os meios de que dispunha esforçava-se por
    colocar o partido sob a pressão das massas e o Comité Central do partido sob a pressão dos escalões
    inferiores.
    Recebia camaradas no seu asilo, colhia informações, verificava-as, procedia a interrogatórios, organizava
    a contradição, lançava por vias indirectas e transversais as suas palavras de ordem no seio do partido,
    lançava-as para baixo, em profundidade, de forma a colocar os chefes perante a necessidade de actuar e de
    ir até ao fim.
    Se quisermos ter uma ideia da conduta de Lenine durante este período será necessário apercebermo-nos
    claramente do seguinte: Vladimir Ilitch tinha uma fé inquebrantável na vontade da revolução das massas,
    acreditava que a revolução podia ser feita pelas massas; não tinha porém a mesma confiança no estadomaior
    do partido.
    E, contudo, compreendia tão claramente quanto possível que não havia tempo a perder. É impossível
    deixar à vontade uma situação revolucionária até ao momento em que o partido está pronto a utilizá-la.
    Constatámo-lo recentemente através do exemplo da Alemanha. Ainda há pouco tempo podia ouvir-se
    exprimir a opinião de que, se não tivéssemos tomado o poder em Outubro, tê-lo-íamos alcançado dois ou
    três meses mais tarde. Grosseiro engano! Se não tivéssemos tomado o poder em Outubro, nunca mais
    conseguiríamos fazê-lo. A nossa força nas vésperas de Outubro baseava-se num constante afluxo das
    massas que acreditavam que o nosso partido, que este partido conseguiria aquilo que os outros não tinham
    podido fazer. Se nessa altura as massas tivessem notado no nosso seio qualquer hesitação ou adiamento,
    se tivessem constatado que os nossos actos não correspondiam às nossas palavras, ter-nos-iam
    abandonado no prazo de dois ou três meses, tal como se haviam afastado dos socialistas-revolucionários e
    dos mencheviques. A burguesia teria beneficiado de umas tréguas. Teria aproveitado para assinar a paz. A
    relação das forças ter-se-ia assim modificado radicalmente e o golpe de Estado proletário teria ficado
    relegado para um período indetermináve1. Eis precisamente o que Lenine compreendia, o que sentia, o
    que notava. Derivavam daí a sua inquietação, a sua ansiedade, o seu desafio; daí também a pressão furiosa
    que exerceu e que se revelou salutar para a revolução.
    As dissenções no interior do partido, rebentando como uma tempestade durante as jornadas de Outubro,
    haviam-se manifestado já anteriormente nas diversas etapas da revolução.
    A primeira escaramuça onde, antes de mais nada, se puseram em causa os princípios, mas no decorrer da
    qual a discussão permaneceu ainda no domínio calmo da teoria, teve lugar imediatamente após a chegada
    de Lenine e referiu-se às suas teses.
    O segundo encontro, que teve o carácter de um choque surdo, produziu-se na altura da manifestação
    armada de
    20 de Abril. A terceira colisão deu-se a propósito da tentativa de manifestação armada de 10 de Junho; os
    «moderados» julgavam que Lenine queria embaraçá-los com uma demonstração de força, mostrando-lhes
    uma perspectiva de insurreição.
    O conflito que se verificou seguidamente foi mais grave: deu-se após as jornadas de Julho. Os desacordos
    chegaram à imprensa.
    A etapa seguinte no desenrolar da luta interna foi marcada pela questão do «pré-Parlamento».
    Desta vez, dois grupos afrontaram-se abertamente dentro do partido. Ter-se-á redigido um processoverbal
    da sessão? Terá sido conservado? Ignoro-o. Porém, os debates apresentam indubitavelmente um
    interesse extraordinário. As duas tendências, a que queria a tomada do poder e a que preconizava um
    poder que desempenhasse o papel de oposição na Assembleia Constituinte, definiram-se então com
    clareza suficiente. Os que queriam o boicote do «pré-Parlamento» ficaram em minoria, mas o seu número
    não se distanciava muito da maioria.
    No que respeita aos debates ocorridos nessa facção e à decisão tomada, Lenine replicou-lhes em breve, do
    fundo do seu asilo, por meio de uma carta ao Comité Central.
    Esta carta onde Lenine, em termos mais do que enérgicos se solidarizava com os autores do boicote de «a
    Duma de Bulyguine», isto é, de Kerenski-Tseretelli, não consigo encontrá-la na segunda parte do tomo
    XIV das Obras Completas.
    Terá sido conservado este documento extremamente precioso?
    As dissenções atingiram o seu apogeu mesmo nas vésperas de Outubro, quando se tratou de adoptar
    definitivamente a linha que conduzia à revolta e à fixação da data da insurreição.
    E finalmente, após o golpe de Estado de 25 de Outubro, os diferendos agravaram-se ainda em relação à
    questão da coligação com os outros partidos socialistas.
    Seria extremamente interessante reconstituir com todos os pormenores concretos o papel desempenhado
    por Lenine nas vésperas dos dias 20 de Abril, 10 de Junho e das jornadas de Julho.
    - Em Julho fizemos asneiras, diria mais tarde Lenine; afirmava-o em conversas particulares e recordo-me
    que o repetiu numa conferência realizada pela delegação alemã a propósito dos acontecimentos de Março
    de 1921 na Alemanha.
    Em que consistiam pois todas essas «asneiras»?
    Numa experiência enérgica ou demasiado enérgica, numa operação de reconhecimento levada a cabo
    activa ou demasiado activamente.
    Tornava-se necessário efectuar de tempos a tempos estes reconhecimentos, sob pena de se perder o
    contacto com as massas. Mas sabe-se, por outro ,lado, que um reconhecimento activo se transforma por
    vezes, naturalmente ou à força, numa batalha geral.
    Foi justamente o que esteve para suceder em Julho. Felizmente bateu-se a tempo em retirada. E nessa
    a1tura o inimigo não teve a audácia de aproveitar a vantagem até ao fim. Não será por acaso que lhe faltou
    a audácia: o regime de Kerenski era, pela sua 'própria essência, o regime das tergiversações; e a poltronice
    do «kerenskismo» paralizava tanto mais a aventura de Kornilov quanto maior era o medo que sentia.
    Notas: Segunda Parte – Capítulo I
    (1) N. N. SUKHANOV, nas suas Notas sobre a Revolução, «construiu», a minha linha particular,
    distinguindo-a da de Lenine. Porém Sukhanov evidenciou-se precisamente como «construtivista».
    (retornar ao texto)
    (2) Obras completas, tomo XIV, parte I. (retornar ao texto)
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo II - O Golpe de Estado
    A nosso pedido a abertura do II Congresso dos Sovietes foi fixada para o final da «Conferência
    democrática», isto é, a 25 de Outubro.
    Devido ao estado de espírito que se manifestava, proveniente da exaltação crescente de hora a hora, não
    só nos bairros operários mas também nas casernas, parecia-nos ser mais conforme aos nossos desejos
    concentrar a atenção da guarnição de Petrogrado precisamente para esta data, escolhida como o dia em
    que o Congresso dos Sovietes deveria decidir sobre a questão do poder, enquanto que os operários e as
    tropas deveriam apoiá-lo, depois de se terem devidamente preparado para tal.
    No fundo, a nossa estratégia era a da ofensiva: pretendíamos a conquista do poder, mas a palavra de
    ordem da nossa agitação era a de, uma vez que os nossos inimigos se preparavam para dissolver o
    Congresso dos Sovietes, ser necessário responder-lhes de forma implacável.
    Todo o plano se baseava na força do afluxo revolucionário, que tendia a atingir a mesma intensidade por
    toda a parte, não dando ao adversário qualquer forma de tréguas. No pior dos casos, os regimentos mais
    retrógrados manter-se-iam neutros.
    Nestas condições, o mais insignificante gesto do governo dirigido contra o Soviete de Petrogrado deveria
    assegurar-nos imediatamente uma preponderância decisiva.
    Lenine temia, contudo, que o adversário tivesse tempo para reunir as tropas contra-revolucionárias, sem
    dúvida pouco numerosas mas enérgicas, e de desencadear a acção aproveitando-se da vantagem da
    surpresa. Surpreendendo o partido e os Sovietes e prendendo os cabecilhas do movimento em Petrogrado,
    o adversário podia decapitar a revolução e, em seguida, enfraquecê-la gradualmente.
    - Não se pode esperar mais, é impossível adiar! repetia Lenine.
    Foi nestas condições que se realizou em fins de Setembro ou princípios de Outubro, na habitação dos
    Sukhanov, a famosa sessão nocturna do Comité Central.
    Lenine compareceu, firmemente decidido a obter desta vez uma resolução que não desse lugar a qualquer
    espécie de dúvidas, hesitações, obstáculos, passividade ou contemporização.
    Entretanto, antes de atacar os adversários da insurreição armada, exerceu pressão sobre aqueles que
    estabeleciam a data do levantamento em função do II Congresso dos Sovietes.
    Alguém o informou acerca do que eu dissera: «Marcámos a revolta para o dia 25 de Outubro».
    Tinha efectivamente repetido esta frase variadas vezes, servindo-me dela contra aqueles de entre os meus
    camaradas que consideravam a via da revolução no sentido dum «pré-Parlamento» e da existência ,duma
    «imponente» oposição bolchevique na Assembleia Constituinte.
    «Se, dizia eu, o Congresso dos Sovietes, que é bolchevique na sua maioria, não toma o poder, o
    bolchevismo terá de pagá-lo. Sendo assim, é provável que a Assembleia Constituinte não seja convocada.
    Ao convocar, após tudo quanto se passou, para 25 de Outubro o Congresso dos Sovietes, onde
    conquistamos de antemão a maioria, comprometemo-nos publicamente, por esse mesmo acto, a tomar o
    poder o mais tardar nessa altura».
    Vladimir Ilitch insurgiu-se violentamente contra a data indicada. A questão do II Congresso dos Sovietes,
    dizia ele, não o interessava absolutamente nada: que importância podia isso ter? Seria mesmo possível o
    Congresso realizar-se? E que poderia ele fazer, supondo que se realizava? Era necessário conquistar o
    poder e não nos preocuparmos com o Congresso dos Sovietes; seria ridículo, seria absurdo informar o
    inimigo do dia da nossa revolta. Na melhor das hipóteses, a data de 25 de Outubro poderia servir-nos para
    mascarar as nossas intenções, mas antes era indispensável desencadear a insurreição, independentemente
    do Congresso dos Sovietes. O partido devia tomar conta do poder pela força das armas e seguidamente
    ocupar-se-ia do Congresso. Era preciso passar imediatamente à acção.
    Tal como nas jornadas de Julho, em que Lenine esperava firmemente vê-«los» fuzilar-nos, ele imaginava
    ainda agora todos os pormenores relativos à situação do inimigo, concluindo assim que, do ponto de vista
    da burguesia, seria melhor surpreender-nos pela força das armas, desorganizar a revolução e,
    seguidamente, destruí-la peça por peça. Tal como em Julho, Lenine sobrestimava a perspicácia e a
    resolução do inimigo e talvez mesmo as suas possibilidades materiais. Em grande parte, exagerava
    conscientemente, com uma finalidade táctica absolutamente certa: ao sobrestimar o inimigo, propunha-se
    incitar o partido a redobrar de energias no ataque.
    No entanto, o partido não podia tomar o poder nas próprias mãos, independentemente do Soviete e nas
    suas costas. Constituiria um erro, cujas consequências se manifestariam até mesmo na conduta dos
    operários, podendo tornar-se extremamente lamentável no que 'se referia à guarnição. Os soldados
    conheciam o Soviete dos Deputados, conheciam a sua secção. Não conheciam o partido senão através do
    Soviete. E se a insurreição se fizesse com o desconhecimento deste e sem ligação com ele, sem estar
    coberta pela sua autoridade, sem se afirmar clara e nitidamente aos olhos de todos como o resultado da
    luta pelo poder dos Sovietes - este facto poderia causar uma perturbação perigosa no seio da guarnição.
    Também não deverá esquecer-se que ainda existia em Petrogrado, simultaneamente com o Soviete local, o
    antigo Comité Executivo Central pan-russo, à cabeça do qual se encontravam socialistas-revolucionários e
    mencheviques. A este Comité apenas poderia opor-se o Congresso dos Sovietes.
    Finalmente, destacaram-se três grupos no Comité Central: os adversários da tomada do poder, que a
    lógica da situação forçou a renunciar à palavra de ordem «todo o poder aos Sovietes»; Lenine, que exigia
    a organização imediata da insurreição, independentemente dos Sovietes; e o último grupo, englobando o
    que restava, que julgava necessário uma ligação estreita entre a insurreição e o II Congresso dos Sovietes
    e, consequentemente, fazer coincidir uma com o outro.
    «De qualquer modo, insistia Lenine, a tomada do poder deverá preceder o Congresso dos Sovietes; senão
    sereis aniquilados e não conseguireis convocar nenhum Congresso».
    Foi proposta finalmente uma resolução segundo a qual a insurreição deveria eclodir o mais tardar a 15 de
    Outubro. Recordo-me que quase não houve discussão a respeito desta data. Todos compreendiam que o
    dia fixado apenas tinha um valor aproximado, servindo para nos orientar, e que, de acordo com os
    acontecimentos, seria possível antecipá-lo ou adiá-lo um pouco, Tratava-se porém de uma questão de
    dias, não mais. Era absolutamente evidente a necessidade de uma data tão próxima quanto possível.
    Os debates principais nas sessões do Comité Central tiveram por objecto, como é evidente, lutar contra os
    membros do Comité, que se opunham em geral à insurreição armada. Não irei reproduzir os três ou quatro
    discursos que Lenine pronunciou durante a última sessão acerca dos seguintes pontos: Seria necessária a
    tomada do poder? Seria oportuna? Conseguiriam conservá-lo, uma vez tomado?
    Lenine escreveu nesta época e posteriormente vários artigos e brochuras sobre o mesmo assunto. O
    desenvolvimento das ideias nos discursos efectuados durante as sessões foi, evidentemente, o mesmo.
    Porém, o que é intraduzível, o que não se pode reproduzir, é o espírito destas improvisações veementes,
    apaixonadas, todas elas penetradas do desejo de transmitir aos opositores, aos hesitantes, aos irresolutos, o
    seu pensamento, a sua vontade, a sua certeza, a sua coragem. Porque, finalmente, o que então se decidia
    era o próprio destino da revolução!...
    A sessão terminou a hora adiantada. Cada um sentia-se, mais ou menos, no estado de alguém que tivesse
    sido submetido a uma operação cirúrgica. Uma parte daqueles que tinham assistido a esta reunião, estando
    eu incluído nesse número, passou o resto da noite na habitação dos Sukhanov.
    É sabido que a marcha ulterior dos acontecimentos prestou-nos um grande auxílio. A tentativa feita para
    pôr de licença a guarnição de Petrogrado conduziu à criação do Comité de Guerra revolucionário. Foi-nos
    dada assim a possibilidade de legitimar a preparação da insurreição pela autoridade do Soviete e de ligar a
    nossa causa a uma questão cuja própria existência dizia respeito a toda a guarnição de Petrogrado.
    No intervalo de tempo que medeia entre a sessão do Comité Central acima descrita e o 25 de Outubro,
    apenas recordo ter tido uma única entrevista com Vladimir Ilitch, sendo confusa até mesmo esta
    recordação. Quando se verificou? Entre 15 e 20 de Outubro, sem dúvida. Lembro-me que tinha extrema
    curiosidade em saber o que pensava Lenine do carácter «defensivo» de um discurso que eu pronunciara
    numa sessão do Soviete de Petrogrado: eu declarara que os rumores que corriam acerca de uma
    insurreição armada, preparada por nós para 22 de Outubro («Jornadas do Soviete de Petrogrado»), eram
    falsos, prevenira que responderíamos a qualquer ataque com um contra-ataque decidido e que levaríamos
    as coisas até ao fim. Recordo-me que, no ,decorrer desta entrevista, o estado de espírito de Vladimir Ilitch
    era mais calmo e mais confiante, diria mesmo menos desconfiado. Não somente não encontrou nada a
    criticar no tom aparentemente defensivo do meu discurso, como o achou perfeitamente apropriado para
    adormecer a vigilância do inimigo.
    Contudo, abanava a cabeça de tempos a tempos e perguntava:
    - Mas será que nos previnem? Não cairão sobre nós de improviso?
    Demonstrei-lhe que tudo correria quase que automaticamente.
    Durante esta conversa, ou pelo menos durante uma certa parte dela, o camarada Estaline estava presente,
    julgo. É de resto possível que eu esteja a confundir aqui duas entrevistas. De um modo geral devo dizer
    que, em relação aos últimos dias que precederam o golpe de Estado, as minhas recordações encontram-se
    como que comprimidas na memória e que é muito difícil extrair qualquer coisa delas, entendê-las, colocálas
    de novo no lugar.
    Deveria rever Lenine a 25 de Outubro, em Smolni, no próprio dia do grande acontecimento. A que horas?
    Não faço a mínima ideia; provavelmente lá para a noite. Lembro-me muito bem que Vladimir Ilitch
    começou por pôr uma questão carregada de ansiedade acerca das conversações que mantínhamos com o
    estado-maior do exército de Petrogrado sobre o destino da guarnição. Segundo os jornais, as conversações
    aproximavam-se duma conclusão favorável.
    - Caminhais para um compromisso? perguntou Lenine, penetrando-nos com o olhar.
    Respondi que tínhamos lançado propositadamente nos jornais esta notícia tranquilizante, que era apenas
    uma astúcia de guerra no momento em que se iniciava a batalha geral.
    - Ah! Isso está bem-em! retorquiu Lenine com uma voz cantante e alegre, e, retomando toda a sua energia,
    pôs-se a percorrer o quarto esfregando as mãos. - Isso está bem-em!
    Geralmente Ilitch gostava de estratagemas. Enganar o inimigo, tratá-lo como um papa-moscas, não será
    isso o que se poderá imaginar de mais delicioso?
    Mas, no caso presente, o estratagema tinha uma importância muito particular: significava que entráramos
    já em plena acção decisiva. Direi qual era então o avanço das operações militares: no momento
    detínhamos na cidade um bom número de pontos importantes.
    Vladimir Ilitch reparou (ou talvez eu lhe tenha mostrado) num cartaz acabado de imprimir na véspera, que
    ameaçava de execução sumária todo aquele que tentasse praticar a pilhagem durante o golpe de Estado.
    No primeiro instante, ficou desconcertado, parecendo mesmo invadido pela dúvida. Porém, disse logo a
    seguir:
    - Está bem, é justo!
    Debruçava-se avidamente sobre todos os pequenos pormenores do grande empreendimento. Tratavam-se
    para ele de provas indiscutíveis de que desta vez se avançava, de estar passado o Rubicão e de já não ser
    possível um retrocesso.
    Recordo-me da enorme impressão que produziu em Lenine o facto de eu ter chamado, através de uma
    ordem escrita, uma companhia do regimento de Pavlovski para assegurar a publicação do jornal do
    partido e dos Sovietes.
    - E então, a companhia saiu?
    -Absolutamente.
    - Os jornais estão a ser compostos?
    - Sim, estão a andar.
    Lenine ficou entusiasmado, o que se manifestava por exclamações e risos: esfregava as mãos de contente.
    Seguidamente, concentrou-se, reflectiu e disse:
    - Sim, as coisas também , podem ser feitas , dessa maneira... com a condição de tomarmos o poder!...
    Compreendi que apenas nesse momento ele admitira, definitivamente a ideia de renunciar à tomada do
    poder através duma conjura.
    Temia, até ao último minuto, que o inimigo entravasse o nosso movimento e nos surpreendesse de
    improviso.
    Somente nessa noite, a noite de 25 de Outubro, se acalmou e sancionou definitivamente a via por que
    tinham enveredado os acontecimentos. Digo «acalmou-se», mas apenas para recomeçar imediatamente a
    inquietar-se acerca de uma série de questões, grandes e pequenas, concretas e meticulosas, ligadas à
    marcha da insurreição.
    - Escutai, e se fizessem isto? Não seria melhor fazer aquilo? E se pedíssemos ajuda àqueles?..
    Estas questões e propostas intermináveis não tinham exteriormente qualquer ligação entre elas, surgindo
    todas do mesmo intensivo trabalho interior que envolvia a revolta em toda a sua extensão.
    É preciso saber poupar o fôlego durante os acontecimentos duma revolução. Quando a maré sobe
    irresistível, quando as forças da insurreição crescem automaticamente, enquanto que as da reacção,
    fatalmente, se fraccionam e dispersam, é grande a tentação de nos entregarmos aos elementos, de nos
    deixarmos arrastar pela corrente. Um sucesso brusco desarma tão bem como uma derrota.
    Não perder o fio ao curso dos acontecimentos; dizer após cada novo sucesso: nada foi ainda obtido, nada
    está garantido; cinco minutos antes da vitória decisiva, conduzir as operações com a mesma vigilância,
    energia e intensidade do que cinco minutos antes do início das hostilidades; cinco minutos após a vitória,
    antes mesmo de ressoarem as primeiras aclamações, dizer: a conquista não está ainda assegurada, não se
    pode perder um instante; é este o caminho, é esta a forma de agir, é este o método de Lenine, é esta a
    essência orgânica do seu carácter político, do seu espírito revolucionário.
    Descrevi já ,noutro local como Dan, dirigindo-se sem dúvida à sessão da facção menchevique do II
    Congresso dos Sovietes, reconheceu Lenine disfarçado entre nós, que estávamos sentados a uma pequena
    mesa numa sala de passagem. Este facto foi até representado num quadro, que ainda por cima, segundo as
    fotografias que vi, não tem qualquer relação com a realidade. Este é, de resto, o destino da pintura
    histórica, e não apenas o desta arte. Não me lembro em que ocasião, mas muito mais tarde, disse a Lenine:
    - Seria necessário redigir uma nota sobre esse encontro, senão um dia contar-se-ão anedotas sobre ele!
    Esboçou um gesto de desespero cómico:
    - Que importa! Contar-se-ão essas e muitas mais...
    O II Congresso dos Sovietes realizava a sua primeira sessão no Instituto Smolni. Lenine não compareceu.
    Mantinha-se à margem, numa das salas do Instituto onde não existiam, se bem me lembro, nenhuns ou
    quase nenhuns móveis. Alguém veio seguidamente estender umas mantas sobre o soalho, atirando
    também duas almofadas. Repousámos aí, Ilitch e eu, deitados um ao lado do outro. Mas uns minutos
    depois alguém me chamou:
    - Dan tomou a palavra, é preciso dar-lhe réplica.
    Após ter ouvido Dan, voltei e ,deitei-me de novo ao lado de Vladimir Ilitch, que, como é óbvio, de modo
    algum pensava em dormir. Era impossível fazê-lo! De cinco em cinco, ou de dez em dez minutos,
    chegava alguém da sala das sessões para nos dar a conhecer o que aí se passava. Além disso, chegavam
    estafetas da cidade onde, sob a direcção de Antonov-Ovseenko, continuava o cerco ao Palácio de Inverno,
    que terminou por uma tomada de assalto.
    O que se passou depois foi sem dúvida na manhã seguinte, que apenas uma noite de insónia separava do
    dia anterior. Vladimir Ilitch tinha um ar fatigado. Sorrindo, disse:
    - A passagem da vida clandestina e do regime de Perevertzev ao poder é demasiado brusca... Es
    schwindelt (entonteço), acrescentou, não sei porquê em alemão, descrevendo com a mão um movimento
    circular em redor da cabeça.
    Após esta observação, a única mais ou menos pessoal que lhe ouvi na ocasião da conquista do poder,
    passámos simplesmente a dar expediente às questões do dia.
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo III - Brest-Litovsk
    Tinhamos iniciado as conversações de paz na esperança de sacudir as massas trabalhadoras da Alemanha
    e da Austria-Hungria, bem como a dos países da «Entente».
    Para atingir este objectivo era necessário prolongar as conversações o mais possível, a fim de dar tempo
    aos operários europeus para compreenderem convenientemente a própria revolução soviética e, em
    particular, a sua política de paz.
    Após a primeira interrupção das conversações, Lenine propôs-me que me dirigisse a Brest-Litovsk. A
    perspectiva de negociar com o barão Kühlmann e o general Hoffmann não tinha em si nada de sedutor;
    mas, «para empatar as conversações era preciso um empata», como dizia Lenine. Tivemos, no Instituto
    Smolni, uma breve troca de opiniões acerca da linha geral a seguir. Foi posta temporariamente de lado a
    questão de se assinar ou não assinar: era impossível saber-se qual a marcha das conferências, o efeito
    produzido na Europa, e a nova situação que daí resultaria. E, como é óbvio, não renunciávamos à
    esperança de se dar uma rápida evolução revolucionária.
    Para mim, era absolutamente evidente o facto de não podermos continuar a guerra. Quando atravessei pela
    primeira vez as trincheiras a caminho de Brest-Ltovsk, os nossos camaradas, apesar de todos os avisos e
    exortações que lhes tinham sido dirigidos, não conseguiram organizar uma manifestação mais ou menos
    significativa para protestar contra as exigências excessivas da Alemanha: as trincheiras estavam quase
    vazias, ninguém ousava dizer palavra, nem mesmo de uma forma condicional, acerca de um
    prolongamento da guerra. A paz, a paz a todo o custo!...
    Mais tarde, quando voltei a Brest-Litovsk, tentei convencer o representante do grupo militar junto do
    Comité Executivo pan-russo a defender a nossa delegação com um discurso «patriótico».
    - Impossível, respondeu, absolutamente impossível; já não poderíamos voltar para as trincheiras; não
    seríamos compreendidos; perderíamos toda a influência...
    Assim, não houve qualquer espécie de desacordo entre Vladimir Ilitch e eu no que se referia à
    possibilidade de uma guerra revolucionária.
    No entanto, uma outra questão se punha: poderiam os Alemães continuar a guerra, ser-lhes-ia possível
    desencadear uma ofensiva contra a revolução, quem declararia o fim das hostilidades? Como poderíamos
    nós conhecer, sondar a opinião da massa de soldados alemães? Que impressão teriam produzido sobre
    essa massa a Revolução de Fevereiro e a de Outubro? A greve de Janeiro na Alemanha parecia indicar um
    certo abalo. Qual a sua intensidade? Não seria necessário tentar submeter a classe operária e o exército
    alemães a uma prova: por um lado, a revolução operária dando a guerra por terminada; por outro, o
    governo dos Hohenzollern dando ordem para desencadear uma ofensiva contra esta revolução?
    - É certamente muito sedutor, replicava Lenine, e não há dúvida de que algo resultaria de uma prova
    semelhante. Mas é muito, muito arriscado. E se, como é muito provável, o militarismo alemão tiver força
    suficiente para desencadear o ataque contra nós, que sucederá então? É impossível arriscar: actualmente
    não existe no mundo nada mais importante que a nossa revolução.
    No início, a dissolução da. Assembleia Constituinte prejudicou muito a nossa situação Internacional.
    Contudo, os Alemães tinham podido recear desde logo que um entendimento entre nós e «os patriotas» da
    Assembleia Constituinte conduzisse a uma tentativa de continuação da guerra. Uma tal aberração
    arruinaria definitivamente a revolução e o país; porém só mais tarde nos teríamos apercebido disso, e,
    entretanto, os Alemães seriam levados a despender um novo esforço. Ora a dissolução da Assembleia
    Constituinte mostrava aos Alemães que nós estávamos verdadeiramente dispostos a terminar a guerra
    qualquer que fosse o preço. O tom de Kühlmann tornou-se imediatamente mais insolente.
    Que impressão poderia essa dissolução da Assembleia Constituinte produzir no proletariado dos Aliados?
    Não era difícil responder a esta questão: a imprensa da «Entente» apresentava o regime soviético como
    simples agência dos Hohenzollern. E eis que os bolcheviques dispersavam a Assembleia Constituinte
    «democrática» para concluirem com os Hohenzollern uma paz humilhante, enquanto a Bélgica e o Norte
    da França se encontravam ocupados pelas tropas alemãs. Era evidente que a burguesia da «Entente»
    conseguiria despertar nas massas operárias a maior perplexidade. Por outro lado, isto poderia facilitar uma
    intervenção militar contra nós. Era sabido que, até mesmo na Alemanha, circulavam com insistência,
    entre a oposição social-democrata, lendas afirmando que os bolcheviques teriam sido comprados pelo
    governo alemão e que o que estava a passar-se em Brest-Litovsk era simplesmente uma comédia cujos
    papéis tinham sido distribuídos antecipadamente.
    Esta versão devia parecer ainda mais aceitável na França e na Inglaterra. Assim, era minha opinião que
    antes de assinar a paz era absolutamente necessário dar aos operários da Europa uma prova cabal do ódio
    mortal que nos separava dos dirigentes alemães. Foi precisamente influenciado por estes motivos que, em
    Brest-Litovsk, cheguei à ideia de uma demonstração «instrutiva» que se traduzia pela fórmula:
    terminamos a guerra, mas não assinamos a paz. Aconselhei-me junto de outros membros da delegação,
    que me deram o seu assentimento, o que comuniquei por escrito a Vladimir Ilitch.
    Respondeu: «Quando voltar falaremos». Talvez pensasse até exprimir nesta resposta que não estava de
    acordo com o que eu tinha proposto. De momento não me recordo, não tenho a carta à mão nem a certeza
    de que tenha sido conservada. Quando voltei para Smolni tivemos, Vladimir e eu, longas conversas.
    - Tudo isso é extremamente sedutor, não se poderia desejar nada de melhor se o general Hoffmann fosse
    incapaz de fazer avançar as suas tropas contra nós. Existem porém poucas esperanças de que assim seja.
    O general encontrará, para desencadear a sua ofensiva, regimentos especialmente compostos por ricos
    camponeses bávaros, e será isso necessário para nos derrotar? Você mesmo diz que as trincheiras estão
    vazias. E se os Alemães, apesar de tudo, recomeçam guerra?
    - Então seremos forçados a assinar a paz, mas será evidente para todo o mundo que não tínhamos outra
    solução. Isto bastará para destruir a lenda relativa a uma pseudo-ligação de bastidores entre nós e o
    Hohenzollern.
    - Não há dúvida de que isso tem vantagens. Contudo demasiado arriscado. Actualmente não há nada no
    mundo mais importante que a nossa revolução; é preciso defendê-la do perigo custe o que custar.
    Juntaram-se às dificuldades principais desta questão enormes complicações no seio do partido. Nos meios
    que lhe eram afectos, ou pelo menos entre os elementos dirigentes, a opinião dominante, intransigente, era
    a de ser necessário rejeitar as condições de Brest e recusar a assinatura da paz. Os relatos publicados pelos
    nossos jornais sobre as conversações mantinham e agravavam este estado de espírito, que encontrou a sua
    expressão mais viva no grupo do comunismo de esquerda que lançava a palavra de ordem da guerra
    revolucionária. Esta circunstância, evidentemente, inquietava Lenine.
    - Se o Comité Central decide aceitar as condições alemãs unicamente sob a influência de um ultimatum
    verbal, dizia-lhe eu, arriscamo-nos a provocar uma cisão no partido. É indispensável desvendar o
    verdadeiro estado das coisas, tanto ao nosso partido como aos operários da Europa... Se cortamos relações
    com os da esquerda, o partido abrirá caminho à direita: pois, como é evidente, está fora de dúvida que
    todos os camaradas que tomaram uma posição nítida contra o golpe de Estado de Outubro e se
    pronunciaram a favor do bloco dos partidos socialistas, demonstraram, sem reservas, serem partidários da
    paz de Brest-Litovsk. Ora a nossa tarefa não consiste apenas em concluir a paz; entre os comunistas de
    esquerda existem muitos que desempenharam um papel de militantes extremamente activos durante o
    período de Outubro, etc...
    - Tudo isso é indiscutível, respondia Vladimir Ilitch. Mas o que se decide neste momento é o destino da
    revolução. Nós iremos restabelecer o equilíbrio no partido. Antes de mais nada, é necessário salvar a
    revo1ução, e não é possível salvá-la senão assinando a paz. É preferível uma cisão do que o perigo de ver
    a revolução esmagada pela força militar. As manias da esquerda passarão e, seguidamente, - se é que eles
    vão mesmo ao ponto de provocar uma cisão, o que não é totalmente inevitável - regressarão ao partido.
    Porém, se os Alemães nos esmagarem, ninguém os fará voltar... Enfim, imaginemos que o vosso plano é
    aceite. Nós recusamos assinar a paz. Nesse caso os Alemães tomam a ofensiva. Que fareis então?
    - Assinamos a paz constrangidos pelas baionetas. Nessa altura, a situação define-se claramente ante a
    classe operária de todo o mundo.
    - E não defenderíeis então a palavra de ordem da guerra revolucionária?
    - Nunca.
    - Se a questão se apresenta assim, então a experiência poderá ser já muito menos perigosa. Arriscar-nosíamos
    a perder a Estónia ou a Letónia. Vieram ver-me alguns camaradas estónios e contaram-me como
    tinham iniciado já e com bastante êxito a construção socialista nas colónias agrícolas. Será muito
    lamentável sacrificar a Estónia socialista - acrescentava Lenine num tom irónico - mas será preciso, será
    preciso, assim o penso, chegar a esse compromisso em prol da boa causa da paz.
    - Mas supondo que a paz é assinada imediatamente, será que isso suprime a possibilidade duma
    intervenção militar dos Alemães na Estónia ou na Letónia?
    - Admitamos que sim: mas é uma simples possibilidade, enquanto que no outro caso é uma quase certeza.
    Em qualquer das hipóteses, eu não me pronunciarei pela assinatura imediata: é mais seguro.
    Perante o meu plano, Lenine temia sobretudo que, no caso dos Alemães retomarem a ofensiva, não
    conseguíssemos assinar a paz suficientemente depressa, isto é, que o militarismo alemão não nos desse
    tempo: «Esta Besta salta bruscamente», afirmou mais de uma vez Vladimir Ilitch.
    Na conferência onde se deliberou sobre a questão da paz, Lenine pronunciou-se resolutamente contra a
    esquerda e com muita circunspecção e calma contra a minha proposta. Aceitou-a, todavia, contra-vontade,
    uma vez que era evidente a oposição do partido à assinatura, na medida em que uma resolução transitória
    deveria servir-lhe de ponte e levá-lo-ia a assinar o tratado.
    A conferência dos bolcheviques mais em foco - isto é, dos delegados ao III Congresso dos Sovietes -
    demonstrou sem qualquer espécie de dúvida que o nosso partido, apenas saído do fogo de Outubro, tinha
    necessidade de verificar através da acção qual era a situação internacional. Se não tivesse surgido uma
    fórmula transitória, a maioria ter-se-ia pronunciado a favor da guerra revolucionária.
    Talvez não seja destituído de interesse notar que os socialistas revolucionários de esquerda de forma
    alguma se pronunciaram imediatamente contra a paz de Brest-Litovsk. Spiridonova, pelo menos, estava
    nos primeiros tempos resolutamente a favor da assinatura:
    - O mujique já não quer mais guerra - dizia ela - e aceitará qualquer espécie de paz.
    - Assinai imediatamente a paz - dizia-me, no meu primeiro regresso de Brest - e aboli o monopólio dos
    trigos.
    Seguidamente, os socialistas revolucionários de esquerda declararam-se a favor da fórmula transitória:
    cessar a guerra sem assinar a paz; mas consideravam-na como uma etapa a caminho da guerra
    revolucionária, «em caso de necessidade».
    É sabido que a delegação alemã respondeu à nossa declaração de tal modo que poder-se-ia pensar não ser
    intenção da Alemanha retomar as hostilidades. Chegáramos a essa dedução quando nos voltámos a ver em
    Moscovo.
    - Não irão eles enganar-nos? - perguntava Lenine. Dávamos a entender, com um gesto, que isso não nos
    parecia provável.
    - Então está bem, disse Lenine. Tanto melhor se assim é: as aparências estão salvas e eis-nos saídos da
    guerra.(1)
    No entanto, dois dias antes da data que nos tinha sido fixada como prazo final, recebemos um aviso
    telegráfico do general Samoilo, que ficara em Brest, dizendo que, segundo a declaração do general
    Hoffmann, os Alemães se consideravam em guerra connosco a partir do meio-dia de 18 de Fevereiro e,
    consequentemente, o tinham convidado a ele, Samoilo, a abandonar Brest-Litovsk. Este telegrama foi
    entregue directamente a Lenine. Encontrava-me então no seu gabinete. Conversávamos com Kareline e já
    não recordo com que outro camarada dos socialistas revolucionários de esquerda.
    Após tomar conhecimento do telegrama, Lenine passou-mo sem dizer palavra. Recordo-me do seu olhar
    fazendo-me sentir imediatamente que o telegrama continha uma notícia importante e má. Lenine
    apressou-se a terminar a conversa com os socialistas-revolucionários para poder examinar a nova
    situação.
    - Então, e apesar de tudo, enganaram-nos. Ganharam cinco dias. Esta Besta não deixa perder nada. Agora
    só nos resta assinar segundo as condições antigas, se é que os Alemães consentem em mantê-las.
    Repliquei dizendo que era preciso dar tempo a Hoffmann para iniciar efectivamente a sua ofensiva.
    - Mas então isso significa que entregaremos Dvinsk, que iremos perder muita artilharia, etc.?
    - Há certamente novos sacrifícios a fazer. Mas é preciso que o soldado alemão entre efectivamente
    combatendo no território soviético. É necessário que a notícia seja conhecida pelos operários alemães por
    um lado, e pelos operários ingleses e franceses por outro.
    - Não, replicou Lenine, é evidente que não se trata de Dvinsk; mas neste momento já não há tempo a
    perder. A prova está feita. Hoffmann quer e pode fazer a guerra. É impossível discutir: já nos roubaram
    cinco dias que eu pensava aproveitar. Esta Besta salta rapidamente.
    O Comité Central tomou uma decisão relativa ao envio do telegrama onde se afirmava que consentíamos
    em assinar imediatamente o tratado de Brest-Litovsk. O telegrama foi enviado.
    - Parece-me, disse eu então a Vladimir Ilitch numa conversa privada, que do ponto de vista político a
    minha demissão de comissário do povo para os negócios estrangeiros estaria de acordo com a situação.
    - Porquê? Esses são processos parlamentares que não temos de adoptar entre nós.
    - Contudo, a minha demissão marcará para os Alemães uma alteração radical da nossa política e
    aumentará a confiança que devem ter na nossa real intenção de, desta vez, assinar-mos a paz e respeitar as
    condições impostas.
    - É possível, disse Lenine num tom pensativo. Aí está um sério motivo político.
    - Não me recordo em que altura recebemos a notícia duma incursão na Finlândia pelas tropas alemãs
    e das operações efectuadas com o fim de esmagar os operários finlandeses. Lembro-me que dei com
    Lenine no corredor, próximo do seu gabinete. Estava extremamente comovido. Nunca o tinha visto e
    nunca mais o vi num estado semelhante.
    - Sim, disse ele, provavelmente ver-nos-emos forçados a combater, embora não tenhamos meios.
    Desta vez julgo que não haverá outra solução...
    Foi esta a primeira reacção de Lenine após a leitura do telegrama que anunciava a derrota da revolução na
    Finlândia. Porém, quando dez minutos ou um quarto de hora mais tarde entrei no seu gabinete, disse-me:
    - Não, é impossível modificar a nossa política. A nossa actuação não salvaria a Finlândia revolucionária e
    constituiria seguramente a nossa perda. Daremos aos operários finlandeses todo o auxílio possível mas
    não abandonaremos o domínio da paz. Não sei se isso nos salvará agora. Mas em qualquer dos casos, é a
    única via que ainda poderá conduzir à salvação.
    E a salvação encontrou-se com efeito nessa via.
    A decisão de não assinar a paz não era motivada, como agora por vezes se escreve, por essa razão
    abstracta de que seria impossível concluir uma convenção com os imperialistas. Bastará consultar a
    brochura do camarada Ovsiannikov: nela se poderão ver os votos que Lenine reclamou acerca desta
    questão; são extremamente instrutivos; constatar-se-á que os partidários da fórmula de experiência por
    tentativas, «nem guerra, nem paz», responderam afirmativamente quando se lhes perguntou se tínha-mos
    o direito, na qualidade de partido revolucionário, de, sob certas condições, assinar uma paz «infame». Na
    realidade, o que dizíamos era: que se existem apenas vinte e cinco por cento de probabilidades para que o
    Hohenzollern não se decida, ou não possa, combater-nos, é necessário arriscar a experiência.
    Três anos mais tarde, corríamos um outro risco - desta vez por iniciativa de Lenine; experimentávamos
    com a ponta da baioneta os burgueses e os pequenos senhores da Polónia. Fomos repelidos. Qual seria
    então a diferença que se verificava neste caso com aquilo que fizéramos em Brest-Litovsk? Em princípio,
    nenhuma; embora existisse diferença no grau de risco.
    Vem-me à lembrança ter o camarada Radek escrito um dia que o poder do pensamento táctico de Lenine
    se manifestou sob o seu aspecto mais brilhante no movimento desencadeado após a assinatura de Brest até
    à marcha sobre Varsóvia. Todos sabe-mos agora que esta marcha sobre Varsóvia constituiu um erro que
    nos custou extremamente caro. Conduziu-nos não somente à paz de Riga, que viria a separar-nos
    geograficamente da Alemanha, mas entre outros resultados teve por consequência imediata ajudar
    consideravelmente à consolidação da Europa burguesa. O significado contra-revolucionário do tratado de
    Riga para o destino da Europa poderá ser compreendido mais claramente se nos lembrarmos das
    circunstâncias de 1923 e imaginarmos que tivemos então uma fronteira comum com a Alemanha.
    Demasiadas coisas nos indicam que o desenrolar dos acontecimentos na Alemanha teria sido, neste caso,
    completamente diferente. Além disso, não restam dúvidas que, mesmo na Polónia, o movimento
    revolucionário ter-se-ia desenrolado de uma maneira muito mais feliz sem a nossa intervenção militar,
    culminada por uma derrota.
    O próprio Lenine dava, tanto quanto eu sei, uma enorme importância ao «erro» de Varsóvia. E contudo
    Radek, na sua apreciação da envergadura táctica ,de Lenine, está cheio de razão. É verdade que, após a
    tentativa feita para «pôr à prova» as massas laboriosas da Polónia, tentativa essa que não deu os resultados
    esperados; após o recuo que nos foi infligido - e que deviam necessariamente infligir-nos, pois, dada a
    calma que reinava então na Polónia, a nossa marcha sobre Varsóvia não passava de uma incursão de
    guerrilheiros; após a derrota que nos forçou a assinar a paz de Riga - não será difícil concluir que os
    adversários desta campanha tinham razão e que mais teria valido determo-nos a tempo e conservar a
    fronteira com a Alemanha. Todavia, isto só se tornou claro mais tarde. O que é significativo para Lenine,
    relativamente à ideia da marcha sobre Varsóvia, é a coragem da sua concepção. O risco era grande, mas ,a
    importância do objectivo superava a dimensão do perigo. O possível fracasso não constituía um perigo no
    que se refere à própria existência da República dos Sovietes; provocaria, quando muito, o seu
    enfraquecimento.
    Poderemos deixar ao historiador futuro a tarefa de apreciar se valeria a pena arriscar um agravamento das
    condições da paz de Brest com o único objectivo de fazer uma demonstração perante os operários
    europeus. Mas é perfeitamente evidente que, uma vez feita essa demonstração, éramos obrigados a assinar
    a paz que nos impunham. E aqui, a nitidez da posição de Lenine e a poderosa pressão por ele exercida
    salvaram as coisas.
    - E se os Alemães, apesar ,de tudo, tomam a ofensiva? E se marcham sobre Moscovo?
    - Teremos de bater em retirada para Leste, para os Urais, declarando que estamos prontos a assinar a paz.
    A bacia de Kuznetz é rica em carvão. Criaríamos uma República do Ural-Kuznetz, servindo-nos da
    indústria da região, utilizando o carvão de Kuznetz, apoiando-nos no proletariado do Ural e sobre aqueles
    de entre os operários de Moscovo e Petrogrado que pudermos levar. Resistiremos. Em caso de
    necessidade, retirar-nos-emos ainda para mais longe, para Leste, para além do Ural. Recuaremos até
    Kamtchatka, mas resistiremos. As circunstâncias internacionais modificar-se-ão ainda dezenas de vezes e
    poderemos, a partir da nossa República do Ural-Kuznetz, voltar a Moscovo e a Petrogrado. Porém, se
    agora nos envolvermos inutilmente numa guerra revolucionária, se deixarmos dizimar a elite da classe
    operária e do nosso partido, é evidente que não regressaremos nunca mais.
    Durante este período, a República do Ural-Kuznetz ocupa um lugar importante na argumentação de
    Lenine. Por vezes deixava os opositores verdadeiramente estupefactos ao lançar-lhes esta pergunta:
    - Sabeis que possuímos enormes jazigos de carvão na bacia de Kuznetz? Juntando-os ao minério do Ural
    e ao trigo da Sibéria teremos uma base de reserva.
    O interlocutor, que nem sempre tinha uma ideia precisa do local onde se encontrava Kuznetz e da relação
    que poderia haver entre as suas riquezas carboníferas e, por outro lado, o bolchevismo consequente e a
    guerra revolucionária, abria os olhos espantado ou desatava a rir, tomado de surpresa, julgando que Ilitch
    brincava ou tentava uma das suas habilidades. Na realidade, Lenine não estava de modo algum a 'brincar,
    mas, fiel a si próprio, sondava os dados da situação até às consequências mais extremas, aos piores
    resultados práticos. Esta concepção de uma grande República do Ural-Kuznetz era-lhe organicamente
    necessária para lhe dar firmeza, e para convencer os outros de que nada estava ainda perdido, não havendo
    qualquer razão para ceder à estratégia do desespero.
    Sabe-se que felizmente não ficámos reduzidos à República do Ural-Kuznetz. Podemos porém afirmar que
    esta República, que nunca existiu, salvou a República dos Sovietes. De qualquer modo, para se
    compreender e apreciar a táctica de Lenine em Brest-Litovsk, é-se obrigado a ligá-la à sua táctica de
    Outubro. Ser adversário de Outubro e partidário de Brest seria exprimir, quer num caso, quer no outro,
    ideias de capitulação. O cerne da questão reside no facto de Lenine, na altura da capitulação de Brest-
    Litovsk, ter dispendido a mesma inesgotável energia revolucionária que lhe havia assegurado a vitória de
    Outubro no seio do partido. É precisamente esta combinação natural, orgânica, de Outubro e de Brest, de
    uma gigantesca tenacidade aliada a uma corajosa circunspecção, de vigor aliado à justeza de visão que nos
    fornece a medida do método e da força de Lenine.
    Notas: Segunda Parte – Capítulo III
    (1)É evidente que os diálogos reproduzidos neste capítulo são apenas aproximados; lembro-me, contudo,
    palavra por palavra, da frase acerca das «aparências». (retornar ao texto)
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo IV - A Dissolução da Constituinte
    Nos primeiros dias, se não nas primeiras horas que se seguiram ao golpe de Estado, Lenine levantou a
    questão da Assembleia Constituinte.
    - É preciso adiá-la, declarou, é necessário prorrogar as eleições. É preciso alargar o direito eleitoral dando
    aos jovens de dezoito anos a faculdade de votar. É necessário criar a possibilidade de rever as listas de
    candidatos. As nossas próprias listas não valem nada: encontramos nelas uma quantidade de intelectuais
    de ocasião e precisamos de operários e de camponeses. Os homens de Kornilov, os Cadetes, devem ser
    postos fora de lei.
    Replicavam-lhe: - Não é cómodo adiá-la agora. Será tomado como uma suspensão da Assembleia
    Constituinte, porquanto nós próprios acusámos o Governo provisório de tergiversar com a Assembleia.
    - Parvoíces! replicava Lenine. O que importa são os actos e não as palavras.. Para o Governo Provisório a
    Assembleia Constituinte marcava, ou podia marcar, um passo em frente; para o poder soviético, sobretudo
    com as listas actuais, seria inevitavelmente um passo à retaguarda. Porque razão achais cómodo adiar? E
    se a Assembleia Constituinte se compuser de Cadetes, de mencheviques e de socialistas-revolucionários,
    achas que será cómodo?
    - Mas nessa altura seremos nós os mais fortes, respondiam-lhe; de momento estamos ainda demasiado
    fracos. Na província não se sabe quase nada acerca do poder soviético. E se agora se receber a notícia de
    termos adiado a Assembleia Constituinte, esse facto enfraquecer-nos-á ainda mais.
    Sverdlov pronunciava-se contra o adiamento com particular energia, pois encontrava-se mais ligado à
    província do que nós.
    Lenine via-se sozinho com o seu ponto de vista. Abanava a cabeça com um ar descontente, repetindo:
    - É um erro, trata-se evidentemente de um erro que pode custar-nos caro! Oxalá não faça perder a
    revolução...
    No entanto, quando se decidiu pelo não adiamento, Lenine
    concentrou toda a sua atenção nas medidas de organização
    necessárias aos preparativos para a Assembleia.
    Neste intervalo de tempo tornou-se claro que estaríamos em minoria, mesmo com o apoio dos socialistasrevolucionários
    de esquerda inscritos juntamente com os da direita em listas comuns e que foram
    completamente «levados».
    - Não há dúvida de que é preciso dissolver a Assembleia Constituinte, dizia Lenine, mas o que se há-de
    fazer com os socialistas-revolucionários de esquerda?
    Fomos porém consolados pelo velho Natanson. Reuniu-se connosco «em conselho» e as suas primeiras
    palavras foram para nos dizer:
    - Creio que, apesar de tudo, será necessário dissolver à força a Assembleia Constituinte.
    - Bravo! exclamou Lenine; eis uma coisa acertada! Mas será que os vossos estão de acordo connosco
    sobre este assunto?
    - Alguns dos nossos hesitam ainda, mas penso que ao fim e ao cabo terminarão por aceitar, respondeu
    Natanson.
    Os socialistas-revolucionários de esquerda estavam então em plena lua-de-mel com o seu radicalismo
    extremo: com efeito, aceitaram.
    Natanson fez uma proposta: - E se agíssemos da seguinte maneira, disse ele: unindo as nossas e as vossas
    facções na Assembleia Constituinte com o Comité Executivo Central e assim formássemos uma
    Convenção?
    - Porquê? replicou Lenine com visível despeito. Para imitar a Revolução Francesa? Dispersando a
    Constituinte consolidamos o sistema soviético. Com o vosso plano tudo se complicaria: não teríamos nem
    uma coisa, nem outra.
    Natanson esforçou-se por demonstrar que, adoptando o seu plano, poderíamos apropriar-nos duma parte
    da autoridade da Constituinte, mas acabou por se render.
    Lenine dedicou-se então à resolução total da questão da Constituinte.
    - O erro é evidente, dizia ele: já conquistámos o poder e, contudo, colocámo-nos numa situação tal que
    nos vemos agora forçados a tomar medidas bélicas para o reconquistarmos.
    Encaminhou os preparativos com um cuidado escrupuloso, examinando todos os pormenores e, para tal,
    submetendo Uriski, que com grande mágoa de Lenine tinha sido nomeado comissário da Assembleia
    Constituinte, a um interrogatório apaixonado. Lenine prescrevia, entre outras coisas, levar para Petrogrado
    um regimento letão, composto sobretudo por operários.
    - O mujique poderia ceder, disse; precisamos aqui da
    determinação proletária. Os deputados bolcheviques da Assembleia Constituinte, chegados de todos os
    pontos da Rússia, foram distribuídos, sob a pressão de Lenine e a direcção de Sverdlov, pelas fábricas,
    oficinas e pelas diversas formações do exército. Constituíam um elemento importante no aparelho de
    organização da «revolução complementar» de 5 de Janeiro. No que se refere aos deputados socialistasrevolucionários,
    julgavam ser incompatível com .a dignidade de eleitos do povo a sua participação na
    luta: «O povo escolheu-nos, compete-lhe defender-nos». Na realidade, estes pequenos burgueses da
    província não tinham qualquer noção sobre a forma como se haviam de conduzir; a grande maioria tinha,
    pura e simplesmente, medo. Preparavam, no entanto, cuidadosamente o cerimonia da primeira sessão.
    Trouxeram velas, para o caso dos bolcheviques cortarem a electricidade, e uma grande quantidade de
    torradas, para o caso de os fazerem jejuar. Foi assim que a democracia marchou para o combate contra a
    ditadura, fortemente armada com torradas e velas. O povo não teve sequer a ideia de apoiar esses homens
    que se consideravam por ele eleitos e que, na realidade, não eram senão as sombras de um período
    revolucionário já ultrapassado.
    Durante a dissolução da Assembleia Constituinte, eu encontrava-me em Brest-Litovsk. Mas, em breve,
    quando voltei a Petrogrado para consultas, Lenine disse-me a propósito da dissolução da Assembleia:
    - Não há dúvida de que foi muito arriscado da nossa parte não adiar a convocação, foi muito, muito
    imprudente. Mas, apesar de tudo, foi melhor assim. A dissolução da Assembleia Constituinte pelo poder
    soviético constituiu uma liquidação completa e aberta da forma democrática em nome da ditadura
    revolucionária. A partir de agora, a lição ficará aprendida.
    Foi assim que a generalização teórica surgiu com a utilização de um regimento de caçadores letões.
    Certamente, nesta altura se formaram ,em definitivo na consciência de Lenine as ideias que formulou
    mais tarde nas suas notáveis teses sobre a democracia, durante o I Congresso da Internacional Comunista.
    Sabemos que a crítica da democracia formal tem uma longa história. O carácter intermediário da
    revolução de 1848 foi explicado, por nós e pelos nossos predecessores, como um naufrágio da democracia
    política. Esta democracia foi substituída pela democracia «social». Porém, a sociedade burguesa soube
    constrangê-la a ocupar a posição que a democracia pura já não tinha força para manter. A história política
    passa por um período dilatório durante o qual a democracia social, alimentando-se com a crítica da
    democracia pura, desempenhou, de facto, as obrigações desta, ficando completamente impregnada dos
    seus vícios. Produziu-se então o que sucedera frequentemente na história: a oposição foi chamada para
    resolver, num sentido conservador, os problemas que ultrapassavam já as forças comprometidas da
    véspera. Depois de se ter tornado a condição temporária duma preparação da ditadura proletária, a
    democracia passou a ser o critério supremo, a última instância de controlo, o inviolável sacrossanto, isto
    é, a hipocrisia superior da sociedade burguesa. Também assim sucedera entre nós. Ferida mortalmente nos
    seus interesses materiais, em Outubro, a burguesia tentou ressuscitar uma vez mais em Janeiro, sob a
    aparência do fantasma sagrado da Assembleia Constituinte. Seguidamente, a progressão vitoriosa da
    revolução proletária, que tinha dissolvido de um modo franco e brutal a Assembleia Constituinte,
    desfechou sobre a democracia formal o golpe benfazejo de que ela não mais viria a recompor-se. Eis o
    motivo porque Lenine tinha razão quando dizia:
    - Afinal, as coisas compuseram-se melhor assim!
    Nesta Assembleia Constituinte de socialistas-revolucionários, a República de Fevereiro encontrou ocasião
    de morrer pela segunda vez.
    Baseado nas impressões gerais que me restam da Rússia oficial de Fevereiro, do Soviete de Petrogrado,
    composto então por mencheviques e socialistas-revolucionários, desenha-se actualmente, com nitidez no
    meu espirito, como se datasse de ontem, a fisionomia de um delegado socialista-revolucionário. Quem
    era, donde vinha, não o sabia e ainda não o sei. Da província, sem dúvida. Tinha o ar de um jovem
    mestre-escola, de origem eclesiástica: devia ter sido um bom seminarista. De nariz chato, quase imberbe,
    rosto simplório, maçãs do rosto salientes, usando óculos. Foi na sessão onde os ministros socialistas se
    apresentaram pela primeira vez no Soviete. Tchernov explicava em termos prolixos ,difusos, lamechas,
    sedutores e nauseabundos, porque razão ele e os outros tinham entrado para este governo e quais seriam
    as felizes consequências de tal decisão. Lembro-me de uma frase enfastiante repetida dezenas de vezes
    pelo orador:
    - Vocês empurraram-nos para o governo, compete-vos colocarem-nos em evidência.
    O seminarista contemplava o orador patenteando nos olhos uma adoração concentrada. É assim que deve
    sentir e olhar o peregrino fiel que tem a felicidade de visitar um santuário famoso e a honra de ouvir o
    sermão de um santo staretz.(1)
    O discurso prosseguia interminavelmente; por vezes levantava-se um ligeiro murmúrio entre a audiência
    fatigada. Porém, no meu seminarista, a fonte da veneração e do entusiasmo parecia inesgotável.
    - Eis a fisionomia que deve ter a nossa revolução, ou melhor, a deles!, dizia para mim próprio durante
    essa sessão do Soviete de 1917, a primeira a que assistia.
    No final do discurso de Tchernov houve uma tempestade de aplausos. Num canto, apenas um pequeno
    número de bolcheviques manifestava entre si a expressão do seu descontentamento. Este grupo destacouse
    do conjunto quando, em uníssono, apoiou a crítica que fiz ao ministerialismo de defesa nacional dos
    mencheviques e dos socialistas-revolucionários. O seminarista, piedoso estava assustado, alarmado ao
    mais alto grau. Não se indignava: nessa altura, não ousava ainda sentir indignação contra um emigrado
    que acabava de regressar ao país. Não podia, contudo, compreender como era possível haver quem se
    insurgisse contra um acontecimento tão feliz e tão maravilhoso sob todos os pontos de vista, como era o
    da entrada de Tchernov para o Governo Provisório. Estava sentado a alguns passos mim e no seu rosto,
    que eu ia consultando como um barómetro, o medo e o espanto lutavam com o respeito que ainda sentia.
    Esse rosto ficou-me para sempre gravado na memória como própria imagem da Revolução de Fevereiro,
    no que ela teve melhor, de simplista, de ingénuo, de medíocre, no seu elemento pequeno-burguês e
    seminarista; pois esta revolução apresentava um outro aspecto muito mais feio, o de Dan e de Tchernov.
    Não foi em vão, nem por acaso, que Tchernov se viu presidente da Assembleia Constituinte. Tinha sido
    elevado a esse posto pela Rússia de Fevereiro, preguiçosamente revolucionária que ainda se parecia com
    Oblomov (2) e que era, por um lado, oh! tão cândida! e, por outro, ah! tão velhaca... O mujique, meio
    desperto, exaltava e impelia os Tchernov por intermédio dos seminaristas devotos. E Tchernov aceitava
    esse mandato não sem um certo encanto «russo» e uma certa desonestidade igualmente «russa». Pois
    Tchernov - e é aí que quero chegar constituiu também, no seu género, um tipo nacional. Digo «também»
    porque tive a oportunidade, há quatro anos, de falar do carácter «nacional» de Lenine. A justaposição ou,
    pelo menos a aproximação indirecta destas duas figuras poderá parecer inconveniente. E ela seria, com
    efeito, grosseira, indecente, se tratasse de personalidades. Falo porém aqui dos «elementos» nacionais tal
    como foram incarnados e reflectidos!
    Tchernov é o epígono da velha tradição dos intelectuais revolucionários; Lenine é a perfeição, o resultado
    completo e
    definitivo.
    Na velha sociedade intelectual encontrava-se o nobre «arrependido» que perorava profusamente acerca do
    dever de servir o povo; o seminarista reverente que, de casa da sua tia beata entreabria sobre o mundo a
    janela do pensamento crítico; o mujique instruído cuja escolha hesitava entre a socialização da terra e o
    emparcelamento segundo as fórmulas de Stolipine; o operário isolado que contactara com os senhores
    estudantes, se afastara dos seus e não pudera ligar-se aos outros.
    Existe um pouco de tudo isto no género dos Tchernov de voz adocicada, de carácter e de espírito
    informes, intermediários, pródigos em mutações. Quase nada restou, no mundo dos Tchernov, do velho
    idealismo intelectual da época de Sofia Perovskaia. Em compensação, veio juntar-se-lhe algo da nova
    Rússia industrial e comercial, sobretudo algo que pode exprimir-se pelo ditado dos comerciantes: «Quem
    não mente, não vende».
    Herzen constituiu, na sua época, um importante ,e maravilhoso fenómeno no desenvolvimento da opinião
    russa. Todavia, deixai Herzen decantar-se durante meio-século; suprimi nele as cores brilhantes do
    talento; suponde que se tenha tornado o seu próprio epígono; colocai-o tendo por fundo os anos de 1905-
    1917: e tereis o essencial do mundo de Tchernov.
    Para Tchernichevski, não é possível decompor esse mundo tão facilmente, mas existe em Tchernov um
    elemento caricatural
    de Tchernichevski.
    O elo entre o nosso «socialista-revolucionário» e Mikhailovski parece mais imediato, pois neste último
    dominavam já a sobrevivência, o epigonismo.
    Sob o tchernovismo, como sob a superfície total do nosso desenvolvimento, surge o elemento camponês,
    já interferindo porém com a semi-intelectualidade das cidades e vilas, da pequena burguesia pouco
    evoluída ou então da intelectualidade demasiado evoluída e já fortemente deteriorada.
    A ascenção extrema do tchernovismo foi necessariamente efémera. Em Fevereiro verificou-se um
    primeiro abalo: o soldado, o operário e o mujique acordaram; gradualmente o movimento transmite-se aos
    voluntários do exército, aos seminaristas, aos estudantes, aos advogados; faz-se sentir nas comissões
    mistas e em toda a espécie de instituições que então se inventaram; eleva finalmente os Tchernov às
    alturas democráticas enquanto que... nas bases se produz um desvio: e as alturas democráticas ficam
    suspensas no ar.
    Eis o motivo pelo qual o espírito do mundo de Tchernov - entre Fevereiro e Outubro - se resume nesta
    evocação: «Detém-te, momento: és demasiado belo!»
    Mas o momento não se detinha, o soldado «enraivecia», o mujique parava, resistia, e o próprio seminarista
    começava a perder os sentimentos piedosos que Fevereiro lhe inspirara; após o que os Tchernov, abas da
    labita ao vento, desciam, escorregavam, sem qualquer encanto, das alturas imaginárias, para dentro das
    poças de lama da verdadeira realidade.
    Existem também antecedentes camponeses na base do leninismo, na medida em que eles se encontram no
    proletariado russo e em toda a nossa história. Felizmente, na nossa história, não há apenas a passividade
    ou o espírito de Oblomov; há também movimento. No próprio camponês não existem apenas
    preconceitos, há também discernimento.
    Tudo o que é actividade, coragem, ódio à inércia e à opressão, desprezo pelos caracteres fracos, numa
    palavra, todos os elementos que determinam o movimento, que se formam e acumulam nos movimentos
    das camadas sociais, na dinâmica da luta de classes, tudo isso encontra a sua expressão no bolchevismo.
    A estrutura camponesa refracta-se através do proletariado, através da força dinâmica da nossa história e
    não apenas dela: é Lenine que imprime a esta refracção a sua expressão acabada. Ele constituiu
    precisamente neste sentido a expressão intelectual e capital do elemento nacional, enquanto que o
    tchernovismo reflecte o mesmo fundo nacional, mas não do ponto de vista intelectual, longe disso.
    O episódio tragi-cómico de 5 de Janeiro de 1918 (dissolução da Assembleia Constituinte) foi o último
    choque que se produziu entre os princípios do leninismo e o tchernovismo. Nesse caso não se tratou
    verdadeiramente de um «princípio»; pois, praticamente, não se registou qualquer choque; o que se
    verificou foi uma pequena e lamentável demonstração da rectaguarda da «democracia», que entrou em
    cena armada com as suas velas e as suas torradas. Todas as ficções se evaporaram, os cenários baratos
    esboroaram-se, a enfática força moral manifestou a sua imbecil impotência. Finis!
    Notas: Segunda Parte – Capítulo IV
    (1) «Ancião» que, em certos mosteiros da Rússia, goza de uma influência especial, e é frequentemente
    considerado como autor de milagres. (retornar ao texto)
    (2) Personagem célebre de um romance de Gontcharov; tipo de pessoa indolente e sonhadora da antiga
    sociedade russa. (N.T.). (retornar ao texto)
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo V - O Trabalho Governamental
    Conquistou-se o poder em Petersburgo. É preciso formar governo.
    - Como deverá chamar-se? pensa Lenine em voz alta. Sobretudo não queremos ministros! O título é
    abjecto, já foi arrastado por todo o lado.
    - Poderiam nomear-se comissários, disse eu então; mas presentemente há já demasiados comissários...
    Talvez «altos comissários»... Não, «alto-comissário» soa mal. E se lhes chamássemos «comissários do
    povo»?
    - Comissários do povo? Com efeito, parece-me que poderia servir. E o governo, no seu conjunto?
    - Conselho dos Comissários do Povo?
    - Conselho dos Comissários do PoVO, repetiu Lenine; sim, está perfeito: cheira a revolução.
    Lembro-me desta última frase com uma precisão literal.(1)
    Prosseguiam nos bastidores as penosas negociações com o Vikjel (Comité Executivo Pan-Russo dos
    Ferroviários), com os socialistas-revolucionários de esquerda e com outros. No entanto, neste capítulo
    pouco poderei dizer. Lembro-me apenas da veemente indignação que as pretensões insolentes do Comité
    pan-russo dos ferroviários provocaram em Lenine e da sua igual indignação contra aqueles de entre nós
    que se impressionavam com tais exigências. Continuávamos, portanto, com as negociações, uma vez que
    era preciso aceitar este Comité durante mais algum tempo.
    Por iniciativa do camarada Kamenev, a lei promulgada por Kerenski, instituindo a pena de morte, foi
    abolida. Não consigo recordar-me exactamente qual foi a instituição a que Kamenev apresentou a
    proposta; foi provavelmente ao Comité de Guerra revolucionário e parece-me que o fez logo na manhã de
    25 de Outubro. Lembro-me que isso se passou na minha presença e que não fiz qualquer objecção. Lenine
    encontrava-se ausente. Isto passava-se, sem dúvida, antes da sua chegada a Smolni. Quando tomou
    conhecimento deste primeiro acto legislativo a sua indignação não teve limites.
    - Disparates, disparates, repetia. Pensam que é possível fazer-se uma revolução sem fuzilamentos?
    Pensais, na verdade, que podereis destruir todos os vossos inimigos desarmando-vos? Que outras medidas
    de repressão nos restam? A prisão? Quem se deixará intimidar por tal medida durante uma guerra civil,
    quando cada um dos adversários espera vencer?
    Kamenev procurava demonstrar que se tratava apenas de abolir a pena de morte por meio da qual
    Kerenski queria sobretudo atingir os soldados desertores. Mas Lenine foi inflexível. Para ele era evidente
    que este decreto manifestava uma atitude insuficientemente ponderada perante as imensas dificuldades
    com que iríamos deparar.
    - É um erro, repetia, é uma fraqueza inadmissível, uma ilusão pacifista, etc.
    Propunha que se anulasse imediatamente o decreto. Objectou-se-lhe com a impressão extremamente
    desagradável que esse gesto viria a provocar. Alguém disse:
    - Vale mais recorrer às execuções, quando se tornar evidente que não há outra hipótese.
    Aceitou-se finalmente esta solução.
    Os jornais burgueses, socialistas-revolucionários e mencheviques, formaram, nos primeiros dias que se
    seguiram à revolução, um coro bem afinado: coro de lobos, chacais e cães raivosos. Apenas o Novoié
    Vrémia se esforçava por utilizar um tom de «Idealismo», adoptando uma atitude de cão fustigado.
    - Então não pomos o açaimo a esta canalha? perguntava constantemente Vladimir Ilitch. Valha-me Deus,
    então é isto a ditadura!
    Os jornais tinham-se aproveitado da expressão: «Pilha o que foi pilhado», explorando-a de todas as
    maneiras: em artigos de fundo, em crónicas, em verso.
    - Insistem no «pilha o que foi pilhado», disse certo dia Lenine, possuído dum desespero cómico.
    - Mas de quem são estas palavras? perguntei; serão
    inventadas?
    - Claro que não! Efectivamente, disse-as eu, certo dia, respondeu Lenine; disse-as, esquecendo-as logo;
    mas eles, eles fizeram delas todo um programa.
    E, como bom humorista, fez um gesto de desânimo. Todos aqueles que têm um conhecimento mínimo de
    Lenine sabem que uma das suas mais importantes capacidades era a de separar sempre o fundo da forma.
    Mas não será inútil sublinhar o quanto lhe importava a forma, conhecendo o poder exercido pelo formal
    sobre os espíritos e desse modo transformando o material em substancial. A partir do momento em que o
    Governo Provisório foi deposto, Lenine agiu sistematicamente, nas grandes como nas pequenas questões,
    a título de governo. Não tínhamos ainda qualquer mecanismo governamental; a ligação com a província
    era inexistente; os funcionários praticavam a sabotagem; o Comité Pan-Russo dos Ferroviários dificultava
    as nossas conversas telegráficas com Moscovo; não havia dinheiro e não havia exército. Mas Lenine,
    sempre e em todo o lado,
    actuava por meio de posturas, decretos, ordens dadas em nome
    do governo. É evidente que estava menos disposto que qualquer outro a inclinar-se supersticiosamente
    perante fórmulas mágicas. Estava por demais consciente do efeito dia nossa força residir no novo aparelho
    de Estado que se formava a partir da base, na região de Petrogrado. Mas para conduzir simultaneamente o
    trabalho que emanava do alto, o que vinha das chancelarias desertas ou sabotadas, e o trabalho da base,
    era necessário esse tom de firmeza nas formas, esse tom de um governo que ainda agora se agita no vazio,
    mas que amanhã ou depois se transformará numa força e que, em consequência disso, se manifesta já
    como a força que há-de vir a ser. Este formalismo era igualmente necessário para disciplinar a nossa
    própria confraria. Por cima da tormenta dos elementos, por cima das improvisações revolucionárias dos
    grupos proletários mais avançados, o mecanismo governamental estendia pouco a pouco os seus fios.
    O gabinete de Lenine e o meu estavam situados nos extremos opostos do Instituto Smolni. O corredor que
    nos unia, ou melhor, nos separava, era tão longo que Vladimir Ilitch propôs, por brincadeira, que
    fizéssemos ligação utilizando ciclistas. Comunicávamos por telefone: chegavam frequentemente ao meu
    Gabinete marinheiros que me traziam esses notáveis bilhetes de Lenine, duas ou três frases incisivas
    destacando-se num pequeno pedaço de papel, cada uma em parágrafo, com as palavras mais importantes
    sublinhadas por dois ou três traços de caneta, terminando o conjunto por uma pergunta feita em novo
    parágrafo. Diariamente, percorria várias vezes o corredor interminável, lembrando um formigueiro, para
    me dirigir ao gabinete de Vladimir Ilitch a fim de assistir a reuniões. As questões relativas à luta
    revolucionária estavam no centro das nossas preocupações. No que se referia ao Ministério dos Negócios
    Estrangeiros, coloquei-me completamente nas mãos dos camaradas Markine e Zalkind. Limitei-me apenas
    a redigir algumas notas com o fim de provocar a agitação e a receber um número reduzido de pessoas.
    A ofensiva alemã colocou-nos perante as tarefas mais difíceis num momento em que não possuíamos
    quaisquer meios para resolver os problemas, nem mesmo a capacidade elementar de encontrar esses
    meios ou de os criar. Começámos por lançar um apelo. Redigi um projecto intitulado: «A pátria socialista
    está em perigo», projecto que foi discutido em comum com os socialistas-revolucionários de esquerda.
    Estes, na sua qualidade de novos recrutas do internacionalismo , ficaram embaraçados com o título.
    Lenine, ao contrário, aprovou-o vivamente:
    - Isto demonstra imediatamente uma modificação de 180º na nossa atitude ,em relação à defesa nacional.
    É exactamente do que precisamos.
    Num dos últimos parágrafos do projecto falava-se da exterminação imediata de todo aquele que ousasse
    ajudar o inimigo. Steinberg, socialista-revolucionário de esquerda, que não sei por que vento caprichoso
    fora atirado para a revolução e impelido até ao Conselho dos Comissários do Povo, insurgiu-se contra esta
    ameaça feroz que, dizia ele, prejudicava a «eloquência» do apelo.
    - Pelo contrário, exclamou Lenine, é justamente aí que reside a verdadeira eloquência revolucionária! (Ao
    pronunciar a palavra «eloquência» modificava-lhe ironicamente a pronúncia). Imaginais que sairemos
    vencedores da luta sem o mais implacável terror revolucionário?
    Este era o período em que Lenine aproveitava todas as ocasiões para implantar a ideia do terror inevitável.
    Todas as manifestações de «complacência», de candura cordial, de moleza - e havia de tudo isto para dar e
    vender - indignavam-no, na verdade não por elas próprias: elas constituíam, contudo, uma prova para ele
    de que até a elite da classe operária via mal os problemas formidáveis que teriam de ser resolvidos por
    actos de energia igualmente formidáveis.
    - Eles estão sob a ameaça de perder tudo - dizia, referindo-se aos nossos inimigos. E todavia têm a seu
    favor centenas de milhares de homens que passaram pela escola do exército, homens bem comidos,
    temerários, prontos para tudo: oficiais, junkers, filhos de burgueses e de proprietários, polícias, agrários
    rapaces. E esses «revolucionários» - passe a expressão - imaginam que poderemos fazer a revolução como
    boas pessoas, com gentileza. Então o que é que aprenderam na escola? O que supõem ser uma ditadura? E
    que ditadura de imbecis é essa?
    Podiam ouvir-se estas tiradas dez vezes durante o dia, visando sempre um dos homens presentes, suspeito
    de «pacifismo». Quando se falava de revolução ou de ditadura em frente de Lenine, sobretudo nas sessões
    do Conselho de Comissários do Povo, ou perante os socialistas-revolucionários de esquerda, ou dos
    comunistas hesitantes, ele nunca perdia uma oportunidade para exclamar:
    - Mas onde vedes vós a nossa ditadura? Vá, mostrai-ma! Isto, ditadura? Mas isto não passa duma papa
    sem sal!
    Gostava muito da expressão «papa», tomada no sentido de mistela.
    - Se não formos capazes de fuzilar um sabotador da guarda branca, onde é que está essa grande
    revolução? Mas lede o que esses malandros burgueses escrevem nos seus jornais! Onde é que está a
    ditadura? Não vejo senão verborreia e «papa»...
    Estes propósitos exprimiam o verdadeiro estado de alma de Lenine, mas eram, ao mesmo tempo
    extremamente calculados: conforme o seu método, Lenine implantava nas cabeças a consciência da
    necessidade de medidas excepcionalmente rigorosas para a salvação da revolução.
    A impotência do novo aparelho governamental revelou-se no momento em que os Alemães
    desencadearam a ofensiva.
    Ontem, estávamos ainda solidamente montados - dizia Lenine, em privado - hoje, agarramo-nos à crina do
    cavalo. É para aprendermos! Esta lição deve acabar com a maldita indiferença de verdadeiros Oblomov
    que somos. Põe ordem nos teus assuntos, aplica-te como deve ser na execução das tuas tarefas se não
    queres continuar escravo! Será para nós uma grande lição se... e somente se os Alemães e os Brancos não
    conseguirem derrubar-nos.
    - Diga-me - perguntou-me um dia de chofre Vladimir Ilitch - se os guardas brancos nos matarem, a si e a
    mim, pensa que Bukharine e Sverdlov poderão safar-se?
    - Bah! Talvez não nos matem - respondi, num tom de brincadeira.
    - Com os diabos! Nunca se sabe - disse Lenine desatando a rir. A conversa parou aí.
    Numa das salas de Smolni, o Estado-Maior mantinha-se em sessão. De todas as instituições, era esta a
    menos ordenada. Nunca se conseguia compreender de quem vinham as decisões, quem detinha o
    comando e sobre o quê. Foi então que, pela primeira vez, se pôs, nas suas grandes linhas, a questão dos
    técnicos militares. Possuíamos já alguma experiência neste ponto, adquirida na luta contra o general
    Krasnov (2); entregáramos então o comando das nossas forças ao coronel Muraviev (3) que, por sua vez,
    encarregou o coronel Walden de dirigir as operações em Pulkovo. Muraviev estava constantemente
    acompanhado por quatro marinheiros e um soldado, com ordens de estar alerta e manter sempre a mão
    sobre a coronha do revólver. Foi este o embrião do sistema de comissários do exército. Tal experiência
    teve a sua utilidade relativa quando se criou o Conselho Superior do Exército.
    - Sem militares sérios e experimentados não sairemos jamais deste caos, dizia eu a Lenine após cada uma
    das nossas visitas ao Estado-Maior.
    - Tem razão. Mas se eles nos traírem?
    - Colocaremos um comissário junto de cada um deles.
    - Melhor ainda, colocaremos dois, exclamou Lenine, dois
    que tenham o pulso firme. Não é possível faltarem-nos comunistas que sejam homens de pulso.
    Foi assim que se instituiu o Conselho Superior do Exército. A questão da transferência do governo para
    Moscovo provocou inúmeras fricções. Seria, dizia-se, desertar de Petrogrado, onde tinham sido lançadas
    as bases da Revolução de Outubro. Os operários não o compreenderiam. Smolni tornara-se já sinónimo do
    poder dos Sovietes, e agora propunha-se liquidar Smolni! E diziam-se muitas outras coisas. Lenine ficava
    literalmente fora de si ao replicar a estas considerações:
    - Será possível com semelhantes balelas sentimentais obscurecer o próprio destino da revolução? Se
    subitamente os Alemães se apoderarem de Petrogrado e nos encontrarem lá, a revolução está perdida. Se,
    ao contrário, o governo se encontrar em Moscovo, a queda de Petrogrado não passará de um revés penoso,
    mas não decisivo. Como é possível não verem isto? Como é possível não o compreenderem? E mais
    ainda: ficando em Petrogrado nas condições actuais, aumentamos o perigo, parecemos estar a convidar os
    Alemães a apoderarem-se da capital. Mas se o governo se encontrar em Moscovo, a tentação de tomar
    Petrogrado diminuirá muito: haverá qualquer interesse em tomar uma cidade revolucionária esfaimada, se
    tal ocupação não decidir o destino da Revolução e da Paz? Que historietas são essas que nos contais
    acerca do significado simbólico de Smolni? Smolni é Smolni porque estamos cá. E quando nos
    encontrarmos no Kremlin todo o vosso simbolismo passará connosco para lá.
    Finalmente, a oposição foi quebrada. O governo transferiu-se para Moscovo. Eu fiquei ainda algum tempo
    em Petrogrado, parece-me que na qualidade de presidente do Comité de Guerra Revolucionário da capital.
    A minha chegada a Moscovo encontrei Vladimir Ilitch no Kremlin, no edifício dito do «corpo de
    cavalaria». Aqui não havia menos «papa», isto é, menos desordem e caos do que em Smolni. Vladimir
    Ilitch espicaçava com bonomia os moscovitas, imbuídos dum patriotismo tacanho e, pouco a pouco, passo
    a passo, puxava as rédeas.
    O governo, que se renovava parcialmente com frequência, desenvolvia uma actividade febril na
    publicação de decretos. Neste primeiro período, cada sessão do Conselho dos Comissários do Povo davanos
    a imagem duma grande improvisação legislativa. Era preciso refazer tudo desde o inicio, construir
    tudo de novo. Impossível encontrar «precedentes»; a História não tinha qualquer provisão deste tipo. Era
    até difícil procurar simples informações, por falta de tempo. As questões punham-se apenas pela ordem de
    urgência revolucionária, isto é, segundo a ordem do caos mais inconcebível. Os problemas mais
    importantes misturavam-se de um modo fantástico aos mais insignificantes. As questões práticas de
    segunda ordem conduziam a complexas questões de princípio. Os decretos não concordavam todos uns
    com os outros, muito pelo contrário, e Lenine troçou mais de uma vez, mesmo em público, sobre a falta
    de coordenação da nossa obra legislativa. Mas, finalmente, estas contradições, embora muito graves do
    ponto de vista das necessidades práticas do momento, afogavam-se no trabalho do pensamento
    revolucionário que, estabelecendo os critérios da lei, traçava novos caminhos para um novo mundo de
    relações humanas.
    Será desnecessário afirmar que a direcção de todo este trabalho pertencia a Lenine. Durante cinco ou seis
    horas a fio presidia incansavelmente ao Conselho dos Comissários do Povo - cujas sessões foram, no
    primeiro período, quotidianas - passando de uma questão para outra, dirigindo os debates, limitando
    estritamente o tempo das intervenções, que verificava com um relógio de bolso, substituído mais tarde por
    um cronómetro presidencial.
    Regra geral, as questões punham-se sem exame prévio e eram sempre, como já afirmámos, de extrema
    urgência. Frequentemente, o próprio fundo da questão era ainda ignorado pelos membros do Conselho e
    pelo presidente até ao momento em que se iniciavam os debates, sendo estes sempre muito sucintos, pois
    o relator dispunha apenas de cinco ou dez minutos. Apesar disso, o presidente descobria, às apalpadelas, a
    linha que deveria ser seguida. Quando a assistência era numerosa e entre ela se encontravam numerosos
    técnicos, ou rostos desconhecidos, Vladimir .Ilitch recorria ao seu gesto favorito: com a mão direita posta
    como uma viseira sobre a testa, observava o relator e a assistência por entre os dedos; mirava com um
    olhar penetrante e sagaz, descobrindo em breve tudo aquilo de que necessitava.
    Inscrevia os oradores sobre uma estreita tira de papel, com uma letra minúscula (economia!), consultando
    também o relógio que, de tempos a tempos, aparecia sobre a mesa para lembrar ao orador que era tempo
    de acabar.
    E, ao mesmo tempo, o presidente lançava rapidamente sobre o papel as conclusões e as resoluções, de
    acordo com os motivos que lhe tinham parecido mais significativos durante o debate.
    Por outro lado, para economizar tempo, Lenine enviava habitualmente a estes ou àqueles membros da
    reunião pequenas notas pedindo informações. Estas notas poderiam ter constituído uma vasta e
    interessante documentação epistolar sobre a técnica da legislação soviética. Infelizmente perderam-se, na
    sua maioria, pois a resposta era habitualmente escrita no verso do papel e o conjunto imediatamente
    destruído de forma meticulosa pelo presidente.
    Em determinado momento Lenine procedia à leitura do seu projecto de resolução, concebido sempre num
    estilo premeditadamente frio, duma angulosidade pedagógica (para sublinhar, realçar, impedir a confusão
    dos factos) após o que os debates cessavam ou entravam na via das propostas práticas e dos
    esclarecimentos. O projecto de Lenine tornava-se sempre a base do decreto.
    (Para dirigir o trabalho era necessário, além de outras qualidades indispensáveis, uma imensa imaginação
    criadora.
    Esta imagem poderá parecer à primeira vista inadequada, mas exprime a própria verdade. A imaginação
    pode ser de natureza variada: ela é tão necessária ao engenheiro construtor como ao romancista
    impetuoso. Um dos aspectos mais preciosos da imaginação reside na faculdade de representar as pessoas,
    as coisas e os fenómenos, tais como são na realidade, mesmo sem os ter visto. Utilizar toda a experiência
    que se tem da vida e os princípios teóricos; combinar as observações e as informações dispersas,
    apanhadas no ar; elaborá-las, uni-las num todo, completá-las segundo certas leis de correspondência ainda
    não formuladas e reconstituir assim, em toda a sua realidade concreta, um domínio determinado da
    existência humana - eis a imaginação de que precisa o legislador, o administrador, o chefe.
    Sobretudo numa época de revolução. Uma parte extremamente
    importante da força de Lenine encontrava-se na sua imaginação realista.
    A perpétua tensão de que se encontrava possuído para
    atingir um determinado fim era sempre concreta; aliás, de outro modo, não teria constituído a expressão
    duma vontade dirigida e definida muito nitidamente. Parece que o próprio Lenine terá exprimido pela
    primeira vez no Iskra a ideia de que, perante a complexidade ,do encadeamento dos actos políticos, é
    necessário saber discernir, num dado momento, qual o elo principal, e apoderarmo-nos dele para imprimir
    ao movimento de toda a cadeia a direcção desejada.
    Mais tarde, Lenine retomou várias vezes esta ideia, empregando frequentemente a imagem da cadeia e do
    elo.
    Dir-se-ia que nele este método passou da esfera do consciente para a do subconsciente, tornando-se de
    certo modo uma segunda natureza.
    Nos momentos mais críticos, quando se tratava de uma reviravolta táctica mais ou menos arriscada, que
    envolvia particular responsabilidade, Lenine parecia afastar, varrer tudo o que era acessório, secundário,
    tudo o que podia ser diferido.
    Isto não significa que se contentasse em considerar um problema central nos seus traços essenciais,
    desinteressando-se dos pormenores. Ao contrário, quando considerava uma tarefa urgente, punha o
    problema em toda a sua realidade concreta, abordando-o de diversos lados, meditando nos pormenores,
    por vezes até em pormenores de terceira ordem, procurando o momento de imprimir novos impulsos,
    gravando os factos na memória, provocando a acção, sublinhando e verificando os valores, exercendo
    uma pressão contínua. Tudo isto estava, porém, subordinado à importância do «elo», considerado por ele
    como o elemento mais eficaz, o único elemento decisivo em determinado momento.
    Assim, não rejeitava apenas tudo o que directa ou indirectamente estava em contradição com a tarefa
    central; afastava também o que podia simplesmente distrair a atenção, enfraquecer a energia. Nos
    momentos mais críticos tornava-se como que surdo e mudo relativamente a tudo o que ultrapassava os
    limites do problema que o absorvia. O mero facto de levantar nesse momento questões que podiam
    parecer indiferentes, neutras, dava-lhe uma espécie de sensação de perigo de que se afastava
    instintivamente.
    Ultrapassada sem problemas a etapa crítica, Lenine exclamava com frequência a propósito deste ou
    daquele assunto:
    - Mas nós esquecemo-nos completamente de fazer isto...
    - Nós deixámos escapar aquela ocasião, ao pensarmos apenas nas questões principais... Acontecia que lhe
    respondessem:
    - Essa questão foi posta, essa proposta foi feita, porém você não as quis ouvir!
    - Impossível, respondia - não me lembro de nada! E ao mesmo tempo que falava, desatava a rir
    maliciosamente, um pouco «confuso», fazendo com a mão um gesto que lhe era habitual, de cima para
    baixo, e que significava: «Não se pode fazer tudo» Nele, esse defeito não era aliás senão o reverso da
    aptidão (levada ao seu mais alto grau) de reunir todas essas forças interiores, aptidão que fez dele
    precisamente um dos maiores revolucionários da História.
    Nas teses de Lenine sobre a paz, redigidas no início de Janeiro de l9l8, menciona-se a necessidade «de um
    certo intervalo de tempo, de pelo menos alguns meses, para o sucesso do socialismo na Rússia.
    Estas palavras parecem-nos hoje completamente ininteligíveis: não será um lapso, não se tratará, na
    realidade de alguns
    anos ou de algumas dezenas de anos?
    Não, não se trata de um erro de escrita. Provavelmente, é possível deparar com outras declarações
    análogas de Lenine. Recordo-me que, em Smolni, durante o primeiro período, Lenine repetia
    invariavelmente, nas sessões do Conselho dos Comissários do Povo, que o socialismo seria instaurado no
    prazo de seis meses e que nos tornaríamos um dos Estados mais poderosos. Os socialistas-revolucionários
    de esquerda, e não apenas eles, levantavam a cabeça com um ar surpreendido e interrogador, olhavam uns
    para os outros, mas calavam-se. Lenine aplicava assim o seu sistema de persuasão. Habituava todos os
    colaboradores a considerar, a partir de então, todas as questões do ponto de vista da construção do
    socialismo, não segundo a perspectiva do «objectivo final» mas segundo a perspectiva do fim imediato,
    das tarefas do dia e ,do dia seguinte.
    Recorria, nesta brusca transição, ao seu método tão particular, tão singular, de dobrar o junco primeiro
    num sentido e depois no outro: ontem dissera-se que o socialismo constituía o «objectivo final», hoje
    deveria pensar-se, falar e agir de forma a assegurar o triunfo do socialismo dentro de alguns meses.
    Tratar-se-ia apenas de um processo pedagógico? Não somente. Á perseverança pedagógica de Lenine será
    preciso acrescentar o seu poderoso idealismo, a sua vontade concentrada que, na. viragem brusca de duas
    épocas, encurtava as etapas e abreviava os prazos.
    Lenine acreditava naquilo que dizia.
    E este prazo fantástico de seis meses, atribuído ao socialismo, era função tanto do espírito de Lenine
    como do seu modo realista de abordar cada problema da actualidade. Uma confiança profunda e
    irredutível nas poderosas capacidades do desenvolvimento humano, que se pode e deve pagar à custa de
    sabe-se lá que sacrifícios e sofrimentos, constituiu sempre a mola real do espírito do chefe.
    Nas condições mais penosas, durante os trabalhos quotidianos mais extenuantes, através das dificuldades
    de abastecimento e de todas as outras tarefas, no circuito de fogo da guerra civil, Lenine trabalhava com
    uma aplicação escrupulosa na elaboração da Constituição soviética, procurando o equilíbrio entre as
    necessidades práticas de segunda ou terceira ordem no mecanismo de estado e as tarefas essenciais,
    indicadas pelos princípios da ditadura proletária num país de camponeses.
    A Comissão da Constituição decidiu, não se sabe porquê, rever a «Declaração dos Direitos dos
    Trabalhadores», elaborada por Lenine, a fim de a «ajustar» ao texto da Constituição. Quando cheguei a
    Moscovo, vindo da frente, recebi, enviado pela Comissão, entre outros documentos, o projecto revisto ,da
    «Declaração», ou, pelo menos, certas partes desse projecto.
    Tomei conhecimento dos documentos no gabinete de Lenine, na sua presença e na de Sverdlov.
    Preparava-se então o V Congresso dos Sovietes.
    - A propósito, porque é que se está a fazer a revisão desta «Declaração»? perguntei a Sverdlov, que ,
    dirigia os trabalhos da Comissão constitucional.
    Vladimir Ilitch levantou a cabeça, interessado.
    - Pois bem, eis a razão: a Comissão achou que a «Declaração» não concordava em todos os pontos com a
    Constituição e que certas fórmulas careciam de precisão, respondeu Iakov Mikhailovitch.
    - Na minha opinião está errado, repliquei. A «Declaração» já tinha sido adoptada, tornou-se um .
    documento histórico; por que motivo é que a querem rever?
    - Tem toda a razão, retorquiu Vladimir Ilitch, e na minha opinião fizeram mal em meterem-se nisso. Que
    esta criança desgrenhada e tatebitate viva tal como é; será, por muito que tentem o contrário, filha da
    revolução. Duvido que fique melhor ao passar pelas mãos dum cabeleireiro.
    Sverdlov tentou primeiro, «por dever», defender a decisão da sua Comissão; em breve, porém, concordava
    connosco. Compreendi que Vladimir Ilitch, forçado como fora mais do que uma vez a combater estas ou
    aquelas propostas da Comissão, não quisera travar luta a propósito do texto da «Declaração dos Direitos»
    - de que era autor. No entanto, ficara encantado com o apoio de terceiros surgido no último momento.
    Concordámos os três em não modificar a «Declaração», e o bébé maravilhoso, de grenha eriçada, foi
    dispensado de se submeter aos cuidados do cabeleireiro...
    O estudo da evolução da legislação soviética, das principais etapas que a marcam, das reviravoltas que
    deu com a própria revolução, bem como das relações entre classes nela expressas, constitui uma tarefa da
    mais elevada importância, pois as deduções que se impõem podem, e devem, ter o valor de ensinamentos
    práticos de primeira ordem para o proletariado dos outros países.
    A recolha dos decretos soviéticos constitui de certo modo uma parte, que não é das menos importantes,
    das obras completas de Lenine.
    Notas: Segunda Parte – Capítulo V
    (1) O camarada Miliutine contou este episódio duma forma um pouco diversa; porém, a minha redacção
    parece-me mais correcta. Seja como for, as palavras de Lenine: <pronunciadas quando lhe propus que denominasse o Governo: Conselho dos Comissários do Povo.
    (retornar ao texto)
    (2) O general cossaco Krasnov, monárquico, marchou com Kerenski, em 26 de Outubro, sobre
    Petrogrado. Derrotado e feito prisioneiro sob palavra, escapou-se e tomou parte activa na guerra civil, na
    região do Don. (N. T.) (retornar ao texto)
    (3) O coronel Muraviev, simpatizante do partido socialista-revolucionário, dirigiu as primeiras operações
    dos guardas vermelhos. Perante a contra-revolução socialista-revolucionária do Ural, tentou passar-se para
    o inimigo; porém, tendo sido desmascarado, deu um tiro nos miolos, em l9l8. (N. T.) (retornar ao texto)
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo VI - Os Checoslovacos e os Socialistas Revolucionários de Esquerda
    A Primavera de l9l8 foi muito árdua. Por vezes, tinha-se o sentimento de que tudo se perdia,
    escorregando, disseminando-se, não sabíamos onde nos agarrar, onde nos apoiar. Por um lado, era por
    demais evidente que o país teria caído numa lenta e longa decomposição se não tivesse .eclodido a
    Revolução de Outubro. Mas, por outro, começava-se involuntariamente a perguntar, na Primavera de l9l8,
    se este país exausto, arruinado, desesperado, possuiria a seiva vital bastante para sustentar o novo regime.
    Não havia abastecimentos. Nem exército. O aparelho governamental começava apenas a constituir-se. Por
    todo o lado as conjuras supuravam como úlceras. A divisão composta por Checoslovacos mantinha-se no
    nosso território como uma potência independente do Estado. Não podíamos opor-lhe nada, ou quase nada.
    Durante um desses momentos terríveis de l9l8, Vladimir Ilitch disse-me a certa altura:
    - Recebi hoje uma delegação de operários. E eis que um deles, ao ouvir certas palavras que proferi (1),
    exclama: «Vê-se bem que também você, camarada Lenine, toma o partido dos capitalistas... Sabe, era a
    primeira vez que me interpelavam assim. Confesso que fiquei chocado e que de início não soube o que
    responder. Se este operário não estava animado de más intenções, se não era um menchevique, eis aqui
    um sintoma bem alarmante.
    Ao contar-me este incidente, Lenine pareceu-me muito mais magoado e atormentado do que mais tarde,
    quando recebemos das frentes de guerra a notícia sinistra da queda de Kazan e do perigo iminente que
    pairava sobre Petrogrado. E é compreensível: perdidas Kazan e Petrogrado, elas poderiam ser
    reconquistadas, enquanto que a confiança da classe operária constituía o verdadeiro capital do Partido.
    - Tenho a impressão, disse então a Vladimir Ilitch, que o país, ao sair destas doenças muito graves, precisa
    dum alimento mais abundante e substancial, de calma e de cuidados constantes para terminar a
    convalescença e reconquistar a saúde; bastaria porém um piparote para o deitar completamente por terra.
    - É essa também a minha impressão, respondeu Vladimir Ilitch. Tem uma terrível anemia! Neste
    momento, o mais pequeno choque pode ser perigoso.
    Todavia, a história dos Checoslovacos ameaçava ser precisamente o tal choque fatal. A divisão dos
    Checoslovacos constituía como que um tumor na carne mole da Rússia, situado nas nossas províncias de
    Sudoeste; não se lhe opunha nenhuma resistência; ao contrário, engrossava com os socialistasrevolucionários
    e com políticos ainda mais perigosos, todos do partido branco.
    É verdade que os bolcheviques detinham o poder em todo o lado; mas a inconsistência mórbida da
    província era ainda muito grande. E isto nada tem de extraordinário. A Revolução de Outubro apenas se
    fizera realmente em Petrogrado e em Moscovo. Na maioria das cidades de província tivera-se
    conhecimento de Outubro, como de Fevereiro, através do telégrafo. A ascensão de uns e o retrocesso dos
    outros tinham tomado por modelo o que sucedera nas capitais. O abastardamento do meio social e a falta
    de resistência por parte dos senhores da véspera tinham como consequência ,a própria moleza da
    revolução.
    A entrada em cena dos batalhões checoslovacos modificou a situação, primeiro com desvantagem para
    nós, e, finalmente, em nosso proveito. Os Brancos encontravam uma base militar, um eixo de
    cristalização. Em resposta, começou a verdadeira cristalização revolucionária dos Vermelhos. Pode
    afirmar-se que, graças à aparição dos Checoslovacos e apenas graças a ela, a região do Volga fez
    finalmente a sua Revolução de Outubro. Isto não sucedeu, porém, num dia.
    A 3 de Julho, Vladimir Ilitch telefonou-me para o Comissariado da Guerra.
    - Sabe o que aconteceu? perguntou-me com voz abafada, evidenciando uma grande emoção.
    - Não, o que foi?
    - Os socialistas-revolucionários de esquerda lançaram uma bomba sobre Mirbach(2). Diz-se que está
    gravemente ferido. Venha depressa ao Kremlin, precisamos reunir o conselho.
    Alguns instantes mais tarde, encontrava-me no gabinete de Lenine. Comunicou-me os factos enquanto ia
    perguntando mais pormenores pelo telefone.
    - Bonito! exclamei, tentando digerir esta notícia muito pouco comum. Não poderemos queixar-nos da
    monotonia da existência.
    - S...sim! respondeu Lenine com um riso inquieto. Ei-lo, o rabiar do monstro pequeno-burguês!...
    E a ironia com que pronunciava estas palavras traduzia bastante bem o que Engels exprimira ao falar do
    rabiat gewordene Kleinburger (da «raiva súbita do pequeno-burguês»).
    Houve, ao mesmo tempo, rápidas conversas telefónicas - perguntas curtas, curtas respostas - com o
    Comissariado dos Assuntos Estrangeiros, com a Tcheka e outras instituições. Como sempre, nos
    momentos críticos, o pensamento de Lenine trabalhava simultaneamente em dois planos: enquanto o
    marxista enriquecia a sua experiência histórica, observando com interesse a última «contorsão», a última
    «flutuação» do radicalismo pequeno-burguês, o chefe da revolução esticava infatigavelmente os fios do
    seu inquérito e indicava ,as primeiras medidas a serem tomadas. Anunciava-se um motim nas tropas
    componentes da Tcheka.
    - Oxalá, esta questão dos socialistas-revolucionários não venha a ser a casca de banana que nos fará
    cair!...
    - Estava justamente a pensar nisso, respondeu Lenine. O destino do pequeno-burguês indeciso e impulsivo
    não se limitará a servir da casca de banana que os guardas brancos nos vão atirar aos pés?... É preciso
    neste momento exercer a nossa influência sobre a redacção do relatório que os Alemães vão expedir para
    Berlim. O motivo da intervenção militar será mais do que suficiente, sobretudo se pensarmos que Mirbach
    denunciou, sem dúvida, a nossa fraqueza, indicando as consequências possíveis do mínimo abalo...
    Sverdlov chegou em breve, sempre igual a si próprio.
    - Então, disse-me, estendendo a mão com ar trocista, vamos ser forçados a transformar o Conselho de
    Comissários num novo Comité de Guerra Revolucionário...
    Lenine continuava entretanto a recolher informações. Não me recordo se foi então ou um pouco mais
    tarde que soubemos da morte de Mirbach. Era preciso irmos à embaixada apresentar as nossas
    «condolências». Foi decidido que iriam Lenine, Sverdlov e também Tchitcherine, creio. Ficaram na
    dúvida se eu deveria acompanhá-los. Após uma breve troca de impressões fui dispensado deste frete.
    - Como deveremos exprimir-nos? observou Vladimir Ilitch, abanando a cabeça. Falei disso a Radek. Era
    minha intenção dizer «Mitleid» (condolências); mas parece que é preciso dizer: «Beileid»(3).
    Riu um pouco, muito pouco e muito baixo, vestiu-se e disse a Sverdlov num tom firme:
    - Vamos! E o seu rosto transformou-se, tornando-se de um cinzento cor de pedra. Era difícil para Ilitch ter
    de fazer esta visita à embaixada dos Hohenzolern, ter de apresentar condolências pela morte dum conde
    Mirbach. Foi provavelmente uma das emoções mais penosas, um dos momentos mais difíceis de toda a
    sua vida.
    É em ocasiões destas que se julgam as pessoas. Sverdlov foi verdadeiramente incomparável: seguro de si,
    corajoso, firme, inventivo; um bolchevique da melhor espécie. Lenine acabou por descobrir e apreciar
    Sverdlov precisamente nestes meses difíceis. Quantas vezes, ao telefonar a Sverdlov ,para lhe pedir que
    tomasse esta ou aquela medida urgente, o ouvia responder: «Já», o que significava que a medida já tinha
    sido tomada, Divertíamo-nos muitas vezes acerca deste facto, e dizíamos: «Por parte de Sverdlov, não há
    dúvida que já é: «já».
    - E, contudo, no início, não achávamos dever admiti-lo no Comité Central, disse um dia Lenine; isto
    mostra a que ,ponto desconhecíamos o homem! Tivemos sobre este assunto famosas disputas, porém o
    Congresso, lá em baixo, corrigiu-nos e não fez senão bem.(4)
    A amotinação dos socialistas-revolucionários de esquerda tinha-nos privado duma aliança política; mas,
    ao fim e ao cabo, em lugar de nos enfraquecer, fortaleceu-nos. O nosso Partido uniu-se mais. Nas
    instituições, no exército, passou a compreender-se melhor a importância das células comunistas. O
    governo seguiu a sua vida de um modo mais firme.
    A revolta dos Checoslovacos teve, sem dúvida alguma, o mesmo efeito: fez sair o Partido do abatimento
    em que se encontrava após a paz de Brest-Litovsk. Entrou-se então no período em que se sucederam as
    mobilizações no seio do Partido, mobilizações essas dirigidas para a frente oriental. O primeiro grupo de
    que ainda faziam parte os socialistas-revolucionários de esquerda foi enviado por Lenine e por mim.
    Desenhava-se já, embora de início bastante vagamente, a organização das futuras secções políticas.
    Continuávamos, entretanto, a receber más notícias do Volga. A traição de Muraviev e o levantamento dos
    socialistas-revolucionários de esquerda tinham lançado temporariamente a frente do Leste de novo na
    desordem. O perigo aumentou imediatamente. Foi então que se iniciou uma transformação radical.
    - É necessário mobilizar tudo e todos e enviá-los para a frente, dizia Lenine. É preciso destacar do corpo
    do exército tudo o que está mais ou menos apto a bater-se e enviá-lo para o Volga.
    Devo lembrar que se chamava «corpo» a um estreito cordão de tropas estacionado no Oeste, em frente da
    região ocupada pelos Alemães.
    - E os Alemães? perguntavam a Lenine.
    - Os Alemães não se mexerão; têm mais que fazer; aliás eles próprios estão interessados em que acabemos
    com os Checoslovacos.
    Este plano foi adoptado e foi assim que se constituiu o grosso do futuro V Exército. Decidiu-se então que
    eu partisse para o Volga. Tratei da formação de um comboio, o que nessa época não era assim tão fácil. O
    próprio Vladimir Ilitch entrava em todas as diligências, enviava-me bilhetes, telefonava constantemente.
    - Tem um automóvel bastante sólido? Vá buscar um à garagem do Kremlin.
    E meia hora mais tarde:
    - Você leva um avião? É preciso levar um, pode ser útil.
    - O exército tem aviões, respondia, servir-me-ei de um se for necessário.
    E, de novo, meia hora mais tarde:
    - Continuo a achar que deve levar um avião no comboio; nunca se sabe o que ,pode acontecer!
    E assim por diante.
    É conhecido o modo como os nossos regimentos e destacamentos formados à pressa, principalmente
    daquilo que restava do antigo exército disperso, debandaram de forma assaz lamentável logo no primeiro
    recontro com os Checoslovacos.
    - Precisamos de uma forte cintura de defesa formada por comunistas e, em geral, de homens combativos,
    para remediar esta terrível instabilidade, dizia eu a Lenine antes de partir. É necessário forçar os homens a
    combater. Se estamos à espera que o mujique acabe de acordar, será tarde demais.
    - É verdade, respondia Lenine, mas temo que a própria cintura de defesa se rompa. 0 homem russo é
    demasiado bom; não é capaz de tomar resolutamente medidas de terror revolucionário. Contudo, é
    indispensável experimentar.
    Encontrava-me em Sviajsk quando tomei conhecimento do atentado contra Lenine e do assassinato de
    Uritski. Nesses dias trágicos a revolução atravessava uma crise interior. Libertava-se da sua «bondade». O
    gládio do Partido recebia enfim a sua têmpera. Afirmava-se o espírito de resolução e, quando era preciso,
    davam-se mostras de um rigor implacável. Na frente, as secções políticas, com os destacamentos de
    defesa e os tribunais, forneciam ao corpo mole do jovem exército a sua ossatura. Em breve se evidenciou
    essa modificação. Kazan e Simbirsk foram reconquistadas. Em Kazan recebi de Lenine, que começava a
    curar-se do seu ferimento, um telegrama de felicitações por altura das primeiras vitórias obtidas no Volga.
    Pouco tempo depois fiz uma breve estadia em Moscovo; dirigi-me com Sverdlov a Gorki, a casa de
    Vladimir Ilitch, cuja saúde melhorava rapidamente, mas que não retomara ainda o seu trabalho em
    Moscovo.
    Encontrámo-lo de excelente humor. Pediu-nos imensos pormenores sobre a organização do exército, as
    suas disposições, o papel desempenhado pelos comunistas, o aperfeiçoamento da disciplina. Repetia
    alegremente:
    - Ora, está bem, está perfeito. A consolidação do exército vai fazer-se sentir em todo o país: teremos mais
    disciplina, Sentiremos melhor as responsabilidades...
    Com efeito, a partir dos meses do Outono, a transformação foi grande. Já nada restava dessa mole
    impotência que caracterizara a Primavera. Algo se tinha mudado, fortificado, e é notável que, desta vez, a
    revolução tivesse sido salva, não devido a novas tréguas, mas ao contrário devido ao mais grave dos
    perigos: esse perigo fez brotar no proletariado as fontes secretas da energia revolucionária. Quando
    Sverdlov e eu tomámos lugar no automóvel, Lenine, radioso e cheio de vida, encontrava-se à varanda.
    Apenas o tinha visto tão contente em Smolni, a 25 de Outubro, quando tomara conhecimento dos
    primeiros sucessos militares da insurreição. Procedemos à liquidação política dos socialistasrevolucionários
    de esquerda. Limpámos o Volga. Lenine recompôs-se dos ,seus ferimentos. A revolução
    crescia em força e em coragem.
    Notas: Segunda Parte – Capítulo VI
    (1) Lamento imenso não me lembrar o motivo da vinda desta delegação. (retornar ao texto)
    (2) Mirbach era o embaixador da Alemanha em Moscovo. (N. T.) (retornar ao texto)
    (3) Esta palavra tem o mesmo sentido, embora o seu cambiante seja mais reservado. (N. T.) (retornar ao
    texto)
    (4) A propósito deste assunto: Sverdlov é constantemente considerado como o primeiro presidente do
    Comité Central Executivo a partir de Outubro. Isso é inexacto. O primeiro presidente foi, embora por
    pouco tempo, o camarada Kamenev Sverdlov substituiu-o, por iniciativa de Lenine numa altura em que,
    no interior do Partido, se agravava a luta travada devido a certas tentativas feitas para se chegar a um
    entendimento com os partidos socialistas. Nas notas do tomo XIV das Obras dia Lenine afirma-se que a
    substituição de Kamenev por Sverdlov foi devida à partida do primeiro para Brest-Litovsk. Esta
    explicação não corresponde aos factos. A nova eleição deveu-se, como acima se afirmou, ao agravamento
    da luta no interior do Partido. Recordo-me tanto mais claramente, quanto fui encarregado pelo Comité
    Central de propor ao grupo do Comité Executivo a eleição de Sverdlov para Presidente. (retornar ao texto)
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo VII - Lenine na tribuna
    A partir de Outubro, os fotógrafos «captaram» Lenine muitas vezes; foi igualmente «filmado». A sua voz
    foi gravada em discos de fonógrafo. Os seus discursos estenografados e impressos. Possuíamos assim
    todos os elementos sobre Vladimir Ilitch. Mas eram só elementos. A personalidade viva apenas se
    encontra na combinação sempre dinâmica desses elementos que se não presta a repetição.
    Quando procuro imaginar, despertar em mim a primeira impressão que produzia Lenine na tribuna, vejo
    um homem de constituição sólida, um corpo de uma grande maleabilidade; ouço uma voz igual, fluente,
    muito rápida, um pouco gutural, que não se detém, cujo discurso não tem ou quase não tem pausas, nem,
    de início, uma entoação particular.
    Habitualmente, as primeiras frases exprimem ideias gerais; o tom é o de um homem que apalpa o
    auditório; o corpo do orador parece não ter ainda encontrado o equilíbrio; o gesto carece de precisão; o
    olhar está absorvido pelo pensamento interior; o rosto é um tanto ou quanto tristonho e como que
    contrariado; a ideia procura o meio de atingir a assistência.
    Este período inicial dura mais ou menos tempo segundo a composição do auditório, o assunto versado, o
    estado de espírito do orador.
    Mas eis que entra na linha, engrena. O tema começa desenhar-se. O orador inclina para a frente a parte
    superior do corpo, enfiando os polegares nas cavas do colete. Imediatamente ao fazer este duplo gesto,
    erguem-se a cabeça e os braços. A cabeça não parece assim muito grande neste corpo baixo, mas
    fortemente constituído, equilibrado, rítmico. O que parece enorme é a testa, são as saliências desnudadas
    do crânio. Os braços são muito móveis, mas sem nervosismo, sem movimentos inúteis. O pulso é largo,
    os dedos curtos, a mão plebeia, vigorosa. Encontram-se nesta mão os traços da bonomia corajosa
    repetidos no conjunto da sua estrutura e que inspiram confiança.
    Todavia, para que seja possível apercebermo-nos deste facto, é preciso que o orador tenha tido tempo de
    se iluminar por dentro, o que sucede quando adivinhou a malícia do adversário, ou quando conseguiu
    fazê-lo cair na armadilha.
    Então, por debaixo da forte protuberância da testa e do crânio, destacam-se os olhos de Lenine, de que
    algo restou numa fotografia bastante feliz - datando de l9l9.
    Ao surpreender este olhar, até o ouvinte mais indiferente ficava de sobreaviso esperando a continuação.
    Os malares angulosos iluminavam-se e adoçavam nestes momentos com uma indulgência sagaz, sob a
    qual se adivinhava um grande conhecimento dos homens, das relações sociais, da situação, conhecimento
    que ia até ao âmago das coisas. A parte inferior do rosto, de barba arruivada, já um pouco grisalha, ficava
    de certo modo na sombra. A voz adoçava-se, tornava-se muito suave e, por momentos, maliciosamente
    insinuante.
    Mas eis que o orador introduz no seu discurso a objecção imaginada por um contraditor, ou qualquer frase
    mal intencionada extraída de um artigo do inimigo. Antes mesmo de ter dissecado o pensamento do
    adversário, faz-vos compreender que a objecção é infundada, superficial, falsa. Retirando os polegares das
    cavas do colete, lança o corpo ligeiramente para trás, recua com passos miúdos como que para ganhar
    espaço e tomar lanço e, umas vezes ironicamente, outras com um ar desesperado, encolhe os ombros
    maciços e abre os braços, as mãos, afastando os polegares de um modo expressivo.
    Condena o adversário, torna-o alvo de troça ou crucifica-o - conforme o homem de que se trata e
    conforme a ocasião - antes mesmo de o ter refutado.
    O interlocutor fica prevenido, fica a saber que espécie de prova deve esperar e em que sentido deve
    preparar o seu pensamento.
    Inicia-se seguidamente a ofensiva lógica. A mão esquerda volta a colocar-se quer na cava do colete, quer
    mais frequente- mente no bolso da calça. A direita segue o movimento da exposição, marcando-lhe o
    ritmo. Nos momentos em que tal se torna necessário, a esquerda vem ajudar a direita. O orador avança
    sobre o auditório, atinge o bordo do estrado, inclina-se para a frente e, com movimentos curvilíneos dos
    braços, trabalha a sua própria matéria verbal. Isto significa ter Lenine chegado à expressão do pensamento
    central, ao ponto essencial de todo o seu discurso. Se no auditório se encontram adversários, levantam-se
    de vez em quando exclamações hostis e críticas contra o orador. Em nove casos sobre dez as interrupções
    ficam sem resposta. O orador dirá o que tem a dizer àqueles a que julga ser útil dirigir-se e do modo que
    lhe parece necessário. Não lhe agrada fazer desvios para replicar a um ou a outro. As saídas rápidas, no
    decorrer do discurso, não são produto do seu pensamento concentrado. Após as interrupções hostis,
    apenas a voz se torna mais áspera, o discurso mais compacto, mais apressado, o pensamento mais agudo,
    o gesto mais brusco.
    Não utiliza a exclamação de um adversário senão no caso de ela responder ao desenvolvimento geral do
    seu pensamento, de poder ajudá-lo a atingir mais depressa a dedução necessária. Mas então as suas
    réplicas são absolutamente imprevistas pela simplicidade impressionante e de imediato destruidora. Põe a
    descoberto uma situação, nos casos em que, pelo contrário, se esperava que a mascarasse.
    Foi o que sucedeu mais do que uma vez aos mencheviques no primeiro período da revolução, quando
    acusavam o bolchevismo de violar a democracia e essas acusações mantinham ainda toda a sua frescura.
    «Os nossos jornais foram suprimidos! - Pois claro, mas ainda o não foram todos, infelizmente. Em breve
    os suprimiremos. (Grandes aplausos). A ditadura do proletariado cortará a raiz desta propaganda e evitará
    esse vergonhoso tráfico do ópio burguês. (Grandes aplausos)»
    O orador endireitou-se. Tem as mãos nos bolsos. Não dá qualquer aparência de pose e a sua voz não tem
    modulações oratórias; em compensação, nota-se-lhe em todo o corpo, na atitude da cabeça... nos lábios
    cerrados, nos malares, no timbre imperceptivelmente rouco da voz, uma inquebrantável segurança na
    justeza dos seus actos, na justiça da sua causa. «Se quereis lutar, lutemos, mas como deve ser.»
    Quando o orador ataca já não o inimigo mas os seus, isso nota-se tanto no tom calmo ,no gesto. O ataque
    mais furioso mantém, nesse caso, o carácter de um processo para «chamar à razão» as pessoas. Por vezes,
    a voz do orador pára, quebra-se numa nota alta: isto produz-se quando denuncia com violência algum dos
    seus, quando quer envergonhá-lo, quando demonstra que o opositor não compreende absolutamente nada
    do assunto e que foi incapaz de apresentar «o mínimo» motivo, de encontrar «o mais pequeno»
    fundamento para as suas objecções. Nestas expressões «mínimo» e «mais pequeno» a voz chega, por
    vezes, a atingir o falsete e é então que se quebra no ar; chegada aí, a tirada mais colérica toma subitamente
    um tom de bonomia.
    O orador meditou antecipadamente a forma de levar a sua ideia até ao fim, até à última dedução prática; a
    ideia sim, mas não o modo de a expor, não a forma, com a excepção porém de algumas expressões, de
    algumas «palavras» particularmente concisas, precisas, saborosas, que entram seguidamente na vida
    política do Partido e do país como moeda sonante que circula por todo o lado. A construção das frases é
    habitualmente pesada, carregada; uma vem ligar-se, sobrepor-se à outra, ou penetrar nela profundamente.
    Para os estenógrafos, este género de construção constitui uma experiência penosa que, em seguida, o não
    é menos para os redactores. Mas, por entre estas frases maciças, por entre o pensamento tenso e
    autoritário, abre-se vigorosamente um caminho seguro.
    Será no entanto verdade que aquele que fala é um marxista profundamente instruído, um teórico ,de
    consciências económicas, um homem duma imensa erudição? Dir-se-ia, julgar-se-ia, pelo menos em
    certos momentos, que, ao contrário, se está em presença de um extraordinário autodidacta que conseguiu
    sozinho, através das suas faculdades naturais, compreender todas estas coisas, que as meteu todas no
    cérebro, sem qualquer aprendizagem científica, sem qualquer terminologia rigorosa, expondo à sua
    maneira tudo o que sabe. De onde deriva isto? Do facto do orador, após ter meditado na questão por sua
    própria conta, voltar a reflectir sobre ela colocando-se no ponto de vista das massas, aplicando ao seu
    pensamento a experiência das multidões, libertando completamente a sua exposição de toda a estrutura
    teórica que lhe servira para elaborar o discurso.
    No entanto, por vezes, o orador sobe de um modo precipitado a escada das suas ideias, passando por cima
    de alguns degraus: procede assim quando a conclusão que pretende atingir lhe parece já demasiado clara,
    demasiado evidente, logo que se torna na prática por demais urgente chegar lá; quando é necessário
    conduzir os ouvintes a essa conclusão o mais depressa possível.
    Mas eis que sente não poderem segui-lo, que a ligação entre ele e o auditório abranda. Corrige-se
    imediatamente, volta para trás e recomeça a sua ascenção, mas, desta vez, com um ritmo mais calmo,
    mais medido. A própria voz se modifica, já não se sente o excesso de intensidade do início, envolve-se de
    cambiantes persuasivos.
    Este retorno, este movimento de vai-e-vem prejudica, como é evidente, a construção do discurso. Mas farse-
    á um discurso pelo simples prazer da bela construção? Haverá necessidade, num discurso, duma lógica
    diferente ,daquela que irá determinar a acção?
    E quando o orador chega de novo à sua conclusão, agora acompanhado de todos os auditores, não tendo
    abandonado ninguém pelo caminho, tem-se na sala como que a sensação física do seu sucesso,
    experimenta-se a alegria reconhecida que marca a completa satisfação do pensamento colectivo.
    Nada mais resta do que sublinhar duas ou três vezes para indicar claramente a conclusão, para lhe atribuir
    vigor, para lhe fornecer uma expressão simples, brilhante, imaginativa, para a imprimir nas memórias;
    seguidamente, é possível conceder a si próprio e aos outros uma pausa para retomar o fôlego; graceja-se,
    ri-se, entretanto o pensamento colectivo assimila ainda melhor a aquisição que acabou de fazer.
    O humor oratório de Lenine é tão simples como os outros processos utilizados, se é que se pode falar de
    processos. Porém, não será possível ,encontrar nos seus discursos aquilo a que se chama «espírito» e
    menos ainda «piadas»; as suas graças são saborosas, inteligíveis para as massas, populares na verdadeira
    acepção ,da palavra. Se as circunstâncias políticas não inspiram uma inquietação particular, se o auditório
    se compõe, na sua maioria, de «fiéis», não repugna ao orador uma certa «brincadeira». O auditório ouve
    com prazer essas facécias maliciosamente ingénuas, esses «ataques» amavelmente impiedosos; percebe-se
    que não se trata apenas de proferir palavras e de fazer rir, mas sim que tudo isso conduz ao mesmo
    objectivo.
    Quando o orador recorre à brincadeira, a parte inferior do rosto torna-se mais saliente, sobretudo a boca,
    cujo riso é contagioso. As rugas da testa e do crânio parecem esbater-se; o olhar deixa de perscrutar e
    ilumina-se de contentamento; acentua-se a pronúncia gutural; a tensão vigorosa do pensamento másculo
    amolece com bom humor e risonha bonomia.
    Nos discursos de Lenine, como em todas as suas tarefas, a característica que se manifesta essencialmente
    é a tensão dirigida para o objectivo. O orador não se preocupa em construir uma arenga; procura apenas
    conduzir a uma conclusão que apele aos actos.
    Aborda os auditores de diversas maneiras; explica-lhes os factos, procura convencê-los, vitupera, brinca,
    persuade de novo, explica mais uma vez. O que faz a unidade do seu discurso não é um plano
    previamente estabelecido, é um objectivo prático, nitidamente definido, rigorosamente marcado para o
    momento presente, é uma ideia cujo princípio deve entrar e alojar-se no espírito do auditório.
    O humor de Lenine subordina-se a este fim essencial. As suas graças são utilitárias. A menor «expressão»
    picante tem um destino prático: é preciso castigar estes, necessário refrear aqueles. Entram então em jogo
    expressões que ficaram muitas vezes no vocabulário da nossa política. Antes de se lançar numa das suas
    tiradas, o orador descreve alguns círculos preparatórios, como se procurasse um ponto para as pousar.
    Encontrado esse ponto, ajusta o bico do prego, afasta um pouco para ver melhor e, dum gesto largo,
    assenta a primeira martelada na cobertura que pretende perfurar: primeiro uma pancada, depois outra,
    depois muitas outras - até que o prego tenha entrado completamente, de tal maneira que é por vezes muito
    difícil arrancá-lo mais tarde, quando já não é necessário. Nessa altura, proferindo uma outra graça, Lenine
    começará a martelar a cabeça do prego, de um lado para o outro, para a abafar; e quando o tiver arrancado,
    lançá-lo-á ao ferro-velho dos arquivos, o que causará grande tristeza àqueles que já se tinham habituado a
    este enfeite, inútil a partir de agora.
    Mas eis que o discurso chega ao fim. Fazem-se os últimos cálculos, e as conclusões são fortemente
    sublinhadas. O orador tem o ar de um operário que sai esgotado do seu trabalho, mas que se sente feliz
    por ter executado essa tarefa. Passa de tempos a tempos a mão sobre o crânio desnudado, onde aparecem
    pequenas gotas de suor. A voz já não tem a mesma veemência, extingue-se qual brasa em vias de
    consumir-se. É possível acabar. Não devemos porém esperar esse ar de vitória que coroa habitualmente os
    discursos e sem o qual parece que não se pode descer da tribuna. Aos outros é indispensável um final
    brilhante; Lenine não precisa disso. Não termina as suas arengas como um profissional: acaba o seu
    trabalho e põe um ponto final. «Se compreendermos isto, se fizermos aquilo, seguramente venceremos...»
    Esta é com frequência a frase final. Ou então: «Eis o que queria dizer...» - e nada mais. E estas últimas
    palavras, totalmente de acordo com a natureza. da eloquência de Lenine e com a sua própria natureza, não
    esfriam de modo algum o auditório. Pelo contrário, após esta conclusão «sem efeitos», «cinzenta», a
    multidão parece compreender de novo, através duma chispa do pensamento, tudo o que Lenine acaba de
    oferecer com as suas palavras, e é então que rebentam as tempestades de reconhecimento e de entusiasmo
    denominadas: aplausos.
    Mas recolhendo já o monte dos papéis, Lenine sai rapidamente do estrado, para evitar o inevitável.
    Encolhe ligeiramente a cabeça entre os ombros, encosta o queixo ao peito, dissimula os olhos sob as
    sobrancelhas, enquanto o bigode ,se eriça com um ar quase colérico, no lábio superior, fazendo um
    trejeito de descontentamento. Aumentam as salvas de palmas e de aclamações como vagas rolando umas
    sobre as outras: «Viva... Lenine... chefe... Ilitch...» Sob o brilho das lâmpadas eléctricas, o crânio deste
    homem único, vergastado de todos os lados pelas vagas irresistíveis, cintila ao passar. E quando o
    turbilhão do entusiasmo parece ter atingido ,o seu furor extremo, de repente, através do ribombar, do
    ressoar, do marulhar, eleva-se uma voz jovem, vibrante, feliz como o grito da sereia tendendo a
    tempestade: Viva Ilitch! E então, das mais fundas frementes profundezas da alma colectiva, do amor e do
    entusiasmo popular, sobe em resposta, qual formidável ciclone, um clamor geral, indefinível, indiviso,
    que abala as abóbadas: Viva Lenine!
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo VIII - O Filisteu e o Revolucionário
    Numa das numerosas antologias consagradas a Lenine, chamou-me a atenção um artigo do escritor inglês
    Wells com o seguinte título: «O sonhador do Kremlin».(1)
    OS compiladores dessa antologia observam que «até espíritos avançados como o de Wells foram
    incapazes de apreender o sentido da revolução proletária que teve lugar na Rússia.»
    Parece não ser este um motivo suficiente para incluir um artigo de Wells num volume dedicado ao chefe
    dessa revolução. Não quero porém discutir com os compiladores sobre este ponto: quanto a mim, li com
    certo interesse algumas das páginas de Wells; com certo interesse, digo, mas ver-se-á mais adiante que o
    autor não tem nisso qualquer interferência.
    Revejo nitidamente a época em que Wells visitou Moscovo. Foi durante o Inverno de fome e de frio de
    l920-l92l. Sentia-se no ambiente o pressentimento, a inquietação das complicações que a Primavera
    deveria trazer. Moscovo esfomeada encontrava-se soterrada em montanhas de neve. A política económica
    estava em vésperas duma alteração brusca.
    Recordo-me muito bem da impressão que Vladimir Ilitch guardou da sua conversa com Wells:
    - Que burguês! Que filisteu, repetia, levantando os braços por cima da escrivaninha, rindo e suspirando,
    com esse riso e esses suspiros que exprimiam nele uma certa vergonha secreta sentida relativamente a
    outrem.
    - Ah! Que filisteu! repetia, retomando a conversa. Quando me disse isto, tinha chegado o momento em
    que se iria abrir a sessão do bureau político; e, em suma, Lenine limitou-se a repetir várias vezes a
    apreciação sobre Wells que acabo de relatar. Mas ela era mais que suficiente. Na verdade, eu não tinha
    lido muita coisa de Wells e nunca o vira. Fazia, contudo, uma ideia bastante clara desse socialista de
    salão, pertencente à Fabian Society(2), desse literato de grande fantasia e utopia que acabava de lançar
    uma vista de olhos sobre a experiência comunista. A exclamação de Lenine, e sobretudo o tom em que
    fora proferida, completavam sem dificuldade a minha impressão.
    E eis que um artigo de Wells, introduzido por vias quase providenciais na compilação de textos sobre
    Lenine, despertava
    na minha memória este grito: «Que filisteu!», recheando-o de um conteúdo vivo. Pois se Lenine está
    praticamente ausente do artigo de Wells a ele consagrado, em compensação lá encontraremos Wells em
    pessoa.
    Comecemos pelo princípio, por essa queixa de Wells que lhe serve de preâmbulo à matéria: o pobre foi
    obrigado - imaginem só - a empreender demoradas diligências para obter uma entrevista com Lenine; isso
    «enervou-o extremamente». E porquê, expliquem-me por favor? Seria Lenine que chamara Wells?
    Comprometera-se a recebê-lo? Poderia perder tempo? Muito pelo contrário, nessas duras jornadas de
    então, cada minuto do seu tempo estava tomado e contado; não lhe era fácil encontrar uma hora para
    receber Wells. Até um estranho o devia compreender sem dificuldade.
    Mas infelizmente, Wells, na sua qualidade de estrangeiro ilustre e apesar de todo o seu «socialismo» de
    Inglês muito conservador e de feição imperialista, encontrava-se imbuído da certeza de que, ao visitar
    Lenine, prodigava uma grande honra ao chefe, bem como ao seu país de bárbaros.
    Desde a primeira à última linha, nota-se intensamente esta autosuficiência pouco justificada.
    A descrição psicológica de Lenine começa, como era de esperar, por uma grande descoberta, uma
    revelação. Fiquem a saber que Lenine «não era, de forma alguma, um homem de letras».
    Com efeito, quem melhor do que Wells, profissional de Literatura, poderia decidir sobre este assunto?
    «Os curtos e violentos panfletos que aparecem em Moscovo com a sua assinatura (!) estão cheios de
    considerações falsas sobre a psicologia dos operárias do Ocidente!.. Exprimem muito pouco o fundo real
    do pensamento de Lenine.»
    O respeitável gentleman ignora, bem entendido, que Lenine é o autor de grande número de obras duma
    importância capital sobre a questão agrária, sobre as teorias económicas, a sociologia, a filosofia.
    Wells conhece apenas um certo número de «curtos e violentos panfletos»; afirma que aparecem «com a
    assinatura de Lenine», dando assim a entender que são escritos por outros. Quanto ao «verdadeiro fundo
    do pensamento de Lenine», não é possível encontrá-lo nas dezenas de tomos de que é autor, mais sim na
    conversa de uma hora a que condescendeu generosamente o muito ilustre e muito sábio viajante da Grã-
    Bretanha.
    Podia esperar-se, pelo menos, que Wells soubesse descrever de modo interessante a fisionomia de Lenine,
    e se tivesse dado um pouco de relevo ao esboço poderíamos perdoar-lhe todas as banalidades inspiradas
    pelo seu socialismo da Fabian Society. Mas não se encontra no artigo qualquer vestígio disso.
    «Lenine tem um rosto agradável, moreno (!), cuja expressão muda constantemente; tem um sorriso
    vivo...»
    «Lenine parece-se muito pouco com as suas fotografias...» «Gesticulava um pouco durante a conversa...»
    Para além destas fórmulas banais de um repórter habituado a preencher as colunas dos jornais burgueses,
    Wells nada soube dizer.
    Acresce ainda ter descoberto que a testa de Lenine lembra o crânio alongado e ligeiramente assimétrico de
    Artur Balfour e que, no seu conjunto, «é um homem muito pequeno: quando está sentado na borda da
    cadeira, os pés mal tocam no chão».
    No que se refere ao crânio de Artur Balfour, nada podemos dizer desse objecto venerável, admitindo sem
    custo que seja alongado. Mas, quanto ao resto, que indecente impropriedade de termos! Lenine tinha os
    cabelos de um louro arruivado; é, consequentemente impossível atribuir-lhe uma tez «morena». Era de
    estatura média, talvez até ligeiramente abaixo da média; mas quanto a produzir a impressão de «um
    homem muito pequeno» que estando sentado mal chegava ao chão, isso só pôde suceder a Wells, o qual
    chegava, qual Gulliver da civilização, ao Norte povoado de comunistas liliputianos.
    Wells notou também que Lenine, durante os silêncios da conversa, tinha o hábito de levantar uma das
    pálpebras com um dedo:
    «Este hábito, observa o sagaz escritor, provém talvez de um defeito de visão.»
    Nós conhecíamos esse gesto, Lenine fazia-o quando se encontrava perante um estrangeiro, um homem
    com quem nada tinha em comum: lançava então um olhar vivo ao personagem, através dos dedos de uma
    mão, colocada como viseira na frente do rosto. O «defeito de visão» de Lenine derivava do facto de que
    então ele lia no pensamento do seu interlocutor, apercebia-se da sua importância enfática e limitada, da
    sua presunção e ignorância de «civilizado» e, seguidamente, tendo absorvido esta imagem, abanava a
    cabeça e repetia: «Que filisteu! Que monstro pequeno-burguês!»
    O camarada Rothstein assistia à conversa, e Wells fez, a este respeito, uma descoberta admirável: segundo
    ele, a presença desta testemunha «caracteriza a situação actual na Rússia»; Rothstein - ouçam isto e não
    vos espanteis - controlava Lenine em nome do Comissariado dos Negócios Estrangeiros devido à
    excessiva sinceridade de Lenine e à sua imprudência de sonhador. Que dizer desta observação impagável!
    Ao entrar no Kremlin, Wells trazia no espírito toda a porcaria jornalística fabricada pela burguesia
    internacional; o seu olhar perspicaz - sem «defeito», evidentemente - descobria no gabinete de Lenine
    tudo o que tinha apreendido da leitura ,do Times ou de qualquer outro reservatório de bisbilhotices
    devotas e graciosas.
    Mas como foi então essa conversa? A este respeito, Wells apenas nos transmite lugares-comuns sem
    valor, que nos mostram como é lamentável, como é pobre o reflexo do pensamento de Lenine nos crânios
    de que não temos, aliás, de contestar a simetria.
    Wells tinha vindo com a ideia de que «teria de discutir com um convicto doutrinador, marxista, mas o que
    sucedeu foi completamente diferente». Isto não nos admira. Sabemos já que «o fundo do pensamento de
    Lenine» não se evidenciou neste período de mais de trinta anos que preenche a sua actividade política, a
    sua actividade de escritor, mas sim numa conversa com um bravo burguês britânico. «Tinham-me dito,
    continua Wells, que Lenine gostava de dar lições, mas absteve-se de o fazer comigo.» De facto, como dar
    lições a um gentleman tão impregnado do elevado sentimento da sua dignidade? De um modo geral não é
    verdade que Lenine gostasse de dar lições. O que é verdadeiro é o facto de ele saber falar de uma forma
    muito instrutiva. Contudo, apenas falava assim quando julgava o seu interlocutor capaz de aprender
    alguma coisa. Nesse caso, não poupava tempo, nem esforços. Mas perante o maravilhoso Gulliver, que se
    encontrava, graças ao acaso, no gabinete do «pequeno homem», Lenine deve ter adquirido, após dois ou
    três minutos de conversa, esta convicção capaz de inspirar a entrada do Inferno: «Perdei toda a
    esperança...»
    Falaram das grandes cidades. Wells confessa-nos que na Rússia teve pela primeira vez essa ideia notável
    de que o aspecto das grandes cidades depende sobretudo do movimento das lojas e dos mercados.
    Comunicou a descoberta ao seu interlocutor. Lenine «reconheceu» que num regime Comunista as cidades
    deverão diminuir consideravelmente de extensão. Wells «indicou» a Lenine que a restauração das cidades
    exigiria um trabalho formidável e que grande parte dos maiores edifícios de Petrogrado conservaria
    apenas o valor de monumentos históricos. Lenine concordou com esta incomparável conclusão de Wells.
    «Parece-me, acrescenta este, que foi agradável para ele conversar com um homem que compreendia as
    inevitáveis consequências do colectivismo, consequências essas que escapam à compreensão de grande
    número dos seus adeptos».
    Têm aqui a dimensão do nível de Wells.
    Ele considera como resultado da sua extraordinária perspicácia a descoberta de que, num regime
    comunista, as enormes concentrações urbanas actuais deverão desaparecer e que muitos monstros da
    arquitectura capitalista dos nossos dias apenas terão o valor de monumentos históricos (a não ser que não
    mereçam a honra de ser destruídos).
    Com efeito, como poderiam esses pobres comunistas (esses «fastidiosos fanáticos da luta ,de classes», no
    dizer de Wells) chegar a semelhantes descobertas - que foram, como sabemos, explicadas há muito, num
    comentário de divulgação acrescentado ao antigo programa da social-democracia alemã? Não diremos -
    pois não se devem minimizar as pessoas - que tudo isto era já conhecido dos utopistas clássicos do
    socialismo.
    Compreendeis agora, assim o espero, o motivo por que Wells, no decorrer da conversa, «não notou de
    modo algum» esse famoso riso de Lenine de que lhe tinham falado tanto: é evidente que Lenine não tinha
    vontade de rir. Temo até que o seu movimento reflexo não o tenha conduzido a um extremo
    completamente oposto ao do riso. Porém Ilitch teve de servir-se então daquela mão tão ágil e tão
    inteligente que sabia sempre esconder a um interlocutor demasiado ocupado consigo próprio um bocejar
    malcriado.
    Como vimos, Lenine não deu nenhuma lição a Wells, por razões que julgamos totalmente satisfatórias.
    Em compensação, Wells insistiu ainda mais em instruir Lenine. Esforçou-se por fazê-lo compreender essa
    ideia absolutamente nova de que, para o êxito do socialismo, «não bastava reconstruir o lado material da
    existência, mas que era preciso transformar a psicologia de todo o povo». Informou Lenine que «os
    Russos, pela sua natureza, eram individualistas e comerciantes». Explicou-lhe que o comunismo
    «avançava demasiado depressa», destruindo antes de poder construir, assim como outras verdades desta
    espécie.
    «Isto conduziu-nos, diz Wells, ao ponto essencial, onde nos encontrámos separados, isto é, estabelecemos
    uma diferença entre o colectivismo evolucionista e o marxismo.
    Por colectivismo evolucionista devemos entender uma mistura ao gosto da Fabian Society, onde entram o
    liberalismo, a filantropia, uma Legislação social utilizando meios tão económicos quanto possíveis e as
    meditações dominicais sobre um futuro melhor.
    O próprio Wells formula da seguinte maneira a essência do seu colectivismo evolucionista:
    « Creio que, através de um sistema regularmente estabelecido de educação da sociedade, o capitalismo
    actual pode civilizar-se e transformar-se num regime colectivo.»
    Omite dizer-nos quem se encarregará de aplicar «um sistema de educação» e a quem esse sistema deverá
    ser aplicado: deveremos pensar que os lordes de crânio alongado estabelecerão o seu sistema para o
    proletariado inglês, ou que, ao contrário, o proletariado passará por sobre os crânios dos lordes? Oh! não,
    tudo menos esta última solução! (Para que serviriam os membros instruídos da Fabian Society, os homens
    de pensamento, de imaginação desinteressada, os gentlemen e as ladies, o Snr. Wells e a Snr.ª Snowden,
    senão para civilizar a sociedade capitalista produzindo de forma regular e sistemática o que se esconde
    nos seus crânios; para que serviriam senão para transformar esta sociedade num Estado colectivo, dum
    modo progressivo, tão razoável e tão feliz que até a dinastia real da Grã-Bretanha se não apercebe disso?
    Eis o que Wells explicava a Lenine; e Lenine teve de ouvir isto tudo.
    «Para mim - observou Wells com indulgência - conversar com esse extraordinário homenzinho constituiu
    uma verdadeira descontracção (!).»
    E para Lenine? Que prova de paciência! Pronunciou, sem dúvida, em aparte, algumas palavras russas
    muito expressivas e extremamente saborosas. Absteve-se de as traduzir para o inglês, não só porque o seu
    vocabulário nesta língua não devia ser muito extenso mas também por motivos de delicadeza. Ilitch era
    muito bem educado. Não pôde limitar-se, todavia, a um silêncio cortês.
    «Foi forçado - relata Wells - a replicar-me que o capitalismo moderno é incuravelmente ávido e pródigo,
    sendo impossível ensinar-lhe o que quer que seja.»
    Lenine citou um certo número de factos que são, aliás, sublinhados no novo livro de Money: o
    capitalismo destruiu ,os molhes nacionais ingleses, não permitiu a exploração razoável das minas de
    carvão, etc. Ilitch conhecia o idioma dos factos e dos números.
    «Confesso - conclui subitamente o Snr. Wells - que me era muito difícil discutir com ele». O que significa
    isto? Não será o início da capitulação do colectivismo evolucionista perante a lógica do marxismo? Não,
    de forma alguma. «Perdei toda a esperança...» Esta frase. à primeira vista inesperada. não surgiu por
    acaso; faz parte de um sistema; tem um sentido rigorosamente conforme ao espírito da ,Fabian Society. do
    colectivismo evolucionista, da pedagogia inglesa. Foi feita para servir os capitalistas, os banqueiros, os
    lordes e os seus ministros ingleses. Wells disse-lhes: «Estais a ver, portais-vos tão mal, destruís tantas
    coisas, sois tão interesseiros, que eu, numa discussão com o sonhador do Kremlin, tive muita dificuldade
    em defender o princípio do meu colectivismo evolucionista. Tornai-vos mais razoáveis, fazei
    semanalmente as vossas abluções segundo o ritmo da Fabian Society, civilizai-vos, marchai na senda do
    progresso...»
    A confissão mal humorada de Wells não marca pois um princípio de autocrítica; ele prossegue
    simplesmente esse trabalho de educação da sociedade capitalista cujos processos aperfeiçoados, cujos
    princípios morais e «fabianizados» vimos postos em prática após a guerra, especialmente através da paz
    de Versalhes.
    É com um tom protector que Wells parece aprovar Lenine, quando declara: «A sua fé na causa que
    defende é ilimitada.» Eis o que é, com efeito, indiscutível. Lenine tinha uma reserva de fé mais do que
    suficiente. Isto é tão certo como afirmar que dois e dois são quatro: Esta fé inquebrantável dava-lhe
    mesmo a paciência de conversar, durante esses terríveis meses do bloqueio, com todos os estrangeiros que
    podiam servir de elo, mesmo indirecto, entre a Rússia e o Ocidente.
    Foi assim que Lenine conversou com Wells. Falava uma linguagem completamente diferente quando
    recebia operários ingleses. Estava com eles em completa comunhão. Ensinava então, instruindo-se ao
    mesmo tempo. Porém, com Wells a conversa apenas podia ter um carácter diplomático um pouco forçado.
    «A conversa terminou com vagas generalidades» - nota o escritor inglês. Por outras palavras, a partida que
    se jogou entre o colectivismo evolucionista e o marxismo terminou com um empate. Wells voltou para a
    Grã-Bretanha; Lenine ficou no Kremlin. Wells redigiu para o seu público burguês uma «correspondência»
    marcada pela petulância; Lenine abanando a cabeça, repetia: «Eis um belo burguês! Ui-ui-ui! Que
    filisteu!»
    Perguntar-me-ão talvez ,por que motivo e com que fim me detive, passados quatro anos, sobre ,este
    insignificante artigo de Wells. O facto do artigo ter sido reproduzido numa das colectâneas consagradas à
    memória de Lenine não constitui, por certo, uma razão suficiente. Também não posso justificar-me
    dizendo que escrevi isto em Sukhum, onde me encontrava em tratamento. Tinha, contudo, razões mais
    sérias para o fazer.
    Não vemos nós actualmente no poder, em Inglaterra, o partido de Wells dirigido pelos representantes
    extremamente esclarecidos do colectivismo evolucionista? E parece-me ter apercebido, talvez com
    bastante clareza, que o artigo de Wells consagrado a Lenine desvendava, melhor do que qualquer outro, a
    alma secreta dos dirigentes do partido operário inglês: ao fim e ao cabo, Wells não é o último entre eles.
    Como essas pessoas atrasam ao arrastarem o fardo de chumbo dos preconceitos burgueses! A sua
    presunção vaidosa - restos do importante papel desempenhado outrora pela burguesia inglesa - não lhes
    permite reflectir, como deveriam, na existência de outros povos, nas novas correntes de ideias, no curso
    da História que os ultrapassa. Limitados, rotineiros, empíricos, cegos pelas vendas que a sociedade
    burguesa aplica à opinião, esses senhores passeiam pelo mundo as suas importantes pessoas e os seus
    preconceitos, tendo o talento de só se aperceberem deles próprios no meio de tudo o que os rodeia.
    Lenine viveu em todos os países da Europa, aprendeu línguas estrangeiras, leu, estudou, ouviu, penetrou,
    comparou, generalizou.
    Quando se encontrou à cabeça de uma grande revolução, não deixou passar nenhuma ocasião de se
    informar cuidadosamente, conscienciosamente; interrogou os homens, os factos. Nunca se cansava de
    seguir pelo pensamento a existência do mundo inteiro. Lia e falava correntemente o alemão, o francês, o
    inglês; lia o italiano. Nos últimos anos da sua vida, esmagado pelo trabalho, encontrava ainda a
    possibilidade, durante as sessões do bureau político, de estudar às escondidas a gramática checa, para
    estar apto a compreender mais rapidamente o movimento operário da Checoslováquia; surpreendemo-lo
    várias vezes nessa ocupação e ele ria e procurava justificar-se, não sem uma certa confusão.
    Mas eis que Wells se encontra na sua frente, Wells que encarna essa raça de pequeno-burgueses
    falsamente cultos, infinitamente limitados, que têm olhos para não ver, que pensam não ser útil aprender
    seja o que for, pois estão de posse de uma bela herança de preconceitos.
    Por outro lado, o Snr. Mac Donald, que representa o mesmo tipo sob o aspecto mais grave e mais
    aborrecido do puritano, tranquiliza a opinião pública burguesa: combatemos contra Moscovo e vencemos.
    Venceram Moscovo? Na verdade, são estes os pobres «homenzinhos», embora tenham uma estatura
    elevada! Até agora, depois de tudo quanto se passou, nem mesmo sabem prever o seu dia de amanhã. Os
    homens de negócios do liberalismo e do partido conservador manobram facilmente esses pedantes
    socialistas «da evolução» que se encontram no poder; comprometem-nos ,e preparam conscientemente a
    sua queda, não só a queda do seu ministério, mas a sua ruína política. E, contudo, preparam também,
    embora inconscientemente, a chegada ao poder dos marxistas ingleses. Sim, exactamente, dos marxistas,
    desses «fastidiosos fanáticos da luta de classes»... Pois, também na Inglaterra, irá ter lugar a revolução
    social segundo as leis definidas por Karl Marx.
    Wells, com um humor que lhe é peculiar e que tem a consistência do pudim, ameaçou um dia pegar num
    grande par de tesouras e tosquiar Marx, privando-o da sua cabeleira e da sua barba de «doutrinário»,
    anglicizando-o, respeitabilizando-o, fabianizando-o. Contudo, ficou-se por aí, pois não é um Wells que
    poderá modificar Marx. Lenine também ficará igual a si próprio depois de ter suportado durante uma hora
    os efeitos da navalha de Wells. E temos a ousadia de afirmar que, num futuro que talvez não seja muito
    longínquo, é provável que se possa ver elevar em Londres, na Trafalgar Square, por exemplo, duas figuras
    ,de bronze, ao lado uma da outra: Karl Marx e Vladimir Lenine. Os proletários ingleses dirão então aos
    seus filhos: «Que sorte que os homenzinhos do Labour Party não tenham conseguido tosquiar nem fazer a
    barba a estes dois gigantes!»
    Enquanto se espera por esse dia, que procurarei ver, cerro os olhos por um instante e distingo nitidamente
    a imagem de Lenine, na cadeira de braços em que se encontrava à frente de Wells, e ouço a frase
    pronunciada no dia seguinte ou no próprio dia da entrevista com o escritor inglês, essa frase dita numa
    espécie de gemido e com tanta bonomia: «Que burguês! que filisteu!»
    6 de Abril de l924
    Notas: Segunda Parte – Capítulo VIII
    (1) Trata-se do sexto e último capítulo, «The Dreamer in the Kremlim), do livro que Wells publicou em
    Londres, em l920, na editora Hodder and Stoughton, após a sua viagem à Rússia: Russia in lhe Shadows
    (A Rússia na Sombra) (Nota de M. B.) (retornar ao texto)
    (2) A Fabien Society agrupa na Inglaterra os intelectuais socialistas; foram eles próprios que a
    denominaram assim, em honra de Fabius Cunctator (o Contemporizador). (retornar ao texto)
    Segunda Parte
    Ao Redor de Outubro
    Capítulo IX - Verdades e Mentiras Sobre Lenine
    A propósito do retrato de Lenine feito por Gorki(1)
    «É difícil fazer o seu retrato», declara Gorki ao falar de Lenine. É verdade, o que Gorki escreveu sobre
    Lenine é muito fraco. A textura da sua descrição parece feita dos elementos mais diversos. Distingue-se,
    por vezes, um traço mais brilhante que os outros, discerne-se uma certa penetração artística. São contudo
    muito mais numerosos os traços duma banal análise psicológica e apercebemo-nos constantemente do
    moralista pequeno-burguês. No seu conjunto, o produto não é lá muito belo. Mas como o responsável é
    Gorki, a obra será examinada ainda durante muito tempo. Eis o motivo por que é necessário falar dela.
    Talvez encontremos a oportunidade de pôr em evidência ou de observar certos traços, grandes ou
    pequenos, da imagem de Lenine.
    Gorki tem razão ao dizer que Lenine «é uma encarnação da vontade dirigida para o objectivo com uma
    extraordinária perfeição». A tensão para o objectivo de Lenine, eis a sua característica essencial; já a
    mencionámos e voltaremos a mencioná-la; mas quando Gorki, um pouco mais adiante, coloca Lenine no
    número dos «justos», etc., isso soa falso e é de mau gosto. Esta expressão «justo», pedida emprestada à
    Igreja, à linguagem dos sectários religiosos, cheirando a carisma e ao azeite das lâmpadas sagradas, não
    convém de modo algum a Lenine. Era um grande homem, um gigante magnífico, e nenhuma coisa
    humana lhe era estranha. Num congresso dos Sovietes, viu-se subir à tribuna um representante bastante
    conhecido duma seita religiosa, um comunista cristão (ou algo parecido), muito despachado e matreiro,
    que entoou imediatamente um louvor em honra de Lenine, considerando-o «paternal» e «protector).
    Recordo-me que Vladimir Ilitch, sentado à mesa do bureau, ergueu a cabeça, quase assustado, voltando-se
    depois ligeiramente e dizendo-nos a meia voz, num tom furioso, a nós, seus vizinhos mais próximos:
    - Que novas porcarias são estas?
    A palavra «porcarias» escapou-lhe duma forma completamente inesperada, contra vontade, mas por isso
    mesmo muito verdadeira. Sentia-me abalado por um riso interior e deliciava-me com esta apreciação
    incomparável de Lenine, tão espontânea, acerca dos louvores do orador muito cristão. Pois bem, o «justo»
    de Gorki tem algo de comum com o «pai protector» do homem da igreja. É, se me permitis, ,e numa
    medida muita atenuada, «uma porcaria».
    O que se segue é ainda pior:
    «Para mim, Lenine é um herói de lenda, um homem que arrancou do peito o coração escaldante para o
    elevar como um facho e iluminar o caminho dos homens...»
    Brr... Como é mau! Lembra exactamente a velha Izerghil (é este, parece-me, o nome dessa feiticeira que
    interessou a nossa juventude), é do mesmo género da sua história sobre o cigano Danko. Julgo não me
    enganar nas minhas recordações: nesse conto vê-se também um coração que se transforma em facho. Mas,
    isto é outra história, trata-se de ópera... Sim, de ópera, digo bem, com cenários inspirados nas paisagens
    do Sul, com uma iluminação de fogos de Bengala e uma orquestra de ciganos.
    Ora na pessoa e na figura de Lenine não há nada que lembre uma ópera e menos ainda o romantismo dos
    Boémios nómadas. Lenine é um homem de Simbirsk, de «Piter»(2), de Moscovo, do mundo inteiro - um
    realista rude, um revolucionário profissional, um destruidor do romantismo, da falsidade teatral, da
    boémia revolucionária; não pode ter qualquer parentesco com o cigano Danko, esse herói da fábula. Os
    que têm necessidade de modelos de espírito revolucionário roubados aos romances de ciganos devem ir
    procurá-los na história do partido dos socialistas-revolucionários!
    E Gorki afirma ainda três linhas mais adiante:
    «Lenine era simples e recto como tudo o que dizia.»
    Se assim era, porquê imaginá-lo arrancando do peito o coração inflamado? Não haveria em tal gesto
    nenhuma simplicidade, nenhuma franqueza... Porém estas palavras «simples e recto» não foram muito
    bem escolhidas; há na verdade ingenuidade a mais, sinceridade a mais. Fala-se assim dum rapaz honesto,
    dum bravo soldado, que diz simplesmente a verdade, tal qual ela é. Esses são termos que não convêm a
    Lenine, tome-mo-los do modo que quisermos.
    Ele era, sem dúvida, duma simplicidade genial nas decisões, nas conclusões, nos métodos, nos actos:
    sabia rejeitar, afastar, pôr em segundo plano tudo o que não tinha uma importância real, tudo o que era
    apenas acessório ou fogo de vista; sabia dissecar uma questão, reduzi-la aos seus justos termos, sondar-lhe
    o fundo.
    Mas isso não quer dizer que fosse unicamente «simples ,e recto». E ainda menos deveria significar que o
    seu pensamento se movia «em linha recta» como, aliás, afirma Gorki: expressão esta das mais
    lamentáveis, em tudo digna de um pequeno-burguês de um menchevique.
    Recordo-me subitamente, a este respeito, da definição do jovem escritor Babel: «A curva complexa
    descrita pela linha recta de Lenine.»
    Esta é, apesar das aparências, apesar da antinomia e da subtileza um tanto ou quanto rebuscada dos termos
    agrupados, uma explicação verdadeira. Vale, em todo o caso, muito mais do que a tão sumária «linha
    recta» de Gorki.
    O homem unicamente «simples e recto» dirige-se sem desvio para o seu objectivo. Lenine dirigia-se e
    conduzia para um objectivo sempre igual através de uma estrada cheia de complicações, através de
    caminhos por vezes muito desviados.
    Finalmente, essa ligação dos termos «simples e recto» não exprime de modo algum a incomparável
    malícia de Lenine, a sua habilidade rápida e brilhante, a paixão de virtuoso que sentia ao derrubar o
    adversário com uma rasteira ou ao atraí-la a uma armadilha.
    Mencionámos a tensão de Lenine para atingir o objectivo: convém insistir neste ponto. Um crítico julgou
    descobrir um ponto de vista profundo ao explicar-me que Lenine não se distinguia unicamente pela tensão
    ,para atingir o objectivo, mas também pela sua habilidade de manobra; este crítico censurava-me por ter
    dado, na imagem que tracei de Lenine, uma rigidez de pedra ao grande homem, em ,detrimento da sua
    maleabilidade.
    Aquele que assim pretendeu admoestar-me, embora fazendo-o de um modo diferente de Gorki... não
    compreendeu o valor relativo dos termos empregados.
    Deveria, com efeito, meter bem na cabeça que «a tensão para o objectivo» não indica necessariamente
    uma conduta «em linha recta».
    E que preço poderia custar a maleabilidade de Lenine sem essa tensão que não afrouxava um minuto
    É possível encontrar-se no mundo tanta maleabilidade política quanta se quiser: o parlamentarismo
    burguês é uma escola excelente onde os políticos se treinam constantemente a dobrar a espinha dorsal.
    Embora Lenine tenha troçado com frequência da «linha recta dos doutrinários», também exprimiu não
    menos frequentemente o seu desprezo pelas pessoas demasiado maleáveis que se inclinam nem sempre e
    necessariamente perante um mestre burguês, nem sempre com um objectivo interesseiro mas digamos:
    perante a opinião pública, perante uma situação difícil - procurando a linha de menor resistência.
    Toda a essência de Lenine, todo o seu valor íntimo, consiste no facto de ter perseguido incansavelmente
    um objectivo único, cuja importância o impregnava a tal ponto que parecia incarná-lo e não o distinguir
    dele próprio. Não considerava e não podia considerar as pessoas, os livros, os acontecimentos senão em
    função deste objectivo único da sua existência.
    É muito difícil definir um homem com uma só palavra; afirmar que foi «grande» ou que foi «genial» nada
    nos diz. Mas se fôssemos forçados a explicar Lenine muito sucintamente diríamos que em primeiro lugar
    ele se esforçava para atingir o seu objectivo.
    Gorki aponta o encanto sedutor do riso de Lenine. «Riso de um homem que, discernindo admiravelmente
    o peso da estupidez humana e as manobras acrobáticas da razão, sabia também fazer as delicias da
    ingenuidade pueril dos simples de espírito.»
    Embora expressa com um certo requinte, a observação é verdadeira na sua essência.
    Lenine gostava de rir dos imbecis e dos espertos que procuravam fazer espírito; e ria com uma
    indulgência que a sua formidável superioridade justificava. Na intimidade de Lenine as pessoas riam por
    vezes com ele, sem que se rissem pelo mesmo motivo... Porém, o riso das massas concordava sempre com
    o dele. Amava os simples de espírito, se nos quisermos servir da expressão evangélica. Gorki conta-nos
    como, em Capri, Lenine aprendeu com os pescadores italianos a servir-se da linha de pesca (segura com
    os dedos); essa boa gente explicou-lhe que deveria «puxar» logo que a linha fizesse «drine-drine»; assim
    que apanhou o primeiro peixe e o sentiu aproximar-se preso ao anzol, gritou com uma alegria infantil,
    com um entusiasmo de verdadeiro amador:
    - Ah! Ah! «drine-drine!»
    Eis uma boa imagem! Eis verdadeiramente uma parcela viva de Lenine. Essa paixão, esse entusiasmo,
    esse esforço ,do homem para atingir o seu objectivo, para «puxar», para apanhar a presa - ah! ah! drinedrine!
    aí estás tu, minha rica - tudo isso é bem diferente desse «justo» de quaresma, desse «pai protector»
    de que nos falaram; é Lenine em pessoa, numa parte dele próprio. Quando ao apanhar um peixe evidencia
    o seu entusiasmo, adivinhamos o seu amor à natureza, como a tudo o que estava próximo da natureza, as
    crianças, os animais, a música. Esta poderosa máquina pensante estava muito próxima do que existe para
    além do pensamento, para além duma procura consciente; estava muito próxima do elemento primitivo e
    indefinível. Esse maravilhoso indefinível exprime-se pelo «drine-drine». Penso que, devido a este
    pequeno pormenor significativo, nos é permitido perdoar a Gorki um quarto das banalidades que semeou
    no seu artigo. Veremos adiante o motivo por que não lhe podemos perdoar nada mais...
    «Afagava as crianças com doçura - diz-nos Gorki - sendo os gestos duma leveza, duma delicadeza muito
    especiais,»
    Também isto foi bem expresso; demonstra essa ternura de homem que respeita a pessoa física e moral da
    criança; poderia falar-se igualmente do aperto de mão de Lenine: era forte e doce.
    Recordo-me do seguinte episódio relativamente ao interesse que os animais despertavam em Lenine:
    reuníramo-nos em Zimmerwald, numa comissão destinada a elaborar ,um manifesto. Realizávamos a
    nossa sessão ao ar livre, à volta duma mesa redonda de jardim, numa aldeia de montanha. Não longe de
    nós encontrava-se um grande barril de água debaixo de uma torneira. Pouco tempo antes da reunião (que
    teve lugar a uma hora matinal), vários delegados tinham vindo lavar-se a essa torneira. Eu tinha visto Fritz
    Platten mergulhar a cabeça e o corpo até à cintura na água, como se quisesse afogar-se, com grande
    estupefacção dos membros da conferência.
    Os trabalhos da comissão avançavam com dificuldade. Verificavam-se atritos em várias direcções, mas
    sobretudo entre Lenine e a maioria. Apareceram então dois belos cães: de que raça não sei; nessa época eu
    não sabia nada disso. Pertenciam, sem dúvida, ao proprietário da habitação, pois puseram-se
    tranquilamente a brincar na areia, sob o sol matinal. Vladimir Ilitch levantou-se bruscamente da cadeira,
    pôs um joelho no chão e, rindo, começou a fazer cócegas na barriga aos dois animais, com gestos leves,
    delicadamente atenciosos, segundo a expressão de Gorki. Esta atitude foi completamente espontânea da
    sua parte; quase apetecia dizer que se tratava de um miúdo, e o seu riso era despreocupado, pueril. Lançou
    um olhar à comissão, como se quisesse convidar os camaradas a tomar parte nesse belo divertimento.
    Parece-me que era olhado com um certo espanto: cada um estava ainda preocupado com a grave discussão
    havida. Lenine continuou a fazer festas aos animais, agora mais calmamente, voltou depois para a mesa e
    declarou que não assinaria um tal manifesto. A disputa recomeçou com nova violência. Digo hoje a mim
    próprio ser muito possível que esta «diversão» lhe tenha sido necessária para resumir no seu pensamento
    os motivos de aceitação e de recusa e para tomar uma decisão. Contudo, não agira por cálculo: o
    subconsciente trabalhava nele em plena harmonia com o consciente.
    Gorki admirava em Lenine «esse entusiasmo juvenil que infundia a tudo quanto fazia». Tal entusiasmo
    era disciplinado, dominado por uma vontade de ferro, do mesmo modo que uma torrente impetuosa é
    controlada pelo granito da montanha; Gorki não no-lo diz, muito embora a sua definição continue a ser
    verdadeira: havia precisamente em Lenine um entusiasmo juvenil. E nele se reconhecia, com efeito, «essa
    excepcional vivacidade espiritual que só é própria de um homem inabalavelmente convencido da sua
    vocação».
    Aqui temos, de novo, algo de verdadeiro e profundo. Porém, essa linguagem antiquada, débil, que
    ouvíramos há pouco, esse estado de santidade de que nos falaram, ou então esse «ascetismo» (!), esse
    «heroísmo monástico» (!!) que foi questão noutra passagem, não estão de modo algum de acordo com o
    entusiasmo juvenil: opõem-se um ao outro como o fogo à água. «O estado de santidade», o «ascetismo»
    manifestam-se quando um homem se põe ao serviço de «um princípio superior, dominando as suas
    inclinações, as suas paixões pessoais. O asceta é interesseiro; faz os seus cálculos, espera uma
    recompensa. Na sua obra histórica, Lenine realizava-se completamente e até ao fim.
    «Os olhos de omnisciente do espertalhão» - não está mal, embora formulado de modo grosseiro. Mas
    como conciliar esse olhar de omnisciente com a «simplicidade» e a «franqueza» e, sobretudo, com a
    «santidade»?
    «Ele gostava das coisas divertidas - conta Gorki - e ria com o corpo todo, verdadeiramente «inundado» de
    alegria, por vezes até às lágrimas.»
    É verdade, e todos aqueles que tiveram conversas com ele se aperceberam disso. Em certas reuniões com
    um número de participantes reduzido, acontecia-lhe ter um ataque de riso, e isto não apenas nas épocas
    em que tudo corria bem mas até em períodos extremamente difíceis. Procurava reprimir-se tanto tempo
    quanto lhe era possível, mas, no fim de contas, rebentava de riso e o seu rir era contagioso; procurava não
    chamar a atenção, não fazer barulho, escondendo-se quase sob a mesa a fim de evitar a desordem.
    Esta hilariedade louca apoderava-se dele sobretudo quando estava fatigado. Com um gesto habitual, a
    mão cortando o ar de cima para baixo, parecia afastar para longe a tentação. Mas baldadamente. E apenas
    conseguia retomar o controlo de si mesmo olhando fixamente para o relógio, retesando todas as suas
    forças interiores, desviando-se prudentemente de todos os olhares, afectando um ar de severidade,
    restabelecendo com uma rigidez forçada a ordem que um presidente deve manter.
    Em casos destes, os camaradas tinham como ponto de honra surpreender à sucapa o olhar do «speaker» e
    provocar com uma graça uma recidiva de alegria. Se a tentativa era coroada de êxito, o presidente
    zangava-se simultaneamente contra o responsável pela desordem e contra si próprio.
    É evidente que estas diversões não se produziam com muita frequência: sucediam principalmente no fim
    das sessões, após quatro a cinco horas de trabalho intenso, quando todos se encontravam esgotados. De
    um modo geral, Ilitch conduzia as deliberações com estrito rigor: único método capaz de permitir que
    inúmeras questões fossem resolvidas numa sessão.
    «Tinha uma maneira muito dele de dizer «hum hum!» - continua Gorki - e sabia proferir esta interjeição
    expressiva ao longo de uma gama infinita de cambiantes que se estendiam desde a ironia sardónica à
    dúvida circunspecta; frequentemente, este «hum! hum!» traduzia um humor picante cuja malícia ,era
    apenas sensível a um homem muito perspicaz conhecendo bem as loucuras diabólicas da existência.»
    É verdade, está certo. O «hum! hum!» desempenhava com efeito um papel importante nas conversas
    intimas de Lenine, aliás do mesmo modo que nos seus escritos de polemista. Ilitch pronunciava o seu
    «hum! hum!» muito nitidamente e, como observa Gorki, com uma infinita variedade de cambiantes.
    Encerrava-se nisso uma espécie de código de sinais que empregava para exprimir os estados de alma mais
    diversos. No papel, o «hum! hum!» não diz nada; na conversa ,era muito expressivo, valia pelo timbre da
    voz, pela inclinação da cabeça, pelo jogo das sobrancelhas, pelo gesto ,das mãos eloquentes.
    Gorki descreve-nos também a atitude favorita de Lenine: «Deitava a cabeça para trás e, seguidamente,
    inclinando-a sobre o ombro, metia os dedos nas cavas do colete, sob as axilas. Havia neste gesto algo de
    surpreendentemente divertido e encantador, dir-se-ia o de um galo triunfante e nesses momentos ficava
    radioso.»
    Tudo isto é dito de uma forma perfeita, exceptuando o «gajo triunfante» que não se adapta nada à imagem
    de Lenine. Porém a atitude está bem descrita. Mas, ai de nós! lê-se um pouco mais adiante:
    «Criança grande deste mundo maldito, homem excelente que tinha necessidade de se oferecer como
    vítima à hostilidade e ao ódio para realizar uma obra de amor e de beleza...»
    Piedade, piedade, Alexis Maximovitch!
    «Criança de um mundo maldito!...», a expressão cheira a impostura que tresanda! Lenine assumia, sem
    dúvida, uma pose extraordinariamente insinuante, por vezes talvez um pouco maliciosa, mas não havia aí
    qualqu!er espécie de impostura. A expressão «oferecer-se como vítima» é falsa, insuportável como o
    raspar de um prego sobre o vidro! Lenine de modo algum se sacrificava, antes vivia uma vida plena,
    criadora, desenvolvendo completamente a sua personalidade ao serviço do objectivo que escolhera em
    completa liberdade. E a sua obra não era, de maneira nenhuma, «de amor e de beleza»: eis aqui dois
    termos duma generalidade demasiado comum, duma redundância desfocada; só lhe faltam, de facto, as
    maiúsculas: Amor e Beleza! A tarefa de que Lenine se encarregou foi a de despertar e de unir os
    oprimidos a fim de abater o jugo da opressão; esta causa dizia respeito a noventa e nove por cento da
    humanidade.
    Gorki fala-nos das atenções de Lenine para com os seus camaradas, da preocupação que sentia com a
    saúde deles. E acrescenta: «Jamais pude surpreender neste sentimento a preocupação interessada que
    manifesta um patrão inteligente relativamente a Operários honestos e hábeis.»
    Pois bem! Gorki engana-se por completo; deixou escapar precisamente um dos traços essenciais de
    Lenine. As suas atenções pessoais para com os camaradas nunca estavam desligadas da preocupação do
    bom patrão, inquieto com o trabalho que havia a fazer. Não há dúvida que é impossível falar-se neste caso
    de um sentimento «interessado», uma vez que a própria obra não é apenas pessoal; mas é indiscutível que
    Lenine subordinava a sua solicitude para com os camaradas aos interesses da causa - dessa causa que
    agrupava justamente em torno dele os seus companheiros. Esta aliança de preocupações de ordem geral e
    individual não diminuía em nada a humanidade dos seus sentimentos; pelo contrário, a tensão de todo o
    seu ser para atingir o fim político só a tornava mais forte e mais plena.
    Gorki não se apercebeu disso, não compreendeu certamente o destino que teve um grande número dos
    seus pedidos a favor de pessoas que «tinham sofrido» com a revolução, pedidos esses que dirigia
    directamente a Lenine.
    É sabido que as vítimas da revolução foram muito numerosas e as diligências de Gorki também não foram
    raras: algumas foram até totalmente absurdas. Basta lembrarmo-nos da intervenção prodigiosamente
    enfática do escritor a favor dos socialistas-revolucionários, na época do famoso processo de Moscovo.
    Diz-nos Gorki:
    «Não me lembro de caso algum em que Ilitch tenha recusado um dos meus pedidos. Se aconteceu, por
    vezes, as decisões de Lenine não serem executadas, a culpa não era sua: isso pode ser provavelmente
    explicado por esses malditos «defeitos de funcionamento» que sempre foram profusamente numerosos na
    nossa pesada máquina governamental. Também é de admitir que tenha havido por vezes má vontade da
    parte de não sei quem, quando se tratava de minorar o destino de certas pessoas, de lhes salvar a vida...»
    Confessemos que estas linhas nos chocaram mais do que todo o resto.
    O que se poderá, com efeito, concluir? O seguinte: como chefe do Partido e do Estado, Lenine perseguia
    implacavelmente os inimigos da revolução; mas bastaria a Gorki interceder e não haveria caso algum em
    que Lenine recusasse o pedido do escritor? Deveria então admitir-se que, para Lenine, o destino das
    pessoas se decidia de acordo com a intervenção dos amigos. Esta afirmação seria totalmente
    incompreensível se o próprio Gorki não pusesse as suas reservas: não foram satisfeitas todas as
    diligências que fez. Mas nesse caso ele acusa os defeitos do mecanismo soviético...
    Será mesmo assim? Seria Lenine verdadeiramente impotente para superar os defeitos do mecanismo
    numa questão tão simples como a da libertação de um prisioneiro ou a comutação de pena de um
    condenado? É bastante duvidoso. Não seria mais natural admitir que Lenine, após ter lançado sobre o
    requerimento e o requerente «o olhar omnisciente do espertalhão», evitava discutir o assunto com Gorki,
    deixando seguidamente ao mecanismo soviético, com todos os seus defeitos pretensos ou reais, a tarefa de
    executar o que exigiam os interesses da revolução? Com efeito, Lenine não era assim tão «simples» e tão
    «recto» quando se via obrigado a enganar o sentimentalismo pequeno-burguês. As atenções de Lenine
    para com a personalidade humana eram infinitas, mas estavam inteiramente subordinadas às atenções que
    devia, em primeiro lugar, à humanidade inteira, cujo destino se confunde, na nossa época, com o do
    proletariado. Se Lenine não tivesse sido capaz de subordinar o particular ao geral teria sido «um justo»
    que «se oferece como vítima em nome do amor e da beleza», mas não seria certamente o Lenine que
    conhecemos, o chefe do Partido bolchevique, o autor da Revolução de Outubro.
    É preciso acrescentar ao que acima se descreve o relato de Gorki sobre «a extraordinária obstinação» de
    que Lenine deu prova quando, durante mais de um ano, exortou o escritor a seguir um tratamento no
    estrangeiro.
    «Na Europa, num bom sanatório, você poderá tratar-se e trabalhará três vezes mais. Hé! Hé!...Parta, curese...
    Não se obstine em ficar aqui, peço-lhe.»
    É conhecida de todos, e indiscutível, a ardente simpatia que Lenine sentia por Gorki, tanto pelo homem
    como pelo escritor. Não há dúvida que a saúde de Gorki preocupava Lenine. No entanto, na
    «extraordinária obstinação» com que Lenine queria enviar Gorki para o estrangeiro havia também um
    certo cálculo político: na Rússia, nesses anos difíceis, o escritor desorientava-se de forma deplorável,
    arriscando perder-se definitivamente; no estrangeiro, perante a civilização capitalista, poderia recuperar.
    Poderia despertar nele o estado de alma que outrora o tinha forçado a «cuspir no rosto» da França
    burguesa.
    Sem dúvida, não era indispensável para Gorki repetir esse «gesto» que em si era bem pouco persuasivo;
    mas a disposição de espírito que o inspirara prometia ser muito mais fecunda do que as piedosas
    diligências a favor de trabalhadores intelectuais, cuja única infelicidade provinha do facto de não terem
    conseguido, pobres deles, lançar no devido tempo um nó corredio sobre o proletariado revolucionário.
    Sim, Lenine preocupava-se com Gorki, desejava sinceramente ver melhorar a sua saúde, ver o escritor
    trabalhar; tinha contudo necessidade de um Gorki recuperado e é por isso que insistia tanto em enviá-lo
    para o estrangeiro; é por isso que o exortava a ir cheirar um pouco os odores da civilização capitalista.
    Mesmo aqueles que não se encontravam nos bastidores desta questão podem, baseados no gesto de Gorki,
    adivinhar os motivos de Lenine: agia precisamente como um bom patrão que jamais e em circunstância
    alguma esquece os interesses da causa que lhe foi confiada pela História.
    Não foi como revolucionário, foi como pequeno-burguês moralizador que Gorki nos retratou a imagem de
    Lenine; e eis o motivo por que esta figura, esculpida num só bloco de uma unidade tão excepcional, se
    encontra desagregada no texto.
    Mas o caso piora ainda quando Gorki passa à política propriamente dita. Neste campo existem apenas
    mal-entendidos ou erros deploráveis.
    «Homem de uma vontade extraordinariamente forte, era no restante o tipo exacto do intelectual russo.»
    Lenine - tipo de intelectual! Não é curioso ouvir isto? Não se tratará duma brincadeira, duma
    inconveniência monstruosa? Lenine - tipo de intelectual!
    Porém, isto não basta a Gorki. Com efeito, segundo ele, ficamos a saber que Lenine «possuía no mais alto
    grau uma qualidade que é apanágio da elite intelectual russa - a renúncia levada até ao tormento, até à
    mutilação do próprio ser...
    Vejam só isto! Que disparate! Um pouco mais atrás Gorki desenvolvia tanto quanto lhe era possível a ,
    ideia de que o heroísmo de Lenine «é o ascetismo modesto, muito frequente na Rússia, do honesto
    intelectual revolucionário que acredita sinceramente na possibilidade de haver justiça sobre a terra», etc. É
    fisicamente impossível descrever esta passagem por tão falsa e desoladora... «O intelectual honesto que
    crê na possibilidade de justiça sobre a terra!» Como se se tratasse simplesmente de um pequeno
    funcionário provinciano, de um radical que leu as Cartas históricas de Lavrov ou então a falsificação que
    delas nos deu, mais tarde, Tchernov...
    Recordo-me a propósito que um dos velhos tradutores marxistas de outrora chamou a Karl Marx «o
    grande carpidor da desgraça popular».
    Há vinte anos, na vila de Nijne-linsk, divertia-me francamente com este Karl Marx provinciano. Todavia,
    é preciso constatar que, hoje em dia, nem Lenine escapou ao seu destino: um Gorki, um homem que viu
    Illitch, que o conhecia bem, que se contava entre os seus íntimos, que por vezes colaborou com ele,
    representa-nos este atleta do pensamento revolucionário não só como um piedoso asceta, mas, e o que é
    pior, como o tipo do intelectual russo.
    Isto é uma calúnia, e tanto mais perniciosa quanto é feita de boa fé, com grande benevolência e quase que
    num transporte de entusiasmo.
    Lenine encontrava-se certamente impregnado da tradição do radicalismo intelectual revolucionário;
    contudo, tinha-o superado e ultrapassado e só a partir desse momento se tornou Lenine.
    O intelectual russo «típico» é terrivelmente limitado; ora Lenine é precisamente um homem que ultrapassa
    todos os limites, sobretudo os limites dos intelectuais.
    Se é verdade afirmar-se que Lenine se encontrava impregnado da tradição secular dos intelectuais
    revolucionários, será ainda mais verdadeiro afirmar que ele concentra em si o impulso multi-secular do
    elemento camponês: revive nele o mujique com o seu ódio à classe senhorial, com o seu espírito
    calculista, a inteligência viva de dono da sua casa. Porém, o que há de limitado, de tacanho no mujique,
    foi superado, ultrapassado por Lenine através de um imenso impulso do pensamento e do domínio da
    vontade.
    Finalmente, em Lenine - e é o que há de mais sólido, de vigoroso nele - encontra-se incarnado o espírito
    do jovem proletariado russo. Não nos apercebermos disso, vemos apenas o intelectual, é não vermos
    absolutamente nada. O que torna genial a obra de Lenine é o facto de, através dele, o jovem proletariado
    russo se emancipar, sair da sua situação extremamente limitada e elevar-se à universalidade histórica. É
    por isso que a natureza de Lenine, profundamente ligada ao solo, se desenvolve organicamente, se revela
    em poder criador, se torna invencivelmente internacional. O seu génio consiste, antes de mais nada, em
    ultrapassar todos os limites.
    O traço essencial do carácter de Lenine é definido por Gorki de forma muito precisa, quando lhe atribui
    «um optimismo combativo».
    Acrescenta, porém: «Nele, esta faceta não tinha nada de russo...»
    Que ideia! Mas vejamos: então este intelectual típico, este asceta de província, não constitui o que há de
    mais russo, de mais local? Não é ele um dos homenzinhos de Tambov? Como é possível que Lenine, com
    traços essenciais de carácter que «não são russos», com uma vontade de ferro e um optimismo combativo,
    não seja ao mesmo tempo o tipo do intelectual russo? Não haverá aqui uma forte calúnia contra o homem
    russo em geral? O talento de conduzir pulgas pela trela é, na verdade, indiscutivelmente russo; mas,
    graças à dialéctica isso não vai durar sempre, vai mudar. A política socialista-revolucionária, que coroou o
    regime de Kerenski, constituiu a expressão mais elevada dessa velha arte nacional que consiste em
    conduzir as pulgas pela trela. Mas Outubro, não vos esqueceis, Alexis Maximovitch, teria sido impossível
    se, muito tempo antes, não se tivesse acendido no homem russo uma nova chama, se o seu carácter não se
    tivesse transfigurado.
    Lenine interveio, não apenas na época em que a História russa muda de direcção, mas também no
    momento em que o «espírito» nacional se transforma devido a uma crise. Pretendeis que os traços
    essenciais de Lenine não são «russos»... Mas permitireis que vos perguntemos se o Partido bolchevique é
    um fenómeno russo autêntico ou, digamos: holandês? O que diríeis então desses proletários actuando
    clandestinamente, desses combatentes, desses Uralianos duros como um rochedo, desses francoatiradores,
    desses comissários do exército vermelho que, dia e noite, mantêm o dedo no gatilho duma
    pistola e, hoje em dia, desses directores de fábricas, desses organizadores de trusts que estariam prontos a
    arriscar a cabeça pela emancipação do «coolie» chinês? Aqui está uma raça, um povo, uma das grandes
    «categorias» da humanidade! E não serão feitos da mesma massa que se fabrica na Rússia? Permitireis
    que vos contradiga.
    E que dizer também de toda a Rússia do século XX (e de outrora): já não é o país provinciano das épocas
    longínquas; é uma Rússia nova internacional, com um carácter de aço. O Partido Bolchevique é
    constituído por uma selecção desta nova Rússia e Lenine é o seu maior mestre e educador.
    Contudo, estamos a entrar aqui no domínio da confusão absoluta: Gorki, não sem um assomo de vaidade,
    declara-se um «marxista duvidoso», que não acredita de forma alguma na razão das massas em geral e das
    massas camponesas em particular. Julga que as massas precisam de ser governadas de fora.
    «Eu sei - escreve - que ao exprimir ideias destas, me exponho mais uma vez à troça dos políticos. Sei
    igualmente que os mais inteligentes e os mais honestos de entre eles se rirão de mim sem convicção e, por
    assim dizer, por dever de ofício.»
    Não sei quais são os políticos «inteligentes e honestos» que partilham do cepticismo de Gorki
    relativamente às massas. Mas esse cepticismo parece-nos bem medíocre. O facto das massas terem
    necessidade de serem dirigidas «de fora», já Lenine, parece-nos, tinha adivinhado. Talvez Gorki tenha
    ouvido dizer que, precisamente para dirigir as massas, Lenine tinha gasto toda a sua vida consciente na
    criação de uma organização especial: o Partido bolchevique. Ele não encorajava, de modo algum, uma fé
    cega na razão das massas. No entanto, desprezava ainda mais a arrogância desses intelectuais que
    acusavam as massas de não serem feitas à sua imagem e semelhança. Lenine sabia que a razão das massas
    se deve adaptar à marcha objectiva das coisas. O Partido deveria facilitar essa adaptação e, como o prova
    a História, desempenhou a tarefa com um certo sucesso.
    Gorki, assim no-lo diz, está em desacordo com os comunistas no que se refere ao papel dos intelectuais.
    Pensa que os melhores de entre os antigos bolcheviques educaram centenas de operários precisamente
    «num espírito de heroísmo social e de uma alta intelectualidade» (!!). De um modo mais simples e mais
    exacto, Gorki apenas aceitava os bolcheviques numa época em que o bolchevismo se encontrava ainda em
    ensaios de laboratório, preparando os primeiros quadros intelectuais. Sentia-se muito próximo do
    bolchevique de l903-l905. Mas o homem de Outubro, amadurecido, formado, aquele que, com uma mão
    inflexível, executa aquilo que apenas se começava a entrever há quinze anos, esse é estranho e antipático
    a Gorki.
    O próprio escritor, com a sua constante orientação no sentido de uma cultura mais elevada, de uma mais
    completa intelectualidade, encontrou no entanto a forma de se deter a meio caminho. Não se trata de um
    laico, nem de um pope: ele é o poeta da cultura.
    Deriva daí a sua atitude altiva, o seu desdém em relação à razão das massas e, ao mesmo tempo, ao
    marxismo, se bem que este, como já foi afirmado, sendo muito diferente do subjectivismo, se apoie não
    sobre a fé na razão das massas, mas sobre a lógica do processo material que, afinal, submete à sua lei «a
    razão das massas».
    É verdade que a via que aí nos conduz não é muito simples, e que ao percorrê-la se parte muita louça;
    partem-se até alguns utensílios da «cultura». :Eis o que Gorki não pode tolerar! Segundo ele, deveríamos
    contentar-nos em admirar a bela louça, sem nunca a partirmos.
    Para aproximar Lenine da sua pessoa, para se consolar, Gorki afirma que Ilitch «teve, sem dúvida, por
    mais de uma vez, de meter a sua alma pelas asas», por outras palavras, de contrariar a sua vontade:
    implacável quando lhe era necessário esmagar determinada resistência, Lenine estaria assim sujeito a lutas
    interiores, devendo vencer o seu amor ao homem, o seu amor à cultura; isto constituía para ele um
    verdadeiro drama. Numa palavra, Gorki XXX pg 208 inftige a Lenine esse desdobramento que caracteriza
    os intelectuais, essa «consciência doentia» que outrora se prezava tanto, esse precioso abcesso do velho
    radicalismo intelectual.
    Mas tudo isso é falso. Lenine era feito de uma só peça. Objecto de alta qualidade, de estrutura complexa,
    mas sólida em todos os sentidos, e no qual todos os elementos se adaptavam. admiravelmente uns aos
    outros.
    A verdade é que Lenine evitava muitas vezes contactar com os solicitadores, os defensores e as pessoas
    desta espécie.
    «Que fulano o receba, dizia ele com um risinho evasivo, senão serei mais uma vez demasiado bom.»
    Sim, muitas vezes ele tinha medo de ser «demasiado bom», pois conhecia a perfídia dos inimigos e a
    beata estupidez dos intermediários, considerando, em suma, como insuficiente qualquer medida de severa
    prudência. Preferia atirar sobre um inimigo invisível, em lugar de se deixar distrair por contingências e de
    ser «demasiado bom». Manifestava-se aí, mais uma vez, o cálculo político e não essa «consciência
    doentia» que acompanha necessariamente os caracteres desprovidos de vontade, choramingas - a natureza
    húmida do «típico inttelectual russo».
    E ainda não é tudo. Gorki - ele próprio o diz - censurava Lenine por «compreender o drama da existência
    de uma forma muito simplificada» (hum! hum!) e dizia-lhe que esta compreensão simplificada «ameaçava
    de morte a cultura» (hum! hum!).
    Durante os dias críticos do final de l9l7 e início de l9l8, quando em Moscovo se atirava sobre o Kremlin,
    quando os marinheiros (o facto deve ter sucedido mas não com tanta frequência como o pretendeu a
    calúnia burguesa) apagavam os cigarros esmagando-os sobre os Gobelins, quando os soldados -afirmavase
    - talhavam calças bastante incómodas e pouco práticas nas telas de Rembrandt (eram estes os motivos
    de queixa apresentados a Gorki pelos representantes consternados «duma ana intelectualidade» XXX pg
    209 -durante esse período, Gorki ,ficou completamente desorientado, cantando requiens desesperados por
    alma da nossa civilização. Terror e barbárie! Os bolcheviques preparavam-se para partir todos os vasos
    históricos, os vasos de flores, os vasos domésticos, os vasos de noite!
    E Lenine respondia-lhe: «Partiremos tantos quantos for necessário e se partirmos demais a culpa será dos
    intelectuais que continuam a defender posições insustentáveis.» - Não era isto proveniente dum espírito
    estreito? Não se veria através disto - piedade, piedade, Senhor! - que Lenine simplificava demasiadamente
    «o drama da existência»?
    Não sei, mas repugna ao meu espírito raciocinar com base em considerações deste tipo. O interesse da
    vida de Lenine não consistia em gemer sobre a complexidade da existência, mas em reconstruí-la de
    forma diversa. Para tal, era preciso considerar a existência no seu conjunto, nos seus elementos principais,
    discernir as tendências essenciais do seu desenvolvimento e subordiná-las a todo o resto.
    É precisamente por se ter tornado mestre na concepção criadora desses vastos conjuntos que considerava
    o «drama da existência» como se fosse seu dono: partiremos isto, demoliremos aquilo e sustentaremos
    provisoriamente aqueloutro.
    Lenine distinguia tudo quanto era honesto, tudo quanto era individual, notava todas as particularidades,
    todos os pormenores. E se «simplificava», isto é, se rejeitava certos elementos secundários, não era por
    não os ter notado, mas porque conhecia com certeza as proporções das coisas...
    Vem-me à memória, neste momento, um proletário de Petersburgo chamado Vorontsov que nos primeiros
    tempos a seguir a Outubro foi destacado para junto de Lenine a fim de o proteger e ajudar.
    Como nos preparássemos para evacuar Petrogrado, Vorontsov disse-me com uma voz soturna:
    Se por desgraça eles tomassem a cidade, iriam encontrar imensas coisas. Seria preciso enfiar dinamite por
    baixo de Petrogrado e fazê-la explodir completameme.
    - E não teria pena de Petrogrado, camarada Vorontsov? perguntei, admirando-me da ousadia deste
    proletário.
    - Ter pena de quê? Quando voltarmos, reconstruiremos algo de melhor.
    Não inventei este breve diálogo, nem o estilizei. Permaneceu tal e qual, gravado na minha memória. Pois
    bem, é essa a boa maneira de considerar a cultura! Não se encontra aqui qualquer vestígio de
    choraminguice, nem se trata de um requiem. A cultura é obra das mãos humanas. Não se encontra, de
    facto, nos vasos decorados que a História conserva para nós, mas sim numa boa organização do trabalho
    dos cérebros e das mãos. Se no caminho desta boa organização se elevam obstáculos, é preciso ,afastá-los.
    E se então formos obrigados a destruir certos valores do passado, destruamo-los sem lágrimas
    sentimentais; voltaremos mais tarde para edificar, para criar valores novos, infinitamente mais belos do
    que os antigos. Eis o modo como Lenine considerava as coisas, reflectindo o pensamento e os sentimentos
    de milhões de homens. A sua opinião era boa e justa, tendo muito para ensinar aos proletários de todos os
    países.
    Kislovodsk, 28 de Setembro de l924.
    Notas: Segunda Parte – Capítulo IX
    (1) O artigo de Gorki sobre Lenine que Trotski critica neste texto, encontra-se no tomo l7 das Obras
    Completas do escritor (Sobranie socineni, tomo l7, Moscovo, l952).
    O texto de l952 difere do que foi publicado em francês em l925; nesta data, Gorki põe na boca de Lenine
    a propósito de Trotski: «Apontem-me outro homem capaz de organizar no espaço de um ano um exército
    quase exemplar e de, ainda por cima, conquistar a estima dos especialistas militares. Temos esse homem.
    Temos tudo. E também faremos prodígios!» (Clarté, nº 7l, l de Fevereiro de l925). Em l952, esta
    passagem passa a ser: «...Soube formar especialistas militares. - Depois de um silêncio acrescentou muito
    baixo e tristemente: - E, contudo, não é dos nossos, está connosco, mas não é dos nossos; ambicioso, há
    nele algo de mau, do socialista Lassale.» Estas aliterações falam por si e tornam inútil que se busquem
    mais motivos para criticar as falsificações estálinienas dos textos e da História. (Nota de M. B.) (retornar
    ao texto)
    (2)Petersburgo. (retornar ao texto)
    posted by iSygrun Woelundr @ 6:09 PM   0 comments
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