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  • Pierre de Provence
    segunda-feira, maio 29, 2006

    Obra moralizadora é a narrativa de um amor fiel; sua singeleza transmite-lhe uma graça e uma suavidade bem características dos Romans courtois (Romances corteses) nos quais tudo é encantamento e prodígio.
    1. — O tema
    Pierre de Provence rapta Maguelone, filha do rei de Nápoles. Mas durante a viagem, Pierre, ao perseguir um pássaro que se apoderou de uma jóia, extravia-se. Muito tempo separados, os dois amantes se encontram finalmente e formam o par mais unido.
    2. — As fontes
    a) Literárias — Romance anônimo conhece-se o manuscrito de Coburgo e a edição gótica de Lião, atribuída a Barthélémy Buyer em, aproximadamente, 1477. Parece que esse texto foi escrito nas regiões do sul da França em, aproximadamente, 1442. As edições Le Roy, em Lião (1485) inspiraram-se no mesmo tema muito popular na Idade Média.
    Conforme Gariel (Idée de Montpellier, 1665), o assunto teria sido estudado por Petrarca segundo um texto de Bernard de Tréviez. Esta hipótese é posta em dúvida por Ancona (1889), rebatida por Gaston Paris (Romania, t. XVIII, l889,pág. 511). Parece mais certo ser Tréviez o escultor que ornou o lintel da porta da catedral de Maguelone.
    b) Histórico — Vêm-nos ao pensamento a ilha de Maguelone, perto de Montpellier e nos condes de Toulouse; supôs-se ser o bom rei René o conde de Provença (1435-1480). Mas com mais certeza pensou-se em Pierre de Melgueil que ofereceu o seu condado ao papa Gregório VII, no dia 27 de abril de 1085. Sua esposa era Almodis. Esse generoso conde, glorificado pela Igreja de Roma, tornou-se uma figura popular (estudo de A. Germain, 1854).
    3. — A sucessão literária
    Duas vezes Cervantes citou Pierre de Provence em D. Quixote. As poesias de Tieck, com a música de Brahms, foram editadas em Berlim, em 1911. Mistral trata de Maguelone (Trésor du Félibrige, II, 244) (Tesouro do Felibrige) Esse tema popular inspira numerosos artistas e um sarcófago de mármore existe na catedral de Maguelone.
    Os elementos desse romance se encontram nas Mil e uma noites (história do príncipe Camaralzanam e da princesa Badur), no poema italiano Ottinello e Giulia, no romance francês L’Escoufle. O furto de jóias por um pássaro é um caso comum na literatura.
    O romance persa Histoire des amours de Cofroès (História dos amores de Cofroès) lembra ainda a narrativa francesa.
    4. — Paris e Vienne
    Esse romance terminado em 1443 (conforme Biedermann, em 1427), compara-se a Pierre de Provence.
    É a história de um invencível cavaleiro que cativa o amor de Vienne, filha do Delfim do Vienense. Paris, como Pierre, é aprisionado no Oriente, na Síria e na Alexandria. Finalmente desposa Vienne.
    Esse texto é conservado na biblioteca de Carpentras (n.o 172). Podemos ainda pensar no amor de Flora que corre para o palácio do Sultão na Babilônia a fim de lá arrancar Brancaflor. Aucassin et Nicolette retoma o tema e Aucassin, depois de aventuras cômicas, consegue desposar a filha de Garin de Beaucaire que se opunha aos seus amores.
    5. — Conclusão
    Paris e Vienne dão um lugar importante aos feitos da cavalaria, mas os dois textos são histórias de amor edificantes nas quais a constância dos amantes triunfa. Pierre de Provence continua sendo uma obra mais humana e mais elegante; o estilo é simples, direto. A clareza e a uniformidade dessa narrativa muito sóbria foram a razão do seu êxito.
    posted by iSygrun Woelundr @ 12:13 PM   0 comments
    Roberto, o diabo

    Este belo e doloroso conto da Idade Média francesa canta a esperança de cada homem: qualquer, que seja o grau de nossos pecados, podemos encontrar o caminho da salvação. Roberto, esse ser abjeto e amaldiçoado, torna-se um santo. Obra de moralização e de encanto, sua ação rápida, alerta, acentua os caracteres da cavalaria.
    1. — O assunto
    Roberto nasce sob uma influência infernal. Sua adolescência é marcada pelos seus atos de crueldade; porém, ao saber do segredo do seu nascimento, quer expiar-se. Em Roma, num recanto do palácio do imperador, imita um louco e come com os cães. Porém, quando os sarracenos devastam a região, Roberto, com autorização celeste, combate e expulsa o invasor.
    Depois, no anonimato, retoma o seu lugar de truão. Três anos mais tarde seu feito glorioso se repete e a identidade do “cavaleiro branco” se desvenda; a princesa encontra novamente a palavra para glorificar Roberto que, fugindo às honras, se retira do mundo.
    2. — Os manuscritos
    Um antigo poema de duzentas e quarenta estrofes monorrimas de quatro versos datando do século XIII foi retomado por G. S. Trébutien (Silvestre, Paris, 1837). Outro manuscrito do século XIV (ou começo do século XV) recebeu os cuidados atenciosos de E. Loseth (1903).
    3. — As fontes
    a) Literárias — Um texto em latim — de Etienne de Bourbon, dominicano do século XIII, publicado por Lecoy de la Marche (1877) retoma o mesmo tema, bem como uma redação em alemão do século XV. Um regato atravessa o quarto da princesa: imaginamos o quarto de Isolda.
    Este assunto se repete nos Mistérios de Nostradamus (ll.o milagre) e no Roman de Robert, le Dyable, manuscrito de La Vallière, n.o 80 (edição Frère, Ruão, 1836). Mas “Un miracle de Nostre-Dame d’un enfant qui fu donné au dyable, quand il fu engendré” (33o. milagre de Gautier de Coincy) é publicado pelo padre Poquet (1857; Frère, Ruão, 1836) e Petit de Julleville (t. 149; t. II, 310) contêm textos análogos; Paulin Paris ocupa-se do “Miracle d’un enfant que sa mere donna ao diable à l’eure que son père l’engendra et qui fut porté en enfer”. Mágicos presidiram também a esse nascimento: este tema de iniciação é estudado nos temas do conto de Barba Azul.
    b) Histórico — Nas Chroniques de Normandie pretendeu-se atribuir a paternidade de Roberto, o Diabo, a Aubert, duque e governador, da Normândia no tempo de Pépin le Bref; depois foi Robert Courteheuse, filho de Guilherme; o Conquistador, que teve morte gloriosa em 1134, durante a primeira cruzada. Outros viram nesse personagem o pai de Guilherme, o Conquistador, Roberto, o Magnífico (1035).
    Na verdade Roberto, o Diabo, parece ser uma criação. É o tipo do príncipe salteador da Idade Média.
    4. — Sucessão literária
    Se Liebrecht (zur, Volkskunde) vê nessa lenda a adaptação eclesiástica de um velho conto popular pertencente ao grupo do “Teigneux”, Borinski pensa em Robert Guiscard.
    Realmente, muitas vezes o demônio se interessa pelas crianças para delas fazer suas criaturas. Guillaume d’Orange, as lendas alemãs de Orendel e de Wolf Dietrich, as sagas de Thidrek têm pontos de semelhança estudados por Cosquin nas literaturas do Cambodge, de Zanzibar, da Sibéria, etc. A criança se liberta desse jugo maléfico mas conserva os benefícios da iniciação nos segredos importantes.
    Edelestand do Meril (Etudes d’archéologie), Littré e Gaston Paris (Romania, IX, 523; XV, 260) estudaram essa lenda que Edouard Fournier, depois de uma tradução (Denty, 1879), fez representar no Gaieté, no dia 2 de março de 1879. Fora a ópera de Meyerbeer (Paris, 1831), as obras de Scribe e de Delavigne são interpretações livres.
    5. — Seu ensinamento
    Este conto, cujo texto é de uma pureza exemplar, adotou as idéias do cristianismo medieval. Faz lembrar Saint Alexis que, no dia de seu casamento, para se mortificar, foge às alegrias de sua família. Esta idéia de penitência, de elevação, depois de uma decadência nativa, tem bem um caráter popular e moralizador. Roberto, o Diabo, continua a ser uma das lendas francesas mais recentes.
    posted by iSygrun Woelundr @ 12:08 PM   1 comments
    O Judeu Errante

    O judeu Isaac Lequedem da tribo de Levi, denominado também Ahasvero — Sapateiro — recusou qualquer socorro a Jesus supliciado. Por essa falta de caridade, caminhará até o juízo final conforme a maldição divina.
    1. — Criação literária
    Em 1228, um arcebispo da Grande Armênia, ao visitar o mosteiro de Saint-Alban, narrou a lenda de José — ou Cartafilo — porteiro do pretório, que bateu em Jesus e foi condenado a esperar a volta do Senhor. Caindo, de cem em cem anos, em letargia, recupera sua aparência corporal do tempo da paixão (trinta anos). O arcebispo diz ter almoçado com José. Mathieu Paris, recolhe a lenda e registra-a, em 1252, na sua História Major; Philippe Mousket, bispo de Tournai, menciona o mesmo episódio na sua Chronique rimée (em aproximadamente 1243).
    Entretanto, essa lenda não aparece no folclore armênio.
    Gaston Paris (Légendes du Moyen Age, 1912), observa que Cartafilo devia ser romano e não judeu pois que foi empregado por Pilatos.
    A. d’Ancona mostrou (Romania, t. X e XII) que o personagem obsedava a imaginação da Idade Média.
    2. — Evolução da lenda
    Uma carta em alemão, datada de 29 de junho de 1564 afirma que Paul d’Eitzen, doutor em teologia e bispo de Scheleszving, encontrou o Judeu errante em Hamburgo em 1542. 0 redator alemão, protestante, teve que se servir desse nome para autentificar uma narração lendária. A narração de Chrysostornus Duduloeus Westphalus (Leyde, 1602), teve numerosas reedições.
    Em 1575 esse erradio é encontrado na Espanha; apresenta-se aos Magistrados de Estrasburgo; Pierre Louvet o vê em Beauvais (1614). 0 advogado Bouthrays, na Histoire de son temps (t. II, XI, 1604), observa que — toda a Europa se — ocupa com esse personagem que inspira as artes. Depois da .publicação em Bordéus dos Discours du véritable Juif Errant (Discursos do verdadeiro Judeu Errante) (1609), as cartas de Prétendu Espion Turc (Pretenso espião turco) torna-se Michob-Ader (Paris, 1680).
    3. — Origem literária
    Gaston Paris pensa em Caim, o erradio fugitivo, em Samiri que foi condenado por Moisés a caminhar sem descanso por ter adorado um bezerro de ouro. Malc, que esbofeteou o Cristo com sua luva de ferro e gira em torno de uma coluna até o juízo final. Mas a lenda mais notável parece ser a de Jean Boutedieu, conhecida pelas cruzadas estabelecidas na Síria. É encontrada nos mistérios provençais, na canção de gesta de Fierabras (Ferrabras) na qual o leproso Marcos bate Jesus e na Espanha sob o nome de Juan Espera-en-Dios. Philippe de Novare anotou-o no seu Livre en forme de plait (1250).
    4. — Evolução do personagem
    Discípulo bem-amado ou culpado? São João, bem como José de Arimatéia são imortais e entretanto o cristão espera apenas a graça do céu. A vida tranqüila de Cartafilo sucede a vida errante de Ahasvero. Mas o erradio pára nas vilas, professa, toma assento à mesa de Paul d’Eitzen. Esses dois homens são tão diferentes que Droschen (Iena, 1668), Frantzel e uma brochura de 1645 são de opinião de que existem dois testemunhos da paixão.
    Porém, em aproximadamente 1800, o judeu errante não pode mais parar; possui apenas 5 soldos no bolso que se renovam à medida que os vai gastando. É um timorato. Goethe pensa em tratar dessa lenda, mas Fausto, que também pode renascer, é muito mais humano.
    5. — A sucessão literária
    Depois das obras anônimas, as edições tais como La chanson de Béranger, a ópera de Scribe e Saint-Georges com a música de Halevy. Gérard de Ner vai traduziu Schubart numa meditação filosófica.
    Gustave Doré firma esse personagem que permite a Eugene Sue compor o primeiro romance-folhetim. Mélies, em 1904, consagra-lhe uma curta metragem cinematográfica e histórica; lendas relativas à Paixão encontram-se intercaladas nessa obra. Daí as obras de Edgard Quinet (Ahasverus, 1834), de Ed. Fleg (Albin Michel, 1953), de Alexandre Arnoux (Carnet de route du Juif Errant, Grosset, 1931). Depois deste livro vibrante t’Serstevens criou seu encontro com D. Juan (La Légende de Don Juan, Gonet, 1946); num diálogo cintilante D. Juan torna-se o Judeu errante do amor. J. C. Cordeau (Ahasverus, Jouve, 1951) observa os simuladores que vão do desertor (Léopold Delporte, 26 de maio de 1623), aos impostores, tais como o conde de Saint-Germain ou Cagliostro. Outros homens, seguindo a convocação geral do ano 1000, já haviam endossado essa personalidade.
    6. — Conclusão
    O Judeu Errante talvez tenha nascido da imaginação popular. Todavia, o castigo parece desmesurado em relação ao ato e dificilmente se compreende o rigor de Jesus que sabia perdoar. A lenda pode personificar a nação judaica que deve viver entre os outros povos depois da destruição de Jerusalém por Tito. Pode ser o emblema da humanidade que caminha continuamente para um fim imprevisto. É a alegoria da guerra; a explicação mitológica transforma-a no vento que a conduz. É também um tema protestante, um testemunho certo que fortalece a fé, um testemunho em favor da veracidade dos fatos narrados nos Evangelhos, que combate o mito cristão.
    A lenda permite aos autores traçar o quadro dos usos e costumes de cada país por onde passa; ou contar a História Sagrada. Porém, o personagem, vencido por seu erro, não goza das alegrias mortais, as únicas alegrias que poderiam lhe ter criado na obra literária um lugar de destaque.
    posted by iSygrun Woelundr @ 12:05 PM   0 comments
    Gargântua

    Gargântua evoca Rabelais. Contudo Eloi Johanneau (Variorum, t. I, pág. 37), Ph. Chasles (Tableau de la littérature française, 1829), J. Grimm (Mythologie allemande, 1837), pensam numa tradição antiga. Rabelais criou um herói nacional cujo nome expressivo tornou-se uma imagem popular.
    1. — Origem
    H. Gaidoz (Revue archéologique, set. de 1868), baseando-se na radical da palavra — gar — vê nessa radical uma divindade; o deus da luz Garuda ter-se-ia tornado o Hércules gaulês. Esse principio druídico estaria ainda presente no seu culto das pedras.
    Porém os gigantes são conhecidos; e o nome de Gargântua figura na Légende de maistre Pierre Paileu de Charles Bourdigné (1526). Tiel Ulespiègle legou a palavra “espiègle” mas esse farsante insípido e sem espírito, comparado com Panurge, não tem nem a sua sutileza nem a dicacidado. Rabelais teria se inspirado na Histoire maccaronique de Merlin Cocaie (História macarrônica de Merlin Cocaie). Com efeito, o episódio dos carneiros é também encontrado no primeiro.
    2. — Os gigantes.
    Como os elfos, os anãos ou os ciclopes, os gigantes são a personificação dos grandes fenômenos (furacões. estações, geadas...); quase deuses: Thrym rouba o martelo do deus Thor; Mimir, o gigante das águas, aconselha Odin. São entes poderosos: Egir é o senhor dos mares e sua esposa Ran captura os navegadores.
    Para a Igreja católica, o gigante substitui o diabo. Em 1100 os elementos pagãos e cristãos se misturam; o povo aceita o cristianismo sem contudo rejeitar as crenças tradicionais. E desta forma que Geoffroi de Monmouth faz evoluir Gurgunt em sua epopéia bretã retomada por Wace (Roman de Brut, 1155).
    3. — A obra de Rabelais
    Depois do êxito das Grandes et inestimables chroniques de l’énorme géant Gargantua (Grandes e inestimáveis crônicas do enorme gigante Gargântua) (1532) — devidas talvez a Billon d’Issoudun — Rabelais edita Les horribles et épouvantables faíts et prouesses du très renommé Pantagruel (Os horríveis e espantosos feitos e proezas do mui renomado Pantagruel) na editora Claude Nourry, conhecido por Le Prince (3 nov., 1532); o livro é assinado Alcofribas Nosier; o Almanach pantagrueline pronostication aparece em 1533 (Lião, François Juste).
    A Faculdade de Teologia condena o Pantagruel em 23 de outubro de 1533. Porém, Rabelais, como médico, acompanha o bispo de Paris, Jean de Bellay, que parte para Roma onde vai pleitear os interesses de Henrique VIII excomungado por haver esposado Ana Bolena (1534). Com essa proteção Rabelais publica, em 1534, seu Gargântua (edição definitiva, 1542, Lião, François Juste). Le tiers livre (1546), de gosto mais rebuscado, expõe a questão do casamento, Le quart livre (Lião, 1549) narra as buscas da “Dive Bouteille”. e da passagem do Noroeste.
    4. — Valor dessa obra
    Os romances de Rabelais tiveram imensa popularidade. São os livros de um erudito que, de maneira divertida, num estilo falado, contêm alusões políticas e religiosas. Gargântua é um preito em favor do Renascimento e da Reforma. Apesar de Rabelais ser prudente, de pregar sem falar demais, percebe-se nele o pensamento de Erasmo, célebre pelo seu Institution du prince chrétien. Rabelais também foi um iniciado.
    Saulnier (Mercure de France, 1-4-1954) mostrou que essa filosofia do beber era o símbolo de uma busca da sabedoria. O festim perante Chaneph é erguido com alusões à Ceia e faz pensar na Comunhão Eucarística.
    Les grandes et inestimables chroniques (1532) teriam inspirado Rabelais. Ora, nelas encontramos novamente o mágico Merlin, que dá origem aos pais de Gargântua, futuro servidor do rei Artur. É talvez aí que se deve buscar a analogia que notamos entre a busca da “Dive Bouteille” e alguns episódios do Santo Graal.
    Na verdade a obra de Rabelais, de intenção evangélica, continua profundamente esotérica com seu simbolismo aparente.
    5. — A sucessão literária
    Rabelais foi muito imitado. Os livros transportados pelos bufarinheiros referem-se, em geral, às Grandes e inestimables chroniques de 1532: é o caso de Deckherr em Montbéliard, de Placé em Tours, de Pellerin em Epinal ou de Oudot em Troyes.
    Mas Gargântua — denominado também o Judeu Errante — passeou por todas as regiões. Modelou o solo, formando lagos, córregos e deixando montes de lodo que são verdadeiras montanhas. Uma crônica do século XVI diz que ele “a engendré le fleuve du rosne en pissant trois mois, six jours, treize heures trois quarts et deux minutes”. Essa geografia gargantuesca foi notada por A. Van Genned em Le folklore de Bourgogne, 1934; (0 folclore de Borgonha) por Sébilot (Les Traditions populaires, 1883) (As tradições populares), e por Carnoy (Contes français, 1885).
    6. — Conclusão
    Rabelais, fiel à tradição das crônicas de gigantes, soube exprimir, entre suas invenções burlescas, idéias novas e profundas. Não temeu opor-se à ordem estabelecida e traçou um programa de vida no qual o humanismo evangélico ocupa um lugar preponderante.
    posted by iSygrun Woelundr @ 12:01 PM   0 comments
    EL CID CAMPEADOR
    quinta-feira, maio 25, 2006

    O personagem do Cid pertence à Espanha. Mas Corneille, prosseguindo com a peça de Guillen de Castro, imortaliza o herói. Essa lenda cavaleiresca descreve a vida rude e trabalhosa de um hábil guerreiro; é uma poesia de autenticidade na qual o sobrenatural, o misticismo e o fanatismo desaparecem.
    1. — O personagem histórico
    A Gesta Roderici Campidocti registra o nascimento do Cid em, aproximadamente, 1050; a Crónica del Cid, em 1026. Deve ter nascido em Bivar (a 8 quilômetros de Burgos), de Diego. Laynez, descendente de Layn Calvo, juiz do condado de Castilha.
    Conforme outras tradições, Rodrigo é um bastardo e tem três irmãos mais velhos. Guillen de Castro faz dele um filho natural, Corneille, um filho único.
    Guerreia sob o reinado de Sancho II e depois sob o de Afonso VI que o exilou em 1081. Rodriguez Diaz bate-se então para outros reis. Requestam-se os serviços do Campeador (O batalhador).
    Ajudando o rei muçulmano de Saragoça, os soldados lhe deram o nome de Cid, Mio Cid oriundo do árabe Sidi, senhor. Cumulado de riquezas e honras apoderou-se de Valença (1094) e lá viveu até 1099 como grande senhor. Depois de sua morte, sua mulher, Ximena, neta de Afonso V. teve que abandonar Valença (1102).
    A imaginação do povo acrescentou logo uma infinidade de pormenores extraordinários. Esse vassalo injustamente exilado permanece um motivo ora respeitável, ora revoltado; chefe de um bando ambicioso, pouco escrupuloso (conforme Dozy), torna-se um cavalheiro cortês e galante. São-lhe atribuídas intenções que são de outros tempos e de outros personagens. Mas esse homem rude, independente, leal, representa bem a Espanha cristã; provocou a admiração.
    2. — Os documentos
    O Museu Real de Armas de Madri conserva uma das espadas do Cid (Tizona); a catedral de Sala manca retém o ato de 1098 pelo qual o Cid dava todos os seus bens à catedral de Valença; bem como os de Ximena (1101). Burgos tem em seu poder o contrato de casamento entre Cid e Ximena e os. dois cofres que o Cid teria entregue aos judeus. Os restos mortais do herói e de sua mulher descansam em San Pedro de Cardena. Em 1272, Afonso X mandou erguer, em sua homenagem, um ataúde de pedra.
    3. — Fontes literárias
    a) Historia Roderici Didaci Campi docti, crônica latina (antes de 1238), descoberta em 1742 pelo P. Risco, traduzida por Saint-Albin (Paris, 1866).
    Só nos restam trinta e duas estrofes desse poema;
    b) Crônica rimada, descoberta em 1844 por Enjemio de Ochoa, publicada por Francisque Michel e Ferdinand Wolf — Tradução de Damas-Hinard em 1858. E a juventude do Cid feudal. A narração inicia-se com a querela entre o Conde de Gormaz e Diégo Lainez;
    c) Le Romancero é a obra mais considerável. Foi impressa em Saragoça em 1550;
    d) A crônica do Cid, quarto livro da Crónica general, teria sido composta pelo próprio Afonso X e refundida no século XV; e) La crónica del famoso Caballero Cid Ruy Diaz Campeador, em prosa, publicada em 1512 por Juan de Veloredo, em 1845 por Huberto, em Marburgo e em 1853, em Stuttgart;
    f) O poema do Cid (Gesta del mio Cid), publicado em 1779 por Sanchez, reeditado em 1858 por Damas-Hinard e depois por Saint-Albin. Talvez escrito por um prestidigitador de Madenaceli em, aproximadamente, 1140; esse admirável poema encena um Cid mais apaixonado pelas guerras do que pelo amor. A influência da Canção de Rolando nela é indiscutível, mas os episódios sobrenaturais são apenas quatro, sendo um a visita, do Anjo Gabriel e o outro a de São Lázaro.
    Essa grande lenda épica espanhola não precisa pois do maravilhoso;
    g) Documentos árabes. Dozy (1881) encontrou o manuscrito árabe de Ibn Bassam (Dzakhira, terceiro volume, primeira parte), escrito em Sevilha em 1109 dez anos depois da morte do Cid lbn-al-Cardebus et Ibn-al-Abar falaram também do Cid.


    4. — Sucessão literária
    O amor Ximena-Cid não é tratado. Essa invenção arbitrária nasceu nos romanceros, os quais dizem que Ximena amou Rodrigo depois da morte de seu pai. Francisco Santos no Cid ressuscitado faz com que o Cid ressuscite bastante descontente com as fábulas que lhe são atribuídas.
    a) Guillen de Castro — No século XVII, este autor forneceu o conflito dramático da morte do conde. Las mocedades del Cid (Juventude do Cid), composto em 1618, foi editado em 1621; é um drama fértil em espetáculos nos quais o amor luta com o dever durante três anos. A segunda parte de Las mocedades narra as proezas do Cid e a ação só é iniciada vários anos depois do casamento do Cid com Ximena.
    Esta peça edificante exalta o espírito da caridade; é uma arma contra a Reforma;
    b) Corneille — Corneille retoma esse texto (dezembro de 1636) inspirando-se também em dois antigos romances espanhóis. A lei imperiosa da unidade de tempo aboliu esse período de três anos; Corneille, reagindo contra a apresentação dos mistérios, suprime as cenas religiosas mas exalta o ideal de cavalaria. É criticado pelo casamento dessa moça com o assassino de seu pai, mas na Espanha, o rei dispunha, como queria, da mão de uma órfã.
    “La querelle du Cid”, erguida por Richelieu, tem motivos políticos (apologias do duelo e de um herói espanhol justamente quando os éditos de 1634 proíbem esses combates e que a França está em guerra com Madri). E nada mais do que uma rivalidade literária, o orgulho de Corneille feriu a suscetibilidade de seus rivais;
    c) Diamante — La Harpe e Voltaire pretenderam sem razão que o Cid de Diamante era anterior ao de Castro. Le vengeur de son père data de 1659 e é uma tradução de Corneille;
    d) Les tragédies — Desfontaines (Le mariage du Cid, 1635), Chevreu (La vraie suite du Cid), Timothée Chillac (La mort du Cid ou L’ombre du comte de Górmaz, 1639), Pierre Lebrun (Le Cid d’Andalousie, 1825), de Casimir Delavigne (La fille du Cid, 1840) não trouxeram nenhum elemento novo.
    Abel Hugo traduziu o Romancero (1822) e Victor Hugo lembra-se de Rodrigo em La bataille perdue (Les Orientales), Bivar, Le Cid exilé, Le Romancero du Cid (La légende des siècles);
    Em 1882, Zorilla compõe uma abundante paráfrase do romancero (La légende du Cid). Massenet escreve sua música segundo o livreto de Gallet, d’Ennery e Blau. Leconte de Lisle inspira-se em Rodrigo nos seus Poèmes barbares (1862), bem como José-Maria de Herédia (Revue des Deux Mondes, 1885).
    Alexandre Arnoux publicou uma excelente Légende du Cid Campeador (Piazza, 1923) e Georges Fourest traduziu o lamento de Ximena em La négresse blonde (Vanier-1909):
    Dieu!
    Qu’il est joli garçon l’assassin de papa!(3)
    5. — Conclusão
    Esse canto triunfal, único texto épico de uma tradição espanhola foi, desde o princípio, influencia.
    do pelo espirito francês que se irradiou então sobre toda a Europa. Poema de propaganda, o autor baseou-se em documentos humanos. Debaixo de sua boa cota de malha, o Cid combateu para ganhar a sua vida. Mas esse personagem bem espanhol veio até nós, não tanto pela sua coragem que se assemelha à de Rolando, mas por um fato imaginado por Guillen de Castro: a luta entre o dever e o amor. Corneille, pela sua concisão, pelo vigor de seus versos cintilantes e imortais, forjou sua duradoura personalidade
    posted by iSygrun Woelundr @ 8:56 PM   0 comments
    Os quatro filhos de Ayimon

    (Gesta de Doon de Mogúncia) 1. — O tema
    Carlos Magno armou cavaleiro aos quatro filhos de Aymon de Dordone: Aalard, Renaud, Guichard e Richard. Mas Renaud, devido a uma série de derrotas, matou Bertolai, sobrinho de Carlos Magno. Um antigo rancor gerou entre o imperador e as fileiras de Renaud; Carlos Magno, para se. vingar da afronta, perseguiu durante anos os quatro irmãos que provocavam a admiração de seus inimigos. Ei-los ao lado do rei Yon lutando contra os sarracenos, desde Ardenas até Bordéus. Com o auxílio de um primo, Maugis, o mágico, capturaram Carlos Magno para libertá-lo imediatamente. Libertarão seu maravilhoso cavalo Bayard e Renaud parte para combater na terra santa; essa vida de orgulho e violência termina com a penitência e a graça.
    2. — Textos análogos
    Os problemas de honra e de consciência que se impõem a esses revoltados se encontram em La chevalerie Ogier no qual o filho de Ogier, o Dinamarquês, foi morto pelo filho de Carlos Magno; Ogier quer se vingar; se arrependerá e tornar-se-á frade. Em Raoul de Cambraf, Raoul, deserdado pelo pai, devasta Vermandois. Seu implacável adversário Ybert de Ribemont, reconhecendo seus erros, funda, no local onde estão os sete castelos — monumentos do orgulho — sete mosteiros — testemunhos de penitência.
    3. — Manuscritos
    O manuscrito do século XIII, arquivado na Biblioteca Nacional de Paris (n.o 24.387, versão de La Vailière), deu origem a duas edições (Michelant, Tübingen, 1862; F, Castets, Montpellier, 1909). Treze outros manuscritos completaram esse texto chamado La Vailière (manuscritos de Montpellier, de Veneza, estudados por Pio Rajna, de Cambridge, ns. 766 B. N.). Um poema neerlandês (segunda metade do século XIII), retoma a trama do manuscrito La Vallière.
    4. — Estudos
    Paulin Paris localiza a ação primitiva nas Ardenas. Bédier acentua que a lenda não é mencionada no Catalogue de 1150, mas que é bastante conhecida no princípio do século XIII. Longnon estabelece em 1879 um paralelo histórico entre Yon de Gasconha e o rei de Aquitânia Eudon que guerreou, não contra Carlos Magno mas contra Carlos Martel. (Revue des questions historiques). Rajna (1884). Léon Jordan (1908), Castets (1909) considerando a mesma tese, mas Castets, sem demonstrá-lo, identifica os quatro filhos Aymon aos quatro filhos de Clotário: Clodoveu, Meroveu, Gondovaldo e Childeberto.
    Gaston Paris atribui esse poema de dezoito mil versos a Huon de. Villeneuve, enquanto que Bédier estabelece um paralelo com a vida de Santo Agilolfo, que conteria todo o elemento histórico.
    5. — Conclusão
    Essa lenda de situações dramáticas, ternas, trágicas ou burlescas é a epopéia de vassalos rebeldes que lutam contra seu senhor. Com um fundo maravilhoso e cômico, cenas pueris e joviais. Les quatre fils Aymon caracterizam essa literatura feudal acentuada por uma espiritualidade cristã e pagã. A verdade histórica desaparece perante a verdade psicológica. Mais do que na Canção de Rolando, temos o retrato da sociedade dos Capetos na qual os vassalos são freqüentemente insolentes e intrépidos; guardam contudo um certo senso da honra e essa perseguição implacável dos quatro irmãos, cercada de maravilhoso, continua a ser uma obra das mais atraentes.
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    A Canção de Rolando

    Tema da canção
    Carlos Magno deve negociar com o rei muçulmano de Saragoça que pede paz. Ganelon, o traidor, permite que Marsile cerque a retaguarda comandada por Rolando. Quando este se decide a pedir socorro a seu tio, todos os bravos, inclusive Olivier e o arcebispo Turpin, morrem. Carlos Magno aniquila os sarracenos e em Aix-la-Chapelle. Ganelon é esquartejado.
    2. — Tema histórico
    Einhard escreve em aproximadamente 800 (Vita Karoli, IX) que o emir da Saragoça solicitou o auxílio de Carlos contra os príncipes muçulmanos (777 em Paderborn) No dia 19 de abril de 778 Carlos Magno atravessa os Pireneus, toma Pampelune e malogra-se em Saragoça. No dia 15 de agosto de 778 sua retaguarda é surpreendida pelos bascos no desfiladeiro de Roscenvales. Carlos não pode castigar os montanheses.
    Desta forma, para os bascos, a imaginação popular teria substituído os sarracenos, inimigos arraigados dos cristãos.
    Conforme a versão árabe de Ibn-al-Athir (século XIII), os sarracenos aliciados junto aos francos, teriam auxiliado os bascos.
    Gaston Paris adere a esta opinião e diz que Einhard registrou um fato inexato para poupar o amor-próprio dos francos.
    3. — Arquivos históricos
    Estes acontecimentos são ainda anotados nos Anais de Angilbert, em 778, na crônica do astrônomo Limousin Vita Kludovici.
    Eis a crônica do frade de Silos (aproximadamente 1110), ato da fundação da abadia de Saint-Pede-Gèneres em Bearn (1096); história eclesiástica de Fleury (1109); epístola III de Raoul le Tourtier (antes de 1114); Les exploits de Tancrède (As proezas de Tancredo), de Raoul de Caen (1112-1118). Uma cruz adorna a gola de Cize antes de 1106 e é mencionada numa Carta Episcopal de Baiona, em 980; os arquivos de Pampelune (1127), falam de uma capela erguida por Carlos Magno nesse local de carnificina.
    4. — Os personagens históricos
    Rolando era verossimilmente um conde de la Marche da Bretanha. Carlos, que na realidade tem apenas trinta e sete anos, torna-se o imperador da “Barba florida”. A lenda deforma os fatos e, para melhor expor a bravura de Rolando, quatrocentos mil sarracenos combatem vinte mil francos.
    Costuma-se relacionar também esses acontecimentos históricos a Guilherme, duque de Septimânio, de Toulouse e de Aquitânia, que, em 793 foi derrotado pelos sarracenos, em Villedaigne. Em 806, Guilherme retirou-se para o mosteiro de Gellone onde morreu em odor de santidade (28 de maio de 812). O mosteiro fez sua apologia e assim foi inspirada a lenda.
    5. — Os manuscritos
    A versão assonante do manuscrito de Oxford (quatro mil versos em decassílabos do início do século XII) é a mais conhecida. Bédier localiza-a entre 1080 e 1134. Para Gregório, essa versão prender-se-ia ao episódio de Baligant. A de decassílabos assonantes conservada na biblioteca de São Marcos, em Veneza, está muito próxima do texto de Oxford (manuscrito IV, fundo francês). Nas versões rimadas, notamos o manuscrito de Châteauroux; outro grupo compreende textos semelhantes (manuscrito VII, São Marcos, em Veneza; Biblioteca Nacional de Lião, Cambridge.
    O Rolando alemão foi escrito por Konrad (Ruolandes liet) conforme o texto de Oxford; o mesmo se dá com a versão norueguesa redigida em, aproximadamente, 1240, por ordem do rei da Noruega Haakon V (Capítulo VIII da Karlamagnussaga). Deve-se ainda registrar uma versão galesa (século XIV), dos poemas ingleses, neerlandeses, latinos (Carmen de prodicione Guenonis), ou os dois poemas de Apt em língua provençal (estudados por Mario Roques).
    6. — O autor
    O último verso do poema de Oxford: Ci falt la geste que Turoldus déclinet fez com que se procurasse o sentido de “déclinet” que tanto pode significar procurar, refundir ou recitar. Faral (Les jongleurs en France, 1910) mostrou essa aristocracia das clérigos menestréis. Turold seria então um “pelotiqueiro considerado autor”, provavelmente de origem normanda. Na tapeçaria de Bayeux aparece um Turold que se julgou ser um padre, beneditino de Fécamp, filho do antigo preceptor de Guilherme, o Conquistador (Génin). Tavernier pensa no bispo de Bayeux, nascido entre 1055 e 1060.
    Para Boissonnade (1923), esse clérigo pelotiqueiro, de caráter independente e fé profunda, oriundo de Avranchin, teria sido o companheiro de Roger de Seis ou Sai; seus nomes são encontrados numa Carta do capítulo Notre-Dame de Tudela.
    7. — Origem
    Sendo a teoria das cantilenas destruída por Rajna, a crítica de Bédier parece tornar-se definitiva. A importância dos santuários situados entre Blaye e Roscenvales — la Via Tolosana — é confirmada na lenda que envolve a vida secular de Guilherme. Os louvores religiosos, conservados nos anais de 1124 com os atos de doação, certamente excitaram ainda mais a imaginação do poeta de profissão do que a magra informação contida nos anais carolíngios.
    É por essa razão que Mireaux, baseando-se no Guide des Pèlerins (1140) investiga se o olifante exposto em Saint-Seurin de Bordéus existia antes da canção ou se foi originado por ela. Boissonnade liga o evento da nossa canção às empreitadas das cruzadas francesas na Espanha nos séculos XI e XII.
    8. — Valor da lenda
    As canções evocam personagens históricos. Para Pauphilet (Romania, LIX, 1933), o principal personagem continua a ser Carlos Magno. Mas para Mireaux, a obra de Turold visaria a glória e os desígnios de Henrique Plantageneta tornando sua a concepção cisterciense da cruzada.
    Todavia, as memórias evocadas pelo autor são as que mais nos interessam. Mário Roques (Romania, n.o 263, julho de 1940), mostrou a preocupação do poeta perante as verdades materiais e psicológicas. É enfim uma obra de criação poética na qual os temas tornaram-se imortais.
    Essa lenda simboliza também as guerras efetuadas por Carlos Martel e principalmente as de Carlos Magno a fim de realizar a unificação do catolicismo; para agradecê-lo por este fato, o Papa Leão III coroou Carlos Magno imperador, no dia de Natal no ano 800.
    9. — Sucessão literária
    Se A. Fabre (campeão 1941) mostrou que La chanson de Roland era a origem e a base da Chanson de Sainte-Foy, Le dit de la bande d’Igor é o tema russo em homenagem aos “príncipes que se bateram pelos cristãos contra os exércitos pagãos”.
    O assunto inspira o romance de Gabien, as Conquestes de Charlemagne de David Aubert. Mas depois de Spagna, o Morgante de Pulci (1485) dirige Rolando para o burlesco. O ideal mundano aparece mais desenvolvido no Roland amoureux. Mas Boiardo falece (1494) deixando sua obra inacabada. Ariosto vê apenas em Rolando um amante enganado, mas seu Roland furieux (1516-1532) influencia Mairet; Quinault (1685) compõe com a música de Lully. Vigny, ao escrever Le cor (1825) pensa na narração de Turpin; Monin (1832) atrai a atenção dos letrados com seu Roman de Roncevaux, enquanto Francisque Michel estudava o manuscrito de Oxford.
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    AS CANÇÕES DE GESTA


    As canções de gesta nasceram na excitação religiosa e guerreira; os frades e os prestidigitadores desenvolveram seu suporte histórico, a ficção embrionária num objetivo preciso. Não são obras coletivas; gentes de ofício fixaram uma obra maduramente pensada. Bédier demonstrou a influência exercida pela vida dos santos, e a marcha dessas epopéias nas vidas dos santuários; pois que essas obras morais deviam reter e “explorar o peregrino”.
    1. — Histórico das teorias sobre a origem
    1. Em 1830, para Fauriel, Wolf, Herder e Edgar Quinet, a lenda vem de um canto popular contemporâneo ao evento histórico. A poesia nasceu espontaneamente; esses contos são “Ilíadas em potência”
    2. Os irmãos Grimm “germanizaram” as canções de gesta. Essa poesia popular exprime a alma da coletividade; não é escrita por um poeta, mas pelo povo. Os escribas apenas a coletaram. J. J. Ampère é da mesma opinião;
    3. Em 1835, Leroux de Lincy denomina de Cantilenas os velhos cantos populares. Essa teoria das origens faz parte do ensino com as Histoires de la littérature française de Demogeot (1851) e de Gérusez (1852);
    4. Gaston Paris admite essa origem mas controla os cantos que seriam de origem merovíngia e não tudesca;
    5. Em 1884, Pio Rajna mostra que a canção de gesta é o término da epopéia merovíngia herdeira da epopéia franca; foi adaptada somente para a aristocracia germânica. (Carlos Magno fala alemão). Rajna arruina a teoria das cantilenas e mostra que a epopéia era composta de longos poemas estruturais. Mayer conserva a tradição oral, Gaston Paris, a noção do canto lírico-épico;
    6. Bédier observa a importância dos santuários situados nas estradas das grandes peregrinações que conduzem para São Tiago de Compostela. Assim sendo, a igreja é o berço das canções de gesta. que nada mais são do que “a história poética de uma estrada”. Bédier traçou a “estrada dos santuários”. A chanson de Fierabras foi composta pela abadia de Saint-Denis para que melhor se venerasse o Cravo da Cruz e a Coroa de Espinhos do Cristo.
    2. — Situação dos ciclos
    Indicamos sumariamente a composição de três ciclos principais:
    A) Gesta do rei Carlos Magno — É o ciclo mais nobre; narra guerras santas efetuadas pelo Imperador. A título de indicação citaremos como a mais antiga canção de gesta a Chanson de Roland.
    Observemos a descrição das guerras santas: Da Itália (Canções d’Aspremont, d’Otinel, as Canções Enfances d’Ogler, de Balan, de Jean de Lanson, de Bete et Milon); da Palestina (Canção de Miran, Pèlerinage à Jerusalém, o Chevalier au Cygne, Chanson d’Antioche); da Bretanha a fim de libertar as sete igrejas (Chanson d’Aiquin); contra os Saxônios (Chanson de Saisnes); da Espanha (Chanson de l’Entrée en Espagne, de La prise de Pampelune, de Pierabras, e d’Agolant, de Roland, de Galien, d’Anseis).
    B) A gesta de Garin de Monglane — São as pesquisas de Luis, filho de Carlos Magno, apoiado pelo cavaleiro Guilherme. Não tratando deste ciclo, daremos alguns dados.
    1. O coroamento de Luís — Poema do século XII que marca a chegada de Luis em Aix-la-Chapelle. Guilherme Fierebrace — o verdadeiro herói — combate até Corsolt, o gigante. Cogitou-se historicamente no conde de Toulouse, Guilherme, que foi defensor das marchas meridionais contra os sarracenos. Ao retirar-se para o mosteiro em 806, tornou-se São Guilherme do Deserto; nossos dados limitam-se a esta descrição. Guilherme morreu antes do coroamento de Luís.
    2. O carreto de Nimes — Por ocasião da distribuição de méritos e feudos, Guilherme foi esquecido pelo rei. Reivindica então o direito de conquistar a Espanha e o reinado de Nimes. Penetra em Nimes disfarçado num vendedor de barris de sal onde estão escondidos, na realidade, seus soldados. (O que nos faz lembrar o cavalo de pau da Ilíada ou As mil e uma noites).
    Guillaume au court nez (Guilherme de nariz curto) é um herói popular; a narração é truculenta, pitoresca e cômica. Notemos o episódio da morte do cavaleiro Renouart no qual o autor pensa no ciclo arturiano ao falar da fada Morgana e do rei Artur. Guilherme está ainda presente na Prise d’Orange (Tomada de Orange), Aliscans.
    Os ascendentes de Guilherme estão presentes com:
    1. Aymeri de Narbonne — Cinco mil versos decassilábicos atribuídos a Bertrand de Bar-sur-Aube (Princípio do século XIII), divididos em cinco manuscritos anônimos. Aymeri, depois de haver conquistado Narbonne partiu para a Itália a fim de desposar Hermengarda, irmã do rei dos Lombardos. Deve reconquistar dos sarracenos aquilo que lhe pertencia.
    Com o Département des enfants d’Aymeri vemos a luta de seus sete filhos contra os sarracenos. Aymeri morre combatendo os Centauros (os Sagitários); seus quatro mil versos têm o titulo La mort d’Aymeri de Narbonne.
    Victor Hugo lembrou-se dessa lenda em Aymerillot (A lenda dos séculos).
    2. Girardo de Viena — Durante sete anos Girardo é sitiado em Viena por Carlos Magno. Oliver combate ao lado de Girardo. Ora, Rolando apaixona-se por Aude, irmã de Oliver. A fim de terminar a guerra, Rolando e Oliver empenham-se num combate implacável; um anjo aparta os combatentes e Rolando esposa Aude.
    Baseado nesse tema, Victor Hugo escreve Le mariage de Roland (O casamento de Rolando), La Légende des siècles (A lenda dos séculos).
    Mas os descendentes de Guilherme deram origem a: Les enfances de Vivien (As infâncias de Vivien), Foucon de Candis, La batalhe Loquifer (A batalha Loquifer), Rénier enquanto que seus irmãos estão presentes no Bovon de Commarcis, Le siége de Barbastre (O sitio de Barbastre), Guibert d’Andrenas ou La prise de Cordoue (A tomada de Córdoba). C) A gesta de Doon de Mogúncia — É a narração da revolta dos cavaleiros rebeldes de Carlos Magno. Estudaremos melhor na Chevalerie d’Ogier os Quatre fils Aymon (Os quatro filhos Aymon), lenda justamente célebre e que é prosseguida por Maugis d’Aigremont e La mort de Maugis (A morte de Maugis).
    O orgulho, a loucura, o exagero formam o fundo dessas canções onde rancores imperdoáveis nasceram (Chanson d’Aubri le Bourguignon, de Basin, de Girard de Roussillon, de Gormond). Mas, às vezes, os barões já não lutam contra Carlos Magno e sim entre si (Raoul de Cambrai, Les Lorrains).
    Observemos que a história de Gormond e Isambard foi composta pelo, abade Hariulf, em 1088, conforme a crônica de Saint-Riquier. É pois ainda um santuário que guardou a tradição doa invasores escandinavos que ameaçaram a França em 879. E exato que um dos Wikings se chamava Gormond, que seus bandos devastaram Ponthieu em 2 de fevereiro de 881, e que no dia 3 de agosto de 881, Luis III os desalojou. As crônicas anglo-saxônicas mencionam um Gormond estabelecido em Circester em 879 e um clérigo cometeu o contra-senso de confundir os dois Gormond.
    D) Finalmente os empresários dos espetáculos desejaram satisfazer os públicos mais vulgares. As canções de gesta se transformaram em melodramas. Surgiu o tema da inocência perseguida (Elie de Saint-Gilles, Doon de La Roche...), o das damas oprimidas (Berthe aux grands plods, Les enfances Doon, Orson de Beauvais). São peças moralistas onde se assiste ao castigo do crime.

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    Convite à Filosofia

    De Marilena Chaui
    Ed. Ática, São Paulo, 2000.
    Unidade 1
    A Filosofia
    Capítulo 4
    Principais períodos da história da Filosofia
    A Filosofia na História
    Como todas as outras criações e instituições humanas, a Filosofia está na História e tem uma história.
    Está na História: a Filosofia manifesta e exprime os problemas e as questões que, em cada época de uma sociedade, os homens colocam para si mesmos, diante do que é novo e ainda não foi compreendido. A Filosofia procura enfrentar essa novidade, oferecendo caminhos, respostas e, sobretudo, propondo novas perguntas, num diálogo permanente com a sociedade e a cultura de seu tempo, do qual ela faz parte.
    Tem uma história: as respostas, as soluções e as novas perguntas que os filósofos de uma época oferecem tornam-se saberes adquiridos que outros filósofos prosseguem ou, freqüentemente, tornam-se novos problemas que outros filósofos tentam resolver, seja aproveitando o passado filosófico, seja criticando-o e refutando-o. Além disso, as transformações nos modos de conhecer podem ampliar os campos de investigação da Filosofia, fazendo surgir novas disciplinas filosóficas, como também podem diminuir esses campos, porque alguns de seus conhecimentos podem desligar-se dela e formar disciplinas separadas.
    Assim, por exemplo, a Filosofia teve seu campo de atividade aumentado quando, no século XVIII, surge a filosofia da arte ou estética; no século XIX, a filosofia da história; no século XX, a filosofia das ciências ou epistemologia, e a filosofia da linguagem. Por outro lado, o campo da Filosofia diminuiu quando as ciências particulares que dela faziam parte foram-se desligando para constituir suas próprias esferas de investigação. É o que acontece, por exemplo, no século XVIII, quando se desligam da Filosofia a biologia, a física e a química; e, no século XX, as chamadas ciências humanas (psicologia, antropologia, história).
    Pelo fato de estar na História e ter uma história, a Filosofia costuma ser apresentada em grandes períodos que acompanham, às vezes de maneira mais próxima, às vezes de maneira mais distante, os períodos em que os historiadores dividem a História da sociedade ocidental.
    Os principais períodos da Filosofia
    Filosofia antiga
    (do século VI a.C. ao século VI d.C.)
    Compreende os quatro grandes períodos da Filosofia greco-romana, indo dos pré-socráticos aos grandes sistemas do período helenístico, mencionados no capítulo anterior.
    Filosofia patrística
    (do século I ao século VII)
    Inicia-se com as Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e termina no século VIII, quando teve início a Filosofia medieval.
    A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e João) e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião - o Cristianismo - com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertê-los a ela. A Filosofia patrística liga-se, portanto, à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos.
    Divide-se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina (ligada à Igreja de Roma) e seus nomes mais importantes foram: Justino, Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho, Beda e Boécio.
    A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos greco-romanos: a idéia de criação do mundo, de pecado original, de Deus como trindade una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição dos mortos, etc. Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo, já que tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade. Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho e Boécio, a idéia de “homem interior”, isto é, da consciência moral e do livre-arbítrio, pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo.
    Para impor as idéias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus (através da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos divinos, seriam dogmas, isto é, irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, surge uma distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema de toda a Filosofia patrística é o da possibilidade de conciliar razão e fé, e, a esse respeito, havia três posições principais:
    1. Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão (diziam eles: “Creio porque absurdo”).
    2. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé (diziam eles: “Creio para compreender”).
    3. Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturar-se (a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura).
    Filosofia medieval
    (do século VIII ao século XIV)
    Abrange pensadores europeus, árabes e judeus. É o período em que a Igreja Romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à Terra Santa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. E, a partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia medieval também é conhecida com o nome de Escolástica.
    A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles, embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico (vindo da Filosofia de Plotino, do século VI d.C.), e o Aristóteles que conhecessem fosse aquele conservado e traduzido pelos árabes, particularmente Avicena e Averróis.
    Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística, a Filosofia medieval acrescentou outros - particularmente um, conhecido com o nome de Problema dos Universais - e, além de Platão e Aristóteles, sofreu uma grande influência das idéias de Santo Agostinho. Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã, que é, na verdade, a teologia. Um de seus temas mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma, isto é, demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano imortal.
    A diferença e separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo), a diferença entre razão e fé (a primeira deve subordinar-se à segunda), a diferença e separação entre corpo (matéria) e alma (espírito), O Universo como uma hierarquia de seres, onde os superiores dominam e governam os inferiores (Deus, arcanjos, anjos, alma, corpo, animais, vegetais, minerais), a subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos: eis os grandes temas da Filosofia medieval.
    Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para expor as idéias filosóficas, conhecida como disputa: apresentava-se uma tese e esta devia ser ou refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles, de Platão ou de outros Padres da Igreja.
    Assim, uma idéia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por causa desse método de disputa - teses, refutações, defesas, respostas, conclusões baseadas em escritos de outros autores -, costuma-se dizer que, na Idade Média, o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma idéia é considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo).
    Os teólogos medievais mais importantes foram: Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. Do lado árabe: Avicena, Averróis, Alfarabi e Algazáli. Do lado judaico: Maimônides, Nahmanides, Yeudah bem Levi.
    Filosofia da Renascença
    (do século XIV ao século XVI)
    É marcada pela descoberta de obras de Platão desconhecidas na Idade Média, de novas obras de Aristóteles, bem como pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e romanos.
    São três as grandes linhas de pensamento que predominavam na Renascença:
    1. Aquela proveniente de Platão, do neoplatonismo e da descoberta dos livros do Hermetismo; nela se destacava a idéia da Natureza como um grande ser vivo; o homem faz parte da Natureza como um microcosmo (como espelho do Universo inteiro) e pode agir sobre ela através da magia natural, da alquimia e da astrologia, pois o mundo é constituído por vínculos e ligações secretas (a simpatia) entre as coisas; o homem pode, também, conhecer esses vínculos e criar outros, como um deus.
    2. Aquela originária dos pensadores florentinos, que valorizava a vida ativa, isto é, a política, e defendia os ideais republicanos das cidades italianas contra o Império Romano-Germânico, isto é, contra o poderio dos papas e dos imperadores. Na defesa do ideal republicano, os escritores resgataram autores políticos da Antigüidade, historiadores e juristas, e propuseram a “imitação dos antigos” ou o renascimento da liberdade política, anterior ao surgimento do império eclesiástico.
    3. Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino, tanto através dos conhecimentos (astrologia, magia, alquimia), quanto através da política (o ideal republicano), das técnicas (medicina, arquitetura, engenharia, navegação) e das artes (pintura, escultura, literatura, teatro).
    A efervescência teórica e prática foi alimentada com as grandes descobertas marítimas, que garantiam ao homem o conhecimento de novos mares, novos céus, novas terras e novas gentes, permitindo-lhe ter uma visão crítica de sua própria sociedade. Essa efervescência cultural e política levou a críticas profundas à Igreja Romana, culminando na Reforma Protestante, baseada na idéia de liberdade de crença e de pensamento. À Reforma a Igreja respondeu com a Contra-Reforma e com o recrudescimento do poder da Inquisição.
    Os nomes mais importantes desse período são: Dante, Marcílio Ficino, Giordano Bruno, Campannella, Maquiavel, Montaigne, Erasmo, Tomás Morus, Jean Bodin, Kepler e Nicolau de Cusa.
    Filosofia moderna
    (do século XVII a meados do século XVIII)
    Esse período, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico, é marcado por três grandes mudanças intelectuais:
    1. Aquela conhecida como o “surgimento do sujeito do conhecimento”, isto é, a Filosofia, em lugar de começar seu trabalho conhecendo a Natureza e Deus, para depois referir-se ao homem, começa indagando qual é a capacidade do intelecto humano para conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos. Em outras palavras, a Filosofia começa pela reflexão, isto é, pela volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer sua capacidade de conhecer.
    O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência de si reflexiva, isto é, como consciência que conhece sua capacidade de conhecer. O sujeito do conhecimento é um intelecto no interior de uma alma, cuja natureza ou substância é completamente diferente da natureza ou substância de seu corpo e dos demais corpos exteriores.
    Por isso, a segunda pergunta da Filosofia, depois de respondida a pergunta sobre a capacidade de conhecer, é: Como o espírito ou intelecto pode conhecer o que é diferente dele? Como pode conhecer os corpos da Natureza?
    2. A resposta à pergunta acima constituiu a segunda grande mudança intelectual dos modernos, e essa mudança diz respeito ao objeto do conhecimento. Para os modernos, as coisas exteriores (a Natureza, a vida social e política) podem ser conhecidas desde que sejam consideradas representações, ou seja, idéias ou conceitos formulados pelo sujeito do conhecimento.
    Isso significa, por um lado, que tudo o que pode ser conhecido deve poder ser transformado num conceito ou numa idéia clara e distinta, demonstrável e necessária, formulada pelo intelecto; e, por outro lado, que a Natureza e a sociedade ou política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito, porque elas são inteligíveis em si mesmas, isto é, são racionais em si mesmas e propensas a serem representadas pelas idéias do sujeito do conhecimento.
    3. Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode ser plenamente captada pelas idéias e conceitos preparou a terceira grande mudança intelectual moderna. A realidade, a partir de Galileu, é concebida como um sistema racional de mecanismos físicos, cuja estrutura profunda e invisível é matemática. O “livro do mundo”, diz Galileu, “está escrito em caracteres matemáticos.”
    A realidade, concebida como sistema racional de mecanismos físico-matemáticos, deu origem à ciência clássica, isto é, à mecânica, por meio da qual são descritos, explicados e interpretados todos os fatos da realidade: astronomia, física, química, psicologia, política, artes são disciplinas cujo conhecimento é de tipo mecânico, ou seja, de relações necessárias de causa e efeito entre um agente e um paciente.
    A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser conhecidas e transformadas pelo homem. Nasce a idéia de experimentação e de tecnologia (conhecimento teórico que orienta as intervenções práticas) e o ideal de que o homem poderá dominar tecnicamente a Natureza e a sociedade.
    Predomina, assim, nesse período, a idéia de conquista científica e técnica de toda a realidade, a partir da explicação mecânica e matemática do Universo e da invenção das máquinas, graças às experiências físicas e químicas.
    Existe também a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e das emoções e, pela vontade orientada pelo intelecto, é capaz de governá-las e dominá-las, de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional.
    A mesma convicção orienta o racionalismo político, isto é, a idéia de que a razão é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como mantê-lo racionalmente.
    Nunca mais, na história da Filosofia, haverá igual confiança nas capacidades e nos poderes da razão humana como houve no Grande Racionalismo Clássico. Os principais pensadores desse período foram: Francis Bacon, Descartes, Galileu, Pascal, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, Locke, Berkeley, Newton, Gassendi.
    Filosofia da Ilustração ou Iluminismo
    (meados do século XVIII ao começo do século XIX)
    Esse período também crê nos poderes da razão, chamada de As Luzes (por isso, o nome Iluminismo). O Iluminismo afirma que:
    ● pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política (a Filosofia da Ilustração foi decisiva para as idéias da Revolução Francesa de 1789);
    ● a razão é capaz de evolução e progresso, e o homem é um ser perfectível. A perfectibilidade consiste em liberar-se dos preconceitos religiosos, sociais e morais, em libertar-se da superstição e do medo, graças as conhecimento, às ciências, às artes e à moral;
    ● o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações, que vão das mais atrasadas (também chamadas de “primitivas” ou “selvagens”) às mais adiantadas e perfeitas (as da Europa Ocidental);
    ● há diferença entre Natureza e civilização, isto é, a Natureza é o reino das relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e imutáveis, enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela vontade livre dos próprios homens, em seu aperfeiçoamento moral, técnico e político.
    Nesse período há grande interesse pelas ciências que se relacionam com a idéia de evolução e, por isso, a biologia terá um lugar central no pensamento ilustrado, pertencendo ao campo da filosofia da vida. Há igualmente grande interesse e preocupação com as artes, na medida em que elas são as expressões por excelência do grau de progresso de uma civilização.
    Data também desse período o interesse pela compreensão das bases econômicas da vida social e política, surgindo uma reflexão sobre a origem e a forma das riquezas das nações, com uma controvérsia sobre a importância maior ou menor da agricultura e do comércio, controvérsia que se exprime em duas correntes do pensamento econômico: a corrente fisiocrata (a agricultura é a fonte principal das riquezas) e a mercantilista (o comércio é a fonte principal da riqueza das nações).
    Os principais pensadores do período foram: Hume, Voltaire, D’Alembert, Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Schelling (embora este último costume ser colocado como filósofo do Romantismo).
    Filosofia contemporânea
    Abrange o pensamento filosófico que vai de meados do século XIX e chega aos nossos dias. Esse período, por ser o mais próximo de nós, parece ser o mais complexo e o mais difícil de definir, pois as diferenças entre as várias filosofias ou posições filosóficas nos parecem muito grandes porque as estamos vendo surgir diante de nós.
    Para facilitar uma visão mais geral do período, faremos, no próximo capítulo, uma contraposição entre as principais idéias do século XIX e as principais correntes de pensamento do século XX.


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    posted by iSygrun Woelundr @ 7:32 PM   0 comments
    APRESENTANDO FERNANDO PESSOA

    Carlos Bernardo

    Quantas pessoas cabem embaixo de uma máscara?
    Quantas máscaras cabem embaixo de uma pessoa?

    Longe está da nossa intenção, visto que estaremos falando da pessoa, estabelecer conexões estreitas entre biografia e obra. Mesmo sabendo que as duas inexoravelmente se pertencem, torna-se difícil, ou no mínimo problemático, efetuarmos ligações diretas e explícitas entre ambas.
    Se sabemos, por exemplo, que o pai do poeta morreu quando este contava cinco anos, as conclusões que podemos tirar deste fato, em relação à sua poética, devem ser muito cautelosas. Nada nos autoriza irmos além deste ponto.
    O próprio Fernando Pessoa, numa carta a João Gaspar Simões — o mesmo que, após a morte do poeta, elaborou algumas interpretações redutivas e, ao nosso ver, extremamente literais, em relação à sua personalidade — impôs limites à função do crítico:
    estudar o artista exclusivamente como artista, e não fazendo entrar no estudo mais do homem que o que seja rigorosamente preciso para explicar o artista; buscar o que poderemos chamar a explicação central do artista (tipo lírico, tipo dramático, tipo lírico elegíaco, tipo dramático poético, etc.); compreendendo a essencial inexplicabilidade da alma humana, cercar estes estudos e estas buscas de uma leve aura poética de desentendimento. Este terceiro ponto tem talvez qualquer coisa de diplomático, mas até com a verdade, meu querido Gaspar Simões, há que haver diplomacia.
    Diplomaticamente recusaremos este papel. Carl Gustav Jung é categórico quando diz que não devemos chamar um mineralogista para estudar a Catedral de Colônia porque ela é feita de pedras. A obra é mais do que a matéria prima com que foi fabricada.
    Além do mais, o autor, como figura central do processo literário, passou a ser muito questionado por teóricos de variadas orientações. Daremos três exemplos.
    Roland Barthes decreta a morte do autor. Cita, para ilustrar seus argumentos, um conto de Balzac intitulado Sarrasine, onde um dos personagens descreve algumas das características da Mulher. Esta descrição não nos interessa aqui. Mais importante é a questão formulada por Barthes: Quem fala dessa maneira acerca da mulher? O personagem? Balzac, o homem? Balzac, o escritor? É uma opinião coletiva? Originada de uma Psicologia Romântica? Várias interrogações poderiam ser acrescentadas, sem que tenhamos uma resposta satisfatória. Para Barthes isso irá ocorrer sempre que um fato é recontado com a única intenção de expressá-lo.
    O autor ainda reina nos manuais de história literária, em biografias de escritores, entrevistas em revistas, e na própria consciência de escritores ansiosos em unir, por meio de diários privados, sua pessoa e seu trabalho; a imagem da literatura encontrada na cultura contemporânea é tiranicamente centrada sobre o autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões; a crítica ainda consiste em dizer que a obra de Baudelaire é a falha do homem Baudelaire, a de Van Gogh é sua loucura, a de Tchaikovsky seu vício: a explicação do trabalho é ainda buscada na pessoa de seu produtor, como se, através da alegoria da ficção mais ou menos transparente, foi sempre, em última instância, a voz de uma única e mesma pessoa, o autor, que estaria transmitindo suas "confidências".

    O texto produzido não é considerado como o lugar onde o autor expressa suas mensagens, mas como um espaço multidimensional atravessado por uma multidão de escritos.
    Gaston Bachelard escolhe outra linha de argumentação. Nos vários textos que publicou sobre a imagem poética sempre enfatiza que a característica básica de qualquer imagem poética é a absoluta novidade de seu conteúdo. Esta novidade ou valor poético só se encontra livre para revelar-se quando é desvinculada do passado do poeta. O foco de interesse deixa de ser biográfico passando a ser exclusivamente literário. Tomemos como exemplo a primeira e a quarta estrofes do poema Aniversário, de Álvaro de Campos, buscando detectar esta tensão entre o passado do poeta e a novidade da imagem.
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu era feliz e ninguém estava morto.
    Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
    E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma re ligião qualquer.


    O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
    Pondo grelado nas paredes...
    O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
    O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
    É terem morrido todos,
    É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...Interpretando biograficamente estes versos, podemos com certeza associá-los às condições de vida de Fernando Pessoa. Antes de completar oito anos, já havia perdido o pai, o irmão, a casa e o próprio país com a mudança da família para a África. É muito provável que, por esta época, especificamente após seus cinco anos, quando morreu seu pai, as comemorações não devessem ser festivas. Basta lembrar histórias de famílias, mesmo católicas, que no dia 25 de dezembro, o dia do nascimento de seu salvador, não conseguem comemorar a data por causa de um parente morto, para compreendermos a dor da família do poeta. O poema teria origem no sofrimento do pequeno Fernando diante destes acontecimentos, sendo a prova de seu sofrimento na ocasião. O poema existe para efetuar uma catarse aristotélica, como se fosse uma espécie de grito de dor.
    Gaston Bachelard, porém, busca a novidade do poema, não o seu desvencilhar de emoções passadas. O poema abre um "porvir da linguagem", um desejo de ser compreendido em si mesmo, tal como um anjo anunciando sua boa nova, como se nunca soubéramos da história do poeta, que se torna desnecessária ao entendimento do poema.
    Consideramos este poema como uma das "chaves" (entre aspas por não gostarmos desta metáfora) da poética pessoana. Vemos nele a saudade de uma época quando a morte ainda não havia sido descoberta, quando o passar dos anos era representado apenas por um enfeite a mais sobre o bolo, quando a alegria era uma repetição num mundo sem tempo. Tudo destruído por este mesmo tempo, um tempo-morte, com sua implacável lei da transitoriedade, com a imobiliária lei da venda das casas. Hoje, quando passamos no lugar onde havia a nossa casa, mesmo que o pai e o irmão ainda estejam vivos, mesmo que não tenhamos ido a nenhuma África, sentimos saudades do "tempo em que festejavam o dia dos meus anos".
    Em resposta a João Gaspar Simões, Fernando Pessoa diz nunca sentir saudades da infância. Tem, sim, saudades das pessoas que amava, mas não do tempo em que as amava. Define sua índole como sendo a de um futurista.5 Bachelard entenderia esta definição em termos próximos a esta sua tese da novidade da poesia, pois ela sempre remete a um futuro, na medida em que acrescenta algo à consciência. "Existe um futurismo em todo universo sonhado".
    Gaston Bachelard inverte os fatores que compõem a relação entre a vida do poeta e a poesia que, por seu inter-médio, se revela. Na matemática, somos ensinados, a ordem dos fatores não altera o produto, mas na literatura (e na psicologia) obtemos resultados completamente diferentes com uma simples inversão. Por isso, para evitar a atitude do crítico que avaliou a obra de Verlaine a partir do chapéu que ele usava, Bachelard escreveu:
    A crítica literária psicológica nos dirige para outros interesses. De um poeta ela faz um homem. Mas nas grandes realizações da poesia o problema permanece inteiro: Como pode um homem, apesar da vida, tornar-se poeta?7
    Por último, vamos lembrar o estudo de Francisco Achcar intitulado "Lírica e Lugar-Comum". Achcar mostra que a poesia lírica — embora considerada como sendo a expressão subjetiva do eu do poeta, uma confissão de emoções sentidas — possui, em sua constituição, uma série de temas, lugares-comuns ou "topoi". A presença destes topoi leva ao questionamento da absoluta originalidade da poesia lírica e das teorizações que a definem como poesia do eu. A originalidade escontra-se no uso destes temas que, em si mesmos, são fornecidos pela tradição, não importando agora sua origem primeira. Concluimos que a lírica não é uma poética absoluta e exclusivamente pessoal.
    Outro aspecto sobre o qual Achcar chamou a atenção refere-se à também discutida sinceridade da lírica. Em geral esta sinceridade é entendida como uma correspondência entre o que diz o eu-lírico no poema e a experiência extrapoética do poeta. Acredita-se, portanto, haver uma relação estreita entre o poema e o estado de espírito do poeta, daí a sinceridade da lírica.
    Mas, Achcar argumenta, se compararmos esta sinceridade com "fides", termo da retórica antiga, traduzido como "confiança" ou "pacto de lealdade", teremos uma outra concepção desta sinceridade. Ou seja, ela não precisa ser literal. Ela está ligada ao "efeito de verdade" que o texto exerce sobre o leitor-receptor.
    Portanto, em sua aplicação literária, fides designa um efeito de mímese bem realizada e não corresponde à idéia de sinceridade no que esta possa ter de extrapolação psicológica ou biografista.
    Tudo isto é de importância vital quando pretendemos estudar um "autor" que, quando fala com sinceridade, não sabe com que sinceridade fala.9 Para Fernando Pessoa, a diferença entre literatura insincera e literatura sincera não está no que o poeta sente, mas sim no que o poema transmite ao leitor. Concordando, dessa forma, com Francisco Achcar, o poeta escreve:
    Chamo de insinceras às coisas feitas para fazer pasmar, e às coisas, também — repare nisto, que é importante — que não contêm uma fundamental idéia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade e do mistério da Vida.
    Estas idéias metafísicas não são invenções originais e pessoais de Fernando Pessoa e heterônimos, mas são idéias disseminadas na cultura, transmitidas desde o momento em que o homem passou a ter consciência da sua delicada e especial posição existencial.
    Por este motivo (e por outros que serão revelados ao longo deste trabalho) não podemos aceitar as interpretações de João Gaspar Simões, redutivas, como já falamos, e muito pouco imaginativas. Em especial, rejeitamos sua leitura da infância do poeta. Não, necessariamente, por ela ser impossível, mas por ser exageradamente unilateral e por fornecer poucos dados que a confirmem ou a tornem mais aceitável. Podemos dizer que esta leitura se aproxima daquilo que Umberto Eco denominou super-interpretação.
    Com certeza, foram dolorosas a morte do pai, quando o poeta tinha cinco anos; a morte do irmão um ano depois; a partida para a África aos sete anos de idade; até mesmo, mas não obviamente, o segundo casamento da mãe. Porém, somente estes dados não podem levar pacificamente às conclusões que João Gaspar Simões tirou.
    Talvez que, se nunca tivesse deixado a sua Lisboa do Largo de S. Carlos e da Rua de S. Marçal, Fernando Pessoa não houvesse chegado a ser o poeta que foi. Mas, se não tem ido à Africa, isso não há dúvida: não teria sido o poeta que realmente é. O segundo casamento da mãe representa, efectivamente, na sua vida alguma coisa de tão importante que é impossível não datarmos desta dolorosa partida do Tejo o início da aventura poética que fez do autor da Ode Marítima o mais audacioso argonauta da poesia portuguesa do século XX.
    Muitos deixaram os Largos de S. Carlos; muitos foram às Áfricas. Outros tantos perderam pai e irmão na infância. Outros ainda tiveram suas mães re-casadas. Mas poucos (ou nenhum) chegaram a ser poetas da categoria de Fernando Pessoa. Bastava consultar seus apontamentos para descobrir esta nota extremamente lúcida:
    Muitos homens lançam frases que contêm em germe grandes kantismos; mas somente Kant expande as frases à grandeza de mundos.
    O que pode ter acontecido com o crítico é que, entusiasmado com seus conhecimentos psicanalíticos, deslumbrou-se com a chance de aplicá-los ao poeta. Os elementos são de dar água na boca para quem quer ser, nas palavras do próprio Sigmund Freud, um analista selvagem. Menino, consegue livrar-se, com a ajuda do destino, de seus rivais, o pai e o irmão. Sozinho, nada mais o impede de caminhar em direção à sua grande amada, a mãe. Porém, o destino não lhe foi apenas favorável. Surge, como das brumas, um comandante, que se intromete nesta relação sagrada. A mãe, grande traidora, troca o amor do filho pelo do intruso. Partem para terras distantes, levando com eles o menino fracassado, roubando-lhe, inclusive a identidade nacional. O menino, contudo, já moço, consegue escapar de seu forçado exílio, retornando para sua pátria, para viver solitário e infeliz até o fim de seus dias. Este Oedipus Lusitanus estava pronto para ser revelado, tão óbvios seus elementos.
    James Hillman, à procura dos ensinamentos da literatura, pois acredita ter chegado a hora de a Psicologia aprender algo com ela, faz uma importante reavaliação das teorias psicológicas. Associando-as à idéia de enredo, chega à conclusão de que elas não passam de estórias, mitos, que acreditamos ser verdades científicas. Especificamente em relação à Psicanálise, acredita ser ela uma teoria com poucos enredos em sua estrutura: Édipo e mais uns poucos. Como estes enredos condicionam nossas maneiras de ver e de agir, a psicanálise tende a ler o mundo de acordo com esta escassez. Tudo é visto Edipicamente, não há espaço para outras perspectivas míticas. Numa verdadeira psicologia politeísta, Édipo é apenas um dos enredos, por mais importante que ele seja. Esta escassez de enredos pode ser vislumbrada na seguinte conclusão óbvia de João Gaspar Simões, ao pesquisar os documentos de Fernando Pessoa.
    Não tocámos, porém, na correspondência pelo poeta recebida da mãe e zelosamente por ele guardada, excesso de delicadeza de que mais tarde nos arrependeríamos. Com surpresa verificámos, todavia, que as cartas do poeta endereçadas à mesma senhora não haviam sido por ela conservadas — por ela ou por quem as herdara depois da sua morte, caso ela as houvesse conservado — e disso tirámos conclusões aliás óbvias. Se o filho guardara como um tesouro as cartas da sua mãe e a mãe não guardara as do seu filho, sem dúvida muito mais preciosas, até do ponto de vista literário, a conclusão a tirar era só uma: não ser grande nem o amor nem o apreço intelectual inspirados à mãe pelo filho.
    Sem dúvida, mais um exemplo de super-interpretação e de um enredo mono-mítico e mono-lítico que se repete. Fornecendo alguns dados históricos: a mãe de Fernando Pessoa, morando em Durban, na África do Sul, ficou viúva pela segunda vez; com seus três filhos planejou voltar para Portugal logo que ficassem mais velhos; neste intervalo ficou entrevada com todo o lado esquerdo do corpo afetado; voltou com os filhos para Portugal. Fernando Pessoa foi buscá-los no navio, "trêmulo, deslumbrado, ante aquela ruína cujo descalabro não via, tão ardente, tão ávido o seu desejo de a estreitar nos braços", como descreveu o crítico.

    Vamos testar nossas capacidades imaginativas e nossos dons literários, descobrindo outras possibilidades ao destino das cartas, visto que João Gaspar Simões não sabia o que ocorrera verdadeiramente com elas. Além da que ofereceu, que pode ser correta, não discutimos isso, podemos imaginar estas outras. A mala com as cartas foi roubada, ou ,na mudança , foi esquecida em Durban. A mãe, por sofrer com a saudade do filho, queimava as cartas num gesto mágico para fazer desaparecer o sofrimento. Um dos irmãos, invejoso de seu irmão poeta, destruiu as cartas. Devido ao problema cerebral que a mãe teve, ela não se lembrava mais onde havia guardado as preciosas cartas de seu filho poeta. Uma criada, condoída com o sofrimento da patroa ao receber as cartas de Portugal, as escondia para que não fossem por ela re-lidas. Elas desapareceram no incêndio que destruiu um grande armário, que ficava ao lado da lareira, onde eram guardados documentos importantes. O padrasto, enciumado,
    destruiu-as após uma discussão com a esposa. Pura e simplesmente as cartas não estavam guardadas junto aos papéis do poeta. Por conterem revelações íntimas do poeta à sua mãe, os herdeiros das cartas as esconderam dos olhares curiosos de pesquisadores. Para James Hillman a imaginação é inesgotável, daí o parar ser uma arte.
    As teses apresentadas por Roland Barthes, Gaston Bachelard e Francisco Achcar são suficientes, acreditamos, para criar um tensão e uma dúvida na fácil e, por vezes, ingênua relação entre autor e obra. Vamos, contudo, permanecer um pouco mais no tema. James Hillman nos oferece, amante que é das inversões, uma outra maneira de olharmos esta relação personalidade-obra. Denominou-a de "vida vivida de frente para trás". Para que não pareça absurda é preciso nos lembrar que a marca da poesia de Fernando Pessoa e da psicologia de James Hillman é o fingimento poético ou perspectiva ficcional.
    A inspiração dessa teoria, declara Hillman, veio da contemplação de uma das últimas telas de Picasso, Le Jeunne Pintre (O Jovem Pintor), realizada um ano antes de sua morte. Em rápidas e esquemáticas pinceladas, ela retrata um jovem pintor com um olhar agudo e obscuro, segurando uma paleta e um pincel, concentrado, como se estivesse espreitando o que pintar. Hillman a experimentou como se fosse o auto-retrato do daimon que habitou Picasso durante toda sua vida..
    No final, ele emergiu e mostrou-se. "Aqui", ele disse, "este é quem você é, Picasso, você sou eu, o pintor sempre jovem"... "Agora você vê quem te impulsionou, que te manteve puro e ativo, agora você já pode morrer."
    A vida de Picasso concentrou-se em servir a esta figura, a este daimon, palavra grega utilizada para nomear um guia, um espírito-diretor, um anjo, um mestre, qual Alberto Caeiro, um gênio.
    Se em nós habita um gênio, se nosso caminhar visa a realização deste gênio, sua individuação, muitas complicações da história concreta de uma pessoa podem ser compreendidas como um conflito entre as circunstâncias da vida cotidiana com as instruções e intenções do gênio.
    Algumas vezes, o gênio parece mostrar-se somente em sintomas e desordens, como uma espécie de medicina preventiva, mantendo-te afastado de rotas falsas.
    Ou seja, o gênio pode aparecer sob a forma de comportamentos classificados como patológicos. Por isso, a proposta de James Hillman de fazermos uma ampla revisão do nosso pensamento educacional, reavaliando as crianças e seus problemas.
    Não podemos compreender Leonardo da Vinci examinando seu relacionamento distorcido com sua mãe, como Freud tentou. Milhares de nós, milhões e milhões de nós, tiveram toda espécie de problema materno, mas há somente um Leonardo. E a excepcionalidade de Leonardo pode proporcionar melhores imagens e uma abordagem melhor e mais interessante aos meus problemas maternos do que compreender os problemas maternos ajudarão a compreender Leonardo.
    Invertidos, dessa forma, os parâmetros habituais de raciocínio, podemos aplicar esta teoria a Fernando Pessoa . Ele não criou os heterônimos porque era uma criança tímida e retirada, mas era uma criança tímida e retirada porque nele já habitava o daimon que o levaria a criar os heterônimos e seus questionamentos intensos. Absurda a teoria? Invoquemos a ajuda de Alberto Caeiro, deslocada de seu contexto, mas, em todo caso, útil.

    Por que razão que se perceba
    Não há de ser ela mais verdadeira
    Que tudo quanto os filósofos pensam
    E tudo quanto as religiões ensinam?
    Seguramente, se é possível usarmos esta palavra em relação a Fernando Pessoa, ele apreciaria esta teoria, visto ter sido o tema do gênio criador uma de suas principais preocupações e ao qual dedicou inúmeras páginas.
    Podemos encontrar num pequeno trecho de sua última carta à sua única namorada, a jovem Ophélia, uma importante manifestação desta questão. A carta, escrita em novembro de 1920, dava por encerrada a relação entre os dois. Nela, podemos ler:
    O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
    Não precisamos entender esta obediência a Mestres num sentido esotérico ou iniciático. Basta entendermos como Mestre a personificação de um impulso criador. Compreenderemos porque o poeta teve de dizer isso, com tristeza, à sua amada. Qual novo Camões, do naufrágio, à mulher, preferiu salvar os escritos. Assim ordenou o gênio. Assim determinou o Fado.
    Este tema do gênio, quer como potência que nos habita, quer como capacidade maior de expressão, aparece em inúmeros apontamentos do poeta.
    Hoje só me quero tal qual meu caráter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser.

    Fazendo um apanhando geral do que escreveu, vemos que para Fernando Pessoa o homem de gênio possui uma vida à parte, pois, em geral, é incompreendido na sua própria época. Sua essência é, portanto, a inadaptação ao ambiente. Essa genialidade não consiste numa originalidade absoluta, visto que o mundo está "repleto de idéias brilhantes" e de "génios do casual". O verdadeiro gênio é aquele que transforma esta casualidade em algo universal, por ser capaz de concentrar-se e elaborar as idéias. Por esta elaboração estar um passo à frente de seu tempo, o destino do gênio é a inadaptação à vida social, entendida através de parâmetros de normalidade. Fernando Pessoa é muito reticente em relação à fama e à celebridade. O pequeno gênio obtém fama por ter conseguido uma adaptação à sua época. O grande gênio, a princípio totalmente desconhecido em seu meio, posteriormente sobrevive a todas as épocas. Em seu Ultimatum , Álvaro de Campos, após ter despejado os mandarins, diz que a
    Europa
    Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para atrizes e para os produtos farmacêuticos.
    A seriedade e a importância dadas à poesia é uma das marcas de Fernando Pessoa, tanto na sua poesia ortônima quanto na heterônima, principalmente em Álvaro de Campos. Em carta ao seu religioso amigo Armando Cortes-Rodrigues, diz que a arte tem de ser feita com a consciência de se estar a cumprir um destino, não apenas consigo, mas com a humanidade. O próprio ato de escrever um bom poema toma proporções gigantescas, como viver ou morrer pelos versos. Dessa maneira Fernando Pessoa julgava que Milton escrevia seus sonetos, coisa rara devido a incapacidade construtiva, a mesquinhez da compreensão, a futilidade da sinceridade, a desordenada pobreza da imaginação que caracterizam nossos tempos.No Ultimatum, Álvaro de Campos diz desprezar o que seja menos que descobrir um Mundo Novo. O objetivo de resgatar o orgulho de ser Português, de pertencer à Raça dos Descobridores, leva ortônimo e heterônimos à conquista de novas glórias e à preocupação constante com o cenário político do
    país. Em Mensagem, Fernando Pessoa canta esta glória de seu povo, no intuito de recuperar sua essência, sua força, seus sonhos. Através do mito de D. Sebastião, sobre o qual mergulhou com fervor, Fernando Pessoa vê facilitado este projeto de re-estruturação nacional. Deixaremos, por enquanto, estas questões Sebastianistas, com a promessa de retomá-las posteriormente.
    Toda a vida do poeta foi direcionada para uma participação ativa na vida social portuguesa, mesmo que esta participação ativa tenha ocorrido no tímido recolhimento do poeta. Ele nunca deixou de dar sua opinião sobre os fatos de sua época. Escrevendo artigos literários e políticos, entrando em confronto e polêmica com pessoas importantes das letras e política portuguesas, Fernando Pessoa não foi, ao nosso entender, o anti-social como freqüentemente é retratado. O problema dos críticos é que, muitas vezes, não param para avaliar as bases de suas próprias críticas, confrontando suas posições. Diferentemente de Fernando Pessoa, não sabem ser muitos. Andrés Ordoñez, por exemplo, escreve que Fernando Pessoa não encontra conforto nem no metafísico nem no concreto social, pois negou-se "à resposabilidade das instituições: família, trabalho, escola etc." Achamos que tudo pode ser visto de outra maneira. Parece que a necessidade de institucionalizar-se exige estes três
    comprometimentos. Com sua recusa, Fernando Pessoa passa a receber o estigma de anti-social. Esquecemos que abrir mão de um caminho universitário, por discordância com seus métodos, como fez Fernando Pessoa, pode ser prova de grande preocupação social. Um protesto solitário, sim, mas um protesto. Da mesma forma não somos sociais apenas constituindo família e trabalhando para ganhar algum dinheiro para manter o sistema econômico funcionando. Fernando Pessoa tinha outras ambições, outros objetivos, e estes resumiram-se na realização de sua obra.
    Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso."
    Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para casar com o que sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
    Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
    Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.
    Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
    É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
    Fernando Pessoa — por não ter constituído família: mulher, dois filhos, a sogra, mais a mãe entrevada; por não ter trabalhado em algum escritório ou Banco, de oito a dez horas por dia, e fazer traduções à noite para poder aumentar sua renda, pois as despesas familiares estavam elevadas; agüentar, até o último momento, só para ter um um diploma universitário, ser julgado por pessoas muitas vezes bem abaixo de sua capacidade — é chamado de anti-social. Está na hora, como dissemos, de os estudiosos avaliarem suas definições e julgamentos. Para tanto a psicologia politeísta de James Hillman será de grande ajuda, pois uma das contribuições fundamentais da Psicologia Arquetípica é a atitude de constantemente revermos nossos pontos de vista e as fantasias que condicionam nosso pensamente.
    Por tudo que foi discutido até agora, é fácil dizer que apresentar o poeta não é tarefa sem riscos. Estes riscos, contudo, são comuns na apresentação de qualquer pessoa que tenha ido às últimas conseqüências na afirmação da complexidade do psiquismo. Fernando Pessoa assumiu toda esta complexidade tanto em relação ao que denominam mundo interno quanto em relação ao mundo externo, tanto em relação aos aspectos positivos quanto aos aspectos negativos desse mesmo psiquismo.
    Ir às últimas conseqüências é caminhar na linha divisória entre razão e loucura, vida e morte, realidade e sonho. Foi nesta faixa estreita e insegura, porém fértil, que o poeta mais e melhor habitou.
    Vamos realizar um pequeno movimento, útil, segundo James Hillman, para quebrar ainda mais a rigidez do pensamento que tem dificuldades de transformar fatos, históricos ou não, em imagens que possam ser trabalhadas poeticamente. Vamos ver Fernando Pessoa como mais um heterônimo, como mais uma figura da alma, libertando-nos de vez do peso da concretitude biográfica. Usando pela primeira vez, em nosso trabalho, a linguagem da alquimia, poesia feita com a matéria, os metais das concretitudes devem ser dissolvidos pelos ácidos da poeticidade.
    Graças a este movimento, seremos capazes de dizer que o nascimento do poeta entre a Igreja dos Mártires e o Teatro Lírico de Lisboa representa a eqüidistância entre religiosidade e drama por ele mantida. Religioso, mas não dogmático, sendo capaz de jogar dramaticamente neste terreno. Dramático, mas nunca esquecendo de manter um respeito e uma fé pelas suas criações (e criaturas e criadores) poéticas.
    Graças a este movimento, podemos compreender o que quis dizer quando do surgimento de Alberto Caeiro. Em 8 de março de 1914, de pé, escreveu mais de trinta poemas sem parar, como numa espécie de êxtase: havia nascido o heterônimo, aparecera seu mestre. Isto pode ter acontecido dessa maneira ou não. Mas dramaticamente foi assim que aconteceu. Isto é que nos importa.
    Graças a este movimento, podemos concordar com José de Almada Negreiros, pintor e poeta companheiro de Fernando Pessoa, numa das melhores caracterizações que existem sobre o poeta:
    Não conheci exemplo igual ao de Fernando Pessoa: o do homem substituído pelo poeta! Esta sobreposição do poeta ao homem, outro que não Fernando Pessoa poderia tê-la feito mal. Mas ele tinha posto efectivamente toda a sua vida na Poesia; ele é exactamente o poeta dos seus versos. A esta cedência do homem ao poeta, chamem-lhe renúncia, convento, morfina, clausura, segredo de resistir, chamem-lhe o que quiserem, mas Fernando Pessoa fê-lo bem, com inteireza e com suas próprias posses.
    Nesta apresentação do próprio poeta como um heterônimo utilizaremos o Livro do Desassossego de Vicente Guedes/Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa, por ele mesmo assim definido e, por isso muito próximos dele. O Livro do Desassossego revela a inclinação do poeta para o sonho e a morte. Neste caso sonho e morte são experiências quase sinônimas, como eram para os gregos. A morte não era o fim, mas a transformação do corpo em eidolon, imagem. Para Hillman, a perspectiva da morte é fundamental quando lidamos com o psiquismo. Deixaremos para mais adiante o estudo desta relação entre morte e psiquismo, adiantando que não é apenas da morte concreta que Hillman está falando.
    Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar. As circunstâncias da minha vida, desde criança, sozinho e calmo, outra[s] forças talvez, amoldando-me de longe, por hereditariedades obscuras a seu sinistro corte, fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios.
    Com esta auto-definição, o poeta coloca-se ontologicamente numa outra dimensão. A sua forma de ver, de sentir, de pensar é caracterizado por este olhar profundo, interno, que brota do âmago do ser.
    Vendo-me de fora, como quase sempre me vejo, eu sou um inapto à ação, perturbado ante ter que dar passos e fazer gestos, inábil para falar com os outros, sem lucidez interior para me entreter com o que me cause esforço ao espírito, nem seqüência física para me aplicar a qualquer mero mecanismo de entretenimento trabalhando.
    Este é o outro lado desta dimensão ontológica: no mundo dos sonhos, no mundo das sombras, as ações são ficções, não precisam transformar-se em ações externas. As ações ficam contidas nas próprias idéias. A musculatura não é importante. Esta ausência de músculos do mundo dos sonhos explica, em parte, a neurastenia auto-diagnosticada de Fernando Pessoa e outros heterônimos, que trataremos de forma mais profunda no respectivo capítulo. Aqui, basta-nos acentuar a diferenciação que James Hillman estabelece entre dois tipos de ego.
    Ego-heróico é um deles. Seu modelo mítico é o herói grego Héracles, Hércules para os romanos, bastante conhecido graças aos seus doze trabalhos, embora outros que realizou não sejam tão bem conhecidos, como aquele que o obrigou a servir de escravo para a Rainha Ônfale, tendo, inclusive, de vestir-se como mulher.28 Contudo, Hércules permaneceu sendo o exterminador de inimigos de reinos e de monstros como o Leão de Neméia e a Hidra de Lerna. O ego-heróico é, pois, nada mais nada menos que o ego apregoado pelas psicologias, cultuado pela cultura, visto como o padrão normal de funcionamento do indivíduo. Visa a adaptação à realidade; é forte, capaz de suportar tensões e conflitos; atuante, dono da própria vontade e da razão; diurno, lutando pelo sucesso e pela independência no mundo real; totalmente imerso nos ideais sociais de normalidade, saúde, adaptação; é conquistador, empreendedor, ativo, com toda sua musculatura apta a agir quando preciso. Este é nosso modelo cultural.
    Como já sabemos que as imagens condicionam nossas maneiras de ver e avaliar — insistindo, mais uma vez, neste ponto, por ser fundamental —, a avaliação feita, através da perspectiva do ego-heróico, sobre qualquer pessoa que não se ajuste aos atributos descritos, só pode ser negativa. Conseqüentemente, se a vida de Fernando Pessoa, heterônimo ou ortônimo, for avaliada à partir deste ponto de vista, as conclusões são aquelas que conhecemos nos diversos relatos sobre sua vida e sua obra. Uma das grandes contribuições da James Hillman para o pensamento atual, conseqüência de sua postura politeísta, como teremos oportunidade de ver, é justamente o questionamento da validade absoluta desta perspectiva. Em outras palavras, deve existir um espaço para que outras perspectivas, outros paradigmas na expressão de Thomas Kuhn, possam existir, que permitam que fatos, pessoas, acontecimentos sejam avaliados de maneiras diferentes.
    Todo o nosso trabalho tem por objetivo não apenas olharmos para Fernando Pessoa e sua obra com as diferentes perspectivas fornecidas pela Psicologia Arquetípica. Mas, também, revelar que tipos de perspectivas Fernando Pessoa e sua obra nos fornecem. Em Álvaro de Campos, por exemplo, percebemos a poética como sendo uma grande crítica deste ego-heróico, visto que sua imagem paradigmática de homem encontra-se em oposição a esta. Em seu Poema em Linha Reta que se inicia com os seguintes versos
    Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
    Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
    Álvaro de Campos revela a imagem de homem que assume seus medos, suas fraquezas e os fracassos do dia a dia.
    E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
    Eu tantas vezes irespondivelmente parasita,
    Indesculpavelmente sujo,
    Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
    Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
    Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
    Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogan- te,
    Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
    Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
    Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
    Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
    Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedindo em- prestado sem pagar,
    Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
    Para fora da possibilidade do soco;
    Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
    Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
    A experiência do fracasso é fundamental para desenvolver um sentido de alma. James Hillman, analisando as relações entre fracasso e psicoterapia, critica o modelo normativo que impera na maioria das correntes da Psicologia. Nelas, fracasso e sucesso são concebidos como opostos. Eliminar os fracassos da vida de uma pessoa, em quaisquer áreas de sua existência, é o objetivo da maioria das psicoterapias. Embora o modelo médico ainda prevaleça, Hillman nos lembra que a psicoterapia foi inventada como um meio de receber os fracassados, como um espaço onde o fracasso pode se expressar plena e legitimamente. Com isso, a vida é olhada a partir de uma outra perspectiva completamente diferente daquela do ego-heróico. Na psicoterapia descobrimos que já "levamos porrada"e que continuaremos levando para sempre, pois "levar porrada" faz parte do devir humano. Compreendemos, agora, o que Carl Gustav Jung quer dizer quando fala que a neurose é a melhor amiga do homem.
    Não se deveria procurar saber como liguidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer realmente quem somos. Uma neurose estará realmente "liquidada" quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é curada, mas é ela quem nos cura.
    Portanto, temos, por um lado, atitudes psicoterápicas que tentam se livrar do estranho, do inadaptado, do fracassado e do patológico através de métodos "cirúrgicos", ou seja, com a pura e simples eliminação de suas manifestações. Mas, temos, igualmente, atitudes psicoterápicas que abrigam estas mesmas manifestações para que, como disse Jung, elas nos transformem, para que elas nos ajudem a reavaliar as crenças que acreditamos estabelecidas desde os tempos imemoriais. Realizamos estas transformações e reavaliações através de um mergulho ainda mais profundo na "neurose", acolhendo o fracasso com a intenção de permitir surgir outras atitudes governadas por outros princípios menos heróicos. É esta outra possibilidade de ser que Álvaro de Campos reinvindica. Gente, como escreve, não Príncipes. Em seu Ultimatum, fez estas três proclamações em letras grandes, para chamar mais a atenção e não deixar passar despercebido:32
    O Super-homem Será, Não o Mais Forte,
    Mas o Mais Completo!
    O Super-Homem Será, Não o Mais Duro,
    Mas o Mais Complexo!
    O Super-Homem Será, Não o Mais Livre,
    Mas o Mais Harmônico!
    Para sermos completos, temos que permitir estas experiências de fracasso, por isso não podemos ser fortes. Para senti-las com toda sua força, não podemos recebê-las com dureza, mas sim aceitar a complexidade da vida e das relações. Finalmente, para sermos mais completos e mais complexos, temos de abandonar os desejos ilusórios de liberdade, só a harmonia nos é permitida, e harmonia, não podemos esquecer, é uma negociação com um Outro. Para que estas proposições tenham efeito, algumas modificações deverão ser feitas. O próprio Álvaro de Campos sugeriu três caminhos: abolição do dogma da personalidade, que visa resgatar a consciência de que nossa personalidade está mergulhada e em relação profunda com a personalidade dos outros, resumida na frase "eu sou todos os outros"; abolição do preconceito da individualidade, onde descobrimos que somos "uma síntese malfeita de almas celulares"; abolição do dogma do objetivismo pessoal, com a constatação que a objetividade não passa de
    uma média de várias outras objetividades, visando "uma harmonia entre as subjetividades alheias".Estaremos perto disto, quando aproximarmos o ego-heróico do ego imaginal, nosso segundo tipo de ego.
    A primeira descoberta do ego imaginal é que ele é uma imagem entre outras imagens, heterônimo entre outros heterônimos, aceitando plenamente a multiplicação de seres e situações oferecidas pela imaginação. O ego-imaginal é o ego dos sonhos, onde se comporta apenas como mais uma figura a percorrer os "descampados da alma". Por habitar este mundo dos sonhos — um mundo bidimensional de sombras, em contraste com o mundo tridimensional dos corpos concretos — será capaz de desenvolver uma compreensão metafórica e imaginativa a tudo que ocorre ou se apresenta no psiquismo, em vez de literal e muscularmente agir no mundo da realidade concreta. Por isso, é capaz de acolher o fracasso, a depressão, as repetições, as fantasias, a dependência, aceitando seu papel de andarilho num mundo de imagens.
    Fica fácil reconhecermos, nesta descrição, o nosso poeta. Esta é, em nossa opinião, a perspectiva paradigmática buscada por Fernando Pessoa. Contudo, as coisas não se apresentam nesta simplicidade. O "drama em gente" é mais sofisticado. A existência do mestre Alberto Caeiro e de outras concepções complicam um pouco as coisas. Isto, também, é assunto para mais tarde. Como afirmamos, todo este trabalho gira em torno da desconstrução do um. Escrevendo à la Derrida: nas dobras do um, encontraremos o múltiplo.
    Voltando aos heterônimos Vicente Guedes/ Bernardo Soares/ Fernando Pessoa, já vimos que vive de sonhar e é inapto à ação. Destacaremos mais uma característica.
    Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como é que as paisagens da vida nos aparecem reveladas. Porque a visão do sonhador não é como a visão do que vê as coisas. No sonho, não há o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objeto que há na realidade. Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objeto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço. Semelhantemente, não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhes fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual.
    Magnífico! Não conseguimos deixar de expressar emoção. Isto porque os escritos de um poeta, mesmo sendo prosa, atingem o coração, que mais tarde James Hillman ensinará que não é nosso.
    O olhar do poeta não percebe o mundo como se ele fosse uma res extensa cartesiana, um mundo de objetos vazios. O olhar do poeta percebe o mundo, pelo contrário, como uma inesgotável fonte de imagens, interessado em descobrir sua retórica. Perceber as imagens do mundo é fotografá-lo com a máquina do devaneio, mas um devaneio que se escreve, no sentido de Gaston Bachelard. Sem este devaneio, o filme vazio da máquina fica velado, apagado, escuro, sem poesia.
    Tudo isso caminha na mesma direção dos últimos trabalhos de James Hillman. Em oposição à concepção do mundo como lugar de objetos vazios, resgata a idéia da anima mundi, a alma do mundo, pela qual entende a imagem que cada coisa oferece através da sua forma visível e disponível à imaginação. O psiquismo, a alma, não se encontra apenas no interior dos seres humanos, mas participa igualmente de todos os objetos, naturais e artificiais, revelado através de suas respectivas auto-apresentações.
    A idéia da anima mundi possui, também, conotações políticas, fazendo com que a psicoterapia saia de uma preocupação exclusivamente subjetiva para um interesse na psicoterapia do mundo.
    Vamos, contudo, continuar com a expressividade apresentada pelas coisas. Sua profundidade já está revelada nas suas formas, cores, textura, etc. Com esta atitude recuperamos um pouco do sentido animal, onde a conexão ocorre via sentidos. A intenção de Hillman é a de desenvolver um senso estético. Ele faz uma advertência. Por senso estético ele não entende meramente uma preocupação com embelezamento. Emprega a palavra estético no seu sentido grego de aisthesis, percepção. Qualquer coisa percebida é estética.
    Assim, o que eu entendo por resposta estética aproxima-se mais do sentido animal da palavra — um faro para a inteligibilidade revelada das coisas, seu som, cheiro, forma, falando para e através das reações do nosso coração, respondendo a olhares e linguagens, tons e gestos das coisas entre as quais nos movemos.35
    Para melhor expressar esta estética animal, Hillman emprega a palavra latina notitia, que deu em português notícia, ou seja, a capacidade de descrever atenta e minuciosamente um determinado fato ou objeto. Isto nos afasta das preocupações causais e teleológicas que imperam na Psicologia. Em vez de por que ou para que, a pergunta é, agora, o que ou como. A linguagem não é mais de explicação, mas uma linguagem de descrição. O heterônimo Ricardo Reis associa essa maneira de ver aos Deuses, num poema onde mostra que superfície e profundidade são, nesta perspectiva, uma só coisa.
    Para os Deuses as coisas são mais coisas.
    Não mais longe eles vêem, mas mais claro
    Na certa Natureza
    E a contornada vida...
    Não no vago que mal vêem
    Orla misteriosamente os seres,
    Mas nos detalhes claros
    Estão seus olhos.
    A Natureza é só uma superfície.
    Na sua superfície ela é profunda
    E tudo contém muito
    Se os olhos bem olharem.
    Aprende, pois, tu, das cristãs angústias,
    Ó traidor à multíplice presença
    Dos deuses, a não teres
    Véus nos olhos nem na alma.
    Esse olhar mais claro, esse bem olhar com os olhos, é amplamente estudado por James Hillman em seu livro O Pensamento do Coração. Deixaremos para o próximo capítulo uma discussão mais pormenorizada sobre este tema.
    Ao longo de sua vida, Fernando Pessoa constantemente preocupou-se em criar ou fundar movimentos estéticos-literários. Dois destes movimentos denominou Paulismo e Inteseccionismo. Mas é com o Sensacionismo que o poeta mais se aproxima do senso estético mencionado por James Hillman. Quando escreve: "tudo está detalhado em plena luz",estamos diante da percepção animal direta de que nos fala Hillman.
    Segundo o Sensacionismo, entre a sensação e o objeto nada se interpõe, nem mesmo uma reflexão. Diremos que a reflexão brota diretamente da percepção do objeto por intermédio de sua manifestação. Portanto, segundo Fernando Pessoa, são três os princípios do Sensacionismo em relação à arte.
    1. Todo objeto é uma sensação nossa.
    2. Toda a arte é a conversão duma sensação em objeto.
    3. Portanto, toda a arte é a conversão de uma sensação numa outra sensação.
    As sensações não são apenas as que encontramos nos objetos do mundo exterior, as idéias são também sensações, mas colocadas fora do espaço e, talvez, do tempo. De qualquer maneira o objeto da arte é uma terceira espécie de sensação. As sensações do exterior dão origem à ciência. As sensações do interior, à filosofia. Somente as sensações abstratas dão origem à arte, pois
    a arte é uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem.
    Com este pequeno movimento, acrescentando um terceiro, Fernando Pessoa acha uma saída, brilhante por sinal, para sua concepção da poesia como fingimento. No próximo capítulo, quando estaremos apresentando James Hillman, veremos que esta idéia de terceiro também é fundamental para sua Psicologia. Dessa forma, a Literatura não é pura transcrição de sensações, mas um trabalho de criação sobre estas sensações. Não fosse isso, Alberto Caeiro, o heterônimo que poetiza a Natureza, poderia ser substituído facilmente por um botânico ou um geólogo. Mas, quando Alberto Caeiro e um botânico olham para uma rosa, por exemplo, os textos que eles produzem são completamente diferentes. Álvaro de Campos diz que o fim da arte não é conhecer fatos — objetivos da ciência e da metafísica —, mas substituir fatos. Gaston Bachelard está certo: a imagem poética é uma novidade.
    A sensação também não é algo simples. O interseccionismo nos faz conscientes de que uma sensação é várias sensações misturadas, o que podemos constatar no poema Chuva Oblíqua. Perceberemos como Fernando Pessoa mistura, com maestria, sensações cujos limites são apagados, fundidos e confundidos e não se sabe, com certeza, as fronteiras que separam realidade e sonho, interno e externo, sujeito e objeto.
    Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
    E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
    Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
    Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
    O porto que sonho é sombrio e pálido
    E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
    Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
    E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol
    Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
    O vulto do cais é a estrada nítida e calma
    Que se levanta e se ergue como um muro,
    E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
    Com uma horizontalidade vertical,
    E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
    Não sei quem me sonho...
    Súbito toda a água do mar do porto é transparente
    E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá esti- vesse desdobrada,
    Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
    E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
    Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
    E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
    E passa para o outro lado da minha alma...
    Ainda nos textos críticos de Fernando Pessoa e companhia ilimitada, somos informados que o Sensacionismo é apenas uma atitude, mas uma atitude aberta, aceitando todas as escolas "com a condição de não aceitar nenhuma separadamente".
    Esta abertura também é encontrada na Psicologia Arquetípica, na medida em que James Hillman busca em todas as reorias existentes, idéias e fantasias que possam ser interessantes para compreendermos melhor a alma, mas sem nenhuma preocupação de cristalizar-se em sistema.
    No poema de Ricardo Reis citado acima observamos que é associada aos Deuses uma capacidade de ver mais claro. Pois bem, é em relação ao paganismo e em oposição ao "cristismo" que o Sensacionismo fundamentará ainda mais suas bases.
    Falar de paganismo é falar de Alberto Caeiro, o Mestre, principalmente através dos seus críticos Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Antônio Mora.
    Para Ricardo Reis a atitude de Alberto Caeiro é de um objetivismo total. O pensamento é impedido de agir, somente os sentidos são aceitos. Na frase "A Natureza é partes sem um todo", o todo é algo que não existe, simplesmente por não poder ser visto. Este verso de Alberto Caeiro, tirado de um dos poemas que compõem O Guardador de Rebanhos, faz Álvaro de Campos defini-lo não apenas como um pagão, mas o próprio paganismo. Ricardo Reis expressa-se, com entusiasmo, sobre este paganismo de Caeiro: "O Grande Pã renasceu!".
    Alberto Caeiro, "Argonauta das sensações verdadeiras", vê com os olhos, mas não com a mente. Não imagina sermões surgindo de pedras, mas das pedras só vê que são pedras e que existem. Caeiro nos ensina a curvar perante a objetividade das coisas, mas também perante os elementos primitivos da própria natureza do homem. Sua ética é a da simplicidade, mas com um profundo desprezo pelos humanismos e pelo destino dos homens. À civilização prefere a Natureza. Tudo isto são considerações de Ricardo Reis a respeito da obra de Alberto Caeiro. Porém, não deixa de acrescentar que, a verdadeiramente surpreendente característica do poeta, é justamente o fato de ser poeta.
    Não é apenas Ricardo Reis que fica surpreso com este traço de Alberto Caeiro. Todos os críticos e estudiosos da obra de Fernando Pessoa apontam o paradoxo de o heterônimo ser um poeta e fazer uma anti-poesia. É o próprio Caeiro que se define assim.
    Não tenho ambições nem desejos
    Ser poeta não é uma ambição minha
    É a minha maneira de estar sozinho.
    Para Jacinto do Prado Coelho, Caeiro, o "poeta do real absoluto"43 condena a deturpação do real pelo pensamento e pelas palavras. Para Rinaldo Gama, em tese recém publicada sobre a poesia do heterônimo, Caeiro cria um "impasse poético", na medida em que despreza a linguagem e favorece a percepção direta das coisas. Para Rinaldo Gama, sua poesia é
    Uma poesia para acabar com a poesia. Uma poesia que já nem quer imitar, mas diluir-se de tal modo no seu objeto, as sensações verdadeiras, que passe a ser exatamente isso — as sensações verdadeiras.44
    Rinaldo Gama vai mais além. Vê nesta negação da palavra uma tentativa radical de negar a própria natureza humana, atravessada constantemente por signos e pela linguagem.
    Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
    Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
    E que para de onde veio volta depois
    Quase à noitinha pela mesma estrada.
    Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
    A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
    Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
    E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.45
    Esmiuçando mais a obra de Caeiro, verificamos sua resistência a pensar algo além do que está vendo, mesmo que para isso utilize o pensamento. Quer viver o seu momento, no seu tempo e no seu espaço geográfico. Apegado a um aqui e agora precisos que não se deixam derrubar. Por exemplo, quando fala do rio de sua aldeia.
    O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
    Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
    O Tejo tem grandes navios
    E navega nele ainda,
    Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
    A memória das naus.
    O Tejo desce pela Espanha
    E o Tejo entra no mar em Portugal
    Toda a gente sabe isso.
    Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
    E para onde ele vai
    E donde ele vem.
    E por isso, porque pertence a menos gente,
    É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
    Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
    Para além do Tejo há a América
    E a fortuna daqueles que a encontram.
    Ninguém nunca pensou no que há para além
    Do rio da minha aldeia.
    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.46
    Os conhecimentos necessários para saber o Tejo não são obtidos olhando-se para o Tejo. Quando se olha para além do Tejo, não se vê a América. Por outro lado, para se viver o rio da aldeia não é necessário conhecer sua geografia, só estar ao pé dele.
    Além dessa inserção absoluta no momento e no local, Alberto Caeiro também se recusa a ir além da aparência e de constituir memória. Conseqüentemente, não tem história, só poemas. Alerta àqueles que desejarem escrever sua biografia que só possui duas datas: a da nascença e da morte. Quer que os pássaros, mais que os animais, o ensinem a não deixar rastros. Nem pensar em Deus é legítimo, porque pensar é desobedecê-lo, pois Deus não se quis mostrar. Quer ter a sensação de olhar pela primeira vez uma coisa, como o homem primitivo que só via o sol, mas não o adorava, ou como o pasmo essencial que tem a criança ao reparar que nasceu. Acima de tudo, não quer ser um doente poeta místico, que fala da alma das pedras, dos sentimentos das flores e êxtases dos rios. Para Caeiro pedras não têm alma, flores não têm sentimentos, rios não têm êxtases, apenas existem.
    Há metafísica bastante em não pensar em nada.
    O que penso eu do mundo?
    Sei lá o que penso eu do mundo!
    Se eu adoecesse pensaria nisso.
    Que idéia tenho eu das cousas?
    Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
    Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
    E sobre a criação do Mundo?
    Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
    E não pensar. É correr as cortinas
    Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
    O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
    O único mistério é haver quem pense no mistério.
    Quem está ao sol e fecha os olhos,
    Começa a não saber o que é o sol
    E a pensar muitas cousas cheias de calor,
    Mas abre os olhos e vê o sol,
    E já não pode pensar em nada,
    Porque a luz do sol vale mais que pensamentos
    De todos os filósofos e de todos os poetas.
    A luz do sol não sabe o que faz
    E por isso não erra e é comum e boa.
    Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
    A de serem verdes e copadas e de terem ramos
    E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
    A nós, que não sabemos dar por elas.
    Mas que melhor metafísica que a delas,
    Que é a de não saber para que vivem
    Nem saber que o que não sabem?
    "Constituição íntima das cousas"...
    "Sentido íntimo do Universo"...
    Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
    É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
    É como pensar em razões e fins
    Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
    Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
    Pensar no sentido íntimo das cousas
    É acrescentando, como pensar na saúde
    Ou levar um copo à água das fontes.
    O único sentido íntimo das cousas
    É elas não terem sentido íntimo nenhum.
    Não acredito em Deus porque nunca o vi.
    Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
    Sem dúvida que viria falar comigo
    E entraria pela minha porta dentro
    Dizendo-me, Aqui estou!
    (Isto é talvez ridículo aos ouvidos
    De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
    Não compreende quem fala delas
    Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
    Mas se Deus é as flores e as árvores
    E os montes e sol e o luar,
    Então acredito nele,
    Então acredito nele a toda a hora,
    E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
    E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
    Mas se Deus é as árvores e as flores
    E os montes e o luar e o sol,
    Para que lhe chamo eu Deus?
    Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
    Porque, se ele se fez, para eu o ver,
    Sol e luar e flores e árvores e montes,
    Se ele me aparece como sendo árvores e montes
    E luar e sol e flores,
    É que ele quer que eu o conheça
    Como árvores e montes e flores e luar e sol.
    E por isso eu obedeço-lhe,
    (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
    Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
    Como quem abre os olhos e vê,
    E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
    E amo-o sem pensar nele,
    E penso-o vendo e ouvindo,
    E ando com ele a toda hora.
    Este belíssimo "anti-poema" foi citado em toda sua extensão porque resume, ao nosso ver, a quinta-essência de sua concepção do mundo. Contudo, consideramos que o sensacionismo de Alberto Caeiro é diferente do sensacionismo do restante da antologia pessoana. Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Ricardo Reis não conseguem esta simplicidade absoluta, não conseguem impedir de ouvir sermões nas pedras e sentimentos nas flores.
    O sensacionismo de Alberto Caeiro também é diferente do sensacionismo de James Hillman.
    Num pequeno (mas profundo) artigo que possui o expresivo título "From Mirror to Window: Curing Psychoanalysis of its Narcissism" (Do Espelho para a Janela: Curando a Psicanálise de seu Narcissismo), James Hillman demonstra que a inclinação narcísica da própria psicanálise é responsável pelo abandono do mundo como um lugar sofisticado para o conhecimento da alma. Este narcisismo a faz pensar que o único locus legítimo da psicologia é o interior do homem no consultório de seu terapeuta. Paciente e analista fechados numa sala, um diante do outro, como diante de um espelho, na esperança de decifrarem os enigmas do inconsciente. Segundo Hillman, este vaso fechado deve ser quebrado para que a libido ou energia psíquica dos participantes possa fluir em direção à alma do mundo. Esta libido é denominada pela psicanálise de "libido objetal", mas para Hillman não passa de um nome técnico para aquilo que chamamos de amor pelo mundo, "o desejo erótico pela anima mundi".

    Até aqui, podemos considerar que Caeiro e Hillman estão caminhando, senão lado a lado, ao menos muito próximos. Mas Alberto Caeiro, fechando-se nas sensações, não se permite ver além, como disse no longo poema acima, nem além acredita existir. Perde, o que é fundamental tanto para Fernando Pessoa quanto para James Hillman, a capacidade tropológica de imaginar, de entrar em contato com a alma do mundo transmitida pelas sensações.
    Certa vez, passeando por um jardim japonês, em Kyoto, Hillman pôde experimentar uma "psicanálise-jardineira", tirando uma série de "insights" deste passeio.
    Hillman percebeu que o jardim não possuía um lugar central para que pudesse ser observado como um todo. Ele só se revelava em partes. Em vez de totalidade há singularidades. Em troca de uma visão global, o jardim só permitia perspectivas. Por não ter centro, o jardim obrigou-o a mudar constantemente de pontos-de-vista. Mesmo uma única árvore fornecia perspectivas diferentes à medida que girava ao seu redor. Observou que não havia árvores "individualizadas", pois todas se tocavam de alguma maneira. Concluiu que a individualidade pode ser algo inserido numa comunidade. Pensou nas teorias psicológicas que pregam a individualização através de uma separação, muitas vezes literal, como um afastamento da família, em vez de ser diferente na família. No jardim havia árvores velhas, sustentadas por estacas, mas que, mesmo assim, não deixavam de brotar e dar frutos. Percebeu que existiam também árvores novas e árvores mortas. Vida e morte lado a lado. Que jardim estupendo! Ampara e
    aceita o dependente, o velho, o aleijado, o novo e o morto. Acredita que com um pequeno apoio seres continuam criando alguma coisa. (Quem sabe, João Gaspar Simões, não ter sido esse apoio o que procurou nosso poeta para poder florir com mais tranqüilidade. Mesmo assim, o jardim que nos deixou, com seu baú cheio de sementes, é verdadeiramente magnífico). Em resumo:
    O jardim torna-se totalmente metáfora, tanto o que ele é e o que ele não é, presença e ausência ao mesmo tempo.49
    Hillman diz mais. Nós próprios somos transformados em metáfora. Neste instante, Caeiro e Hillman afastam-se em seus caminhos. Ousamos dizer que a poesia de Alberto Caeiro é uma poesia literal, mesmo que seus rebanhos sejam pensamentos, sua alma como um pastor, seu olhar nítido como um girassol, que flores e pedras não escrevem poemas, que seu menino Jesus fugiu do céu e que ser poeta é andar com-o menino. Por tudo isso, surge a pergunta: Por que Caeiro foi Mestre?
    Muitas respostas foram tentadas. Rinaldo Gama cita um trecho do artigo "Metafísica da Negação: A Negação da Metafísica na Poesia de Alberto Caeiro" de Júlia Cuervo Hewitt, onde a autora nos fornece três razões para Alberto Caeiro receber este título honorífico:
    ... três idéias principais, duma perspectiva pós-modernista: 1) Caeiro exprime, sem exprimir, uma filosofia que evoca, hoje, alguma semelhança com as idéias de Michel Foucault quanto ao questionamento do absoluto, da abstração e das classificações enciclopédicas de todo conhecimento. Caeiro e Foucault descobrem que por trás do nome não há verdade absoluta, que o nome, duma maneira saussuriana, confirma o processo imaginativo de ficcionalização: o jogo dos labirintos borgianos. 2) O texto, sendo uma seqüência de palavras, sempre arbitrárias, perde a sua referência no mundo real; Caeiro descobre que não há Natureza no mundo real, enquanto que nós, os leitores, sabemos que nesse mundo real que Caeiro tanto ama, não há um Caeiro. 3) Caeiro apresenta-se aos outros heterônimos como o super-poeta. Em Caeiro encontra-se a liberdade total do "super-homem", livre, simples, além dos enquadramentos do pensamento ocidental.
    Massaud Moisés vê em Alberto Caeiro aquele que pretende ser meramente poeta, vivendo no campo, sem nenhuma outra ocupação que não a de escrever poesia, espécie de modelo de poeta. Inventa e ensina a arte da poesia por estar constantemente correndo o risco de não ser poeta, por sua anti-poesia e por sua arriscada proximidade com a prosa. É mestre, também, por ensinar a todos a fingir ser natural. Por último, acrescenta Massaud Moisés, Alberto Caeiro ensina o caminho de regresso "à matriz das metáforas", ou seja, a Natureza. A origem da poesia não é o poeta.
    Já para Fernando Segolin, Alberto Caeiro é Mestre por melhor encarnar o paganismo e seu fundamento, o sensacionismo.
    Nossa contribuição ao tema caminha numa outra direção, embora sugerida no título do artigo de Júlia Cuervo Hewitt.52 Alberto Caeiro é Mestre de Fernando Pessoa e dos heterônimos por sua metafísica ser uma negação da metafísica.
    Fernando Pessoa, em carta a Adolfo Casais Monteiro, revela o clima psíquico que favoreceu o aparecimento de Alberto Caeiro. Tudo começou como uma brincadeira com Mário de Sá-Carneiro, "de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade".53
    Esforçou-se em criar algo, mas nada conseguiu. De repente, de pé ao lado de uma cômoda, num dia que o poeta classifica como o mais glorioso de sua vida, escreveu mais de trintas poemas sem parar. Surgiu Alberto Caeiro. Fernando Pessoa imediatamente sentiu que aquele era seu mestre.
    Isto ocorreu em 1914, um ano antes da publicação do primeiro número de Orpheu, revista criada por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José de Almada Negreiros, Armando Cortes-Rodrigues, Luís de Montalvor e outros. Na opinião de Massaud Móises, esta revista causou uma transformação radical na Literatura Portuguesa, levando-a a ingressar no Modernismo.
    Neste contexto, portanto, havia necessidade de um poeta bucólico, poeta do campo simples e espontâneo? A resposta é afirmativa. Ela explica a existência de Alberto Caeiro, que representa quase que um resgate de uma "estética arcádica"54: a vida compartilhada com a Natureza, principalmente dos pastores, em oposição às complicações da existência na cidade, mergulhada em suas complexidades e tumultus, descrita com extrema acuidade por Fernando Pessoa.
    O aumento das facilidades de transporte, o exagero das possibilidades de conforto e da vantagem, o acréscimo vertiginoso dos meios de diversão e de passatempo — todas essas circunstâncias, combinadas, entrepenetradas, agindo quotidianamente, criaram, definiram, um tipo de civilização em que a emoção, a inteligência, a vontade, participam da rapidez, da instabilidade e da violência das manifestações propriamente, diariamente típicas do estádio civilizacional. Em cada homem moderno há um neurastênico que tem que trabalhar. A tensão nervosa tornou-se um estado normal na maioria dos incluídos na marcha das cousas públicas e sociais. A hiperexcitação passou a ser regra.
    Que contraste com o mundo cheio de flores e árvores e montes e sol e luar trazido por Caeiro! É bastante significativa, neste sentido, a "confissão" de Ricardo Reis de ver no heterônimo não apenas beleza, mas também consolação.
    Para o espírito que se sente exilado entre a confusão e a imperícia da vida contemporânea, há momentos em que o peso dessa diferença tão dolorosamente se acentua, que é preciso qualquer reflexo da placidez e da grandeza antigas para obstar a que advenham as piores maldades do desespero.
    Caeiro, continua Ricardo Reis, é como a criança que distrai o adulto, afastando-o momentaneamente dos seus seriíssimos problemas, trazendo-o de volta a um tempo e espaço qualitativamente reconfortante.
    Porem, entre Caeiro ser o Mestre e os discípulos bons discípulos, há uma grande distância. Basta compararmos o poema de Alberto Caeiro, que transcrevemos mais acima, com quatro poemas seguintes do Fausto de Fernando Pessoa.
    Paro à beira de mim e me debruço...
    Abismo... E nesse abismo o Universo
    Com seu Tempo e seu Espaço é um astro e nesse
    Abismo há outros universos, outras
    Formas de Ser com outros Tempos, Espaços
    E outras vidas diversas desta vida...
    O espírito é antes estrela... O Deus pensado
    É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos
    Doutras maneiras de Realidade...
    E eu precipito-me no abismo, e fico
    Em mim... E nunca desço... E fecho os olhos
    E sonho — e acordo para a Natureza...
    Assim eu volto a/Mim/ e à Vida...
    Neste poema encontramos também a imagem da Natureza como consolo, mas uma Natureza alcançada através do sonho, numa espécie de sonho dentro do sonho. Para fora deste sonho, o abismo do ser, que revela toda a legião de outros seres e de outros mundos possíveis
    Ah, tudo é simbolo e analogia!
    O vento que passa, a noite que esfria
    São outra cousa que a noite e o vento —
    Sombras de vida e de pensamento.
    Tudo que vemos é outra cousa.
    A maré vasta, a maré ansiosa,
    É o eco de outra maré que está
    Onde é real o mundo que há.58
    Para Caeiro, vento só é vento, noite só é noite e existe apenas uma maré. O resto são apenas pensamentos. Não existem na Natureza.
    Mais que a existência
    É um mistério o existir, o ser e o haver
    Um ser, uma existência, um existir —
    Um qualquer, que não este, por ser este —
    Este é existir — não nós ou o mundo —
    Mas existir em si?
    Caeiro ficaria arrepiado diante deste poema. Classificá-lo-ia como um dos doentes poemas místicos e riria muito. Novamente, puro pensamento, pois a existência não existe, só as coisas. Alberto Caeiro não faz filosofia.
    Essa simplicidade d'alma
    Possuída não só dos inocentes
    Mas até dos viciosos, criminosos
    De ter uma (...)
    Sem constantemente analisar
    O que vai no seu ser, essa pureza
    Que faz a vida leve mesmo ao mais
    Sério, que nunca nos de todo afasta
    Da criança em nós, essa simplicidade
    Perdi-a e só me resta um vácuo imenso
    Que o pensamento friamente ocupa.
    Medo da morte não; horror da morte.
    Horror por ela ser, pelo que é
    E pelo inevitável (...)
    O próprio Fausto se apresenta nostálgico pela perda da simplicidade. As reticências entre parênteses, sinal de falha do original de Pessoa, podem ser facilmente preenchidas por várias palavras. Sugerimos "vida". Que dor de não ter mais uma vida que não precise constantemente analisar. De uma vida que não sinta o horror da morte. Não quer dizer que a morte não ocorra nos poemas de Alberto Caeiro. Ela existe, só que sua atitude bucólica o leva a encará-la de outra forma.
    Quando vier a Primavera,
    Se eu já estiver morto,
    As flores florirão da mesma maneira
    E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
    A realidade não precisa de mim.
    A morte é encarada como um processo natural da vida, não gerando qualquer pensamento, só sua constatação.
    É talvez o último dia da minha vida.
    Saudei o sol, levantando a mão direita,
    Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
    Fiz sinal de gostar de o ver antes: nada mais.
    O constraste com o restante da obra de Fernando Pessoa é claro. Alberto Caeiro existe, nada mais, verdadeiro "axioma da terra", como definiu Álvaro de Campos. Enquanto isso, os outros pensam a existência, sofrem a vida, horrorizam-se com a morte, são esmagados pelo desassossego. Mas, também, escrevem poesia.
    Carl Gustav Jung, num parágrafo que dá a sensação de ter sido escrito em função desta discussão, fala que uma vez deparado com "o problema Faustico" — olhar para o abismo do ser e da existência — não há mais escapatória para uma vida simples, embora nada impeça ninguém de alugar uma casa no campo e comer salada crua. "Mas sua alma rirá de decepção".

    Alberto Caeiro existe como uma possibilidade. Este é seu papel no "drama em gente". Ensina aos heterônimos metafísicos, que buscam um além, uma outra forma de ser, mostrando que há possibilidade de ser de outra forma. Não é de se espantar que Dalila Pereira da Costa, em seu livro "O Esoterismo de Fernando Pessoa", tenha eliminado Alberto Caeiro e Ricardo Reis de seu estudo. Estes últimos aparecem, aos seus olhos, como uma negação do poeta ortônimo e do heterônimo Álvaro de Campos. Tudo de importante, segundo ele, vem de Fernando Pessoa e Álvaro de Campos. Alberto Caeiro traz o "vazio sem significação"64 de uma filosofia que remete unicamente à felicidade terrena. Embora não concordemos com a autora, achamos que ela percebeu bem o sentido e a função de Caeiro, ou seja, não acreditarmos muito nas nossas idéias, a ponto de transforma-las em verdades sistemáticas. É como se ele dissesse a James Hillman que o jardim japonês só revela que é um jardim japonês. O problema é que
    James Hillman retrucaria não apenas concordando em parte com ele, mas dizendo a Alberto Caeiro que o jardim japonês revela mais do que ser simplesmente um jardim japonês. Esta tensão, obra magistral de Fernando Pessoa, só existe quando nos permitimos ouvir várias vozes. Neste sentido, Alberto Caeiro existir é fundamental, como também o é toda a legião. Por este motivo nos detemos tão minuciosamente na discussão do heterônimo.
    Encerramos aqui esta apresentação. Não quisemos fazer dela algo completo. Como um ente, que é como Fernando Pessoa considera as obras, cresceu mais do que prevíamos. Mais que apresentar o todo, nossa intenção foi revelar a complexidade do poeta, garantindo, contudo, que sua auto-apresentação continuará por todas as páginas deste trabalho.



    NOTAS
    1 Pessoa, Obra em Prosa, pág. 66. Itálicos do autor.
    2 Barthes, Roland.
    3 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 379.
    4 Bachelard, Gaston. A Poética do Devaneio, pág. 3.
    5 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 65.
    6 Bachelard, Gaston. A Poética do Devaneio, pág. 18.
    7 Bachelard, Gaston. A Poética do Devaneio, pág. 10.
    8 Achcar, Francisco. Lírica e Lugar Comum, pág. 45.
    9 Pessoa, Fernando, Obra em Prosa, pág. 81.
    10 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 55.
    11 Simões, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa, pág. 60.
    12 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 478.
    13 Simões, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa, pág. 20.
    14 Simões, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa, pág. 441.
    15 Hillman, James. We've had a Hundred Years of Psychotherapy, págs. 61-62.
    16 Hillman, James. We've had a Hundred Years of Psychotherapy, pág 65.
    17 Hillman, James. We've had a Hundred Years of Psychotherapy, pág. 66.
    18 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 212.
    19 Pessoa, Fernando. Obra Poética e em Prosa, vol. II, pág. 254.
    20 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 42.
    21 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 514.
    22 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 489.
    23 Ordoñez, Andrés. Fernando Pessoa: Um Místico sem Fé, pág. 11.
    24 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 15.
    25 Almada Negreiros, José de. Citado em: Quadros, António. Fernando Pessoa: Vida, Personalidade e Génio, pág. 97. Notar a diversidade de opções dadas por Almada Negreiros na tentativa de definição do poeta.
    26 Pessoa, Fernando. Livro do Desassossego, vol. I, págs. 68-69.
    27 Pessoa, Fernando. Livro do Desassossego, vol. I, pág. 69.
    28 Brandão, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico, vol. I, pág. 536.
    29 Pessoa, Fernando. Obra Poética, págs. 418-419.
    30 Jung, Carl Gustav. A Situação Atual da Psicoterapia, págs. 160-161.
    31 Hillman, James. Three Ways of Failure and Analysis, pág. 103.
    32 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 520.
    33 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, págs. 517-519.
    34 Pessoa, Fernando. O Livro do Desassossego, vol. I, págs. 70-71.
    35 Hillman, James. Anima Mundi, pág. 84.
    36 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 294.
    37 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 424.
    38 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, ´pág. 426.
    39 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 449.
    40 Pessoa, Fernando. Obra Poética, págs. 113-114.
    41 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 434.
    42 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 203.
    43 Coelho, Jacinto do Prado. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, pág.
    44 Gama, Rinaldo. O Guardador de Signos, pág. 70.
    45 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 214.
    46 Pessoa, Fernando. Obra Poética, págs. 215-216.
    47 Pessoa, Fernando. Obra Poética, págs. 206-208.
    48 Hillman, James. From Mirror to Window, pág. 69.
    49 Hillman, James. From Mirror to Window, pág. 73.
    50 Hewitt, Júlia Cuervo. Citado in: Gama, Rinaldo. O Guardador de Signos, págs. 26-27.
    51 Moisés, Massaud. Fernando Pessoa, pág. 52.
    52 Infelizmente não tivemos acesso ao trabalho de Júlia C. Hewitt. Portanto, não podemos saber se ela também tomou a mesma direção que estamos tomando. De qualquer modo, fica aqui nosso agradecimento por sua feliz expressão.
    53 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 96.
    54 Moisés, Massaud. Dicionário de Termos Literários, pág. 38.
    55 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 436.
    56 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 127.
    57 Pessoa, Fernando. Fausto, pág. 70.
    58 Pessoa, Fernando. Fausto, pág. 5.
    59 Pessoa, Fernando. Fausto, pág. 56.
    60 Pessoa, Fernando. Fausto, pág. 69.
    61 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág.236.
    62 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 246.
    63 Jung, Carl Gustav. The Relations Between the Ego and the Unconscious, pág. 168.
    64 Pereira da Costa, Dalila. O Esoterismo de Fernando Pessoa, pág. 29.
    Carlos Bernardo
    Psicólogo Clínico, Mestre em Letras
    Doutorando em Literatura Comparada

    posted by iSygrun Woelundr @ 7:24 PM   0 comments
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