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  • TRATADO DO LOBO DA ESTEPE, Herman Hesse
    sábado, junho 24, 2006
    Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. As pessoas argutas poderão discutir a propósito de ser ele realmente um lobo, de ter sido transformado, talvez antes de seu nascimento, de lobo em ser humano, ou de ter nascido homem, porém dotado de alma de lobo ou por ela dominado; ou, finalmente, indagar se essa crença de que ele era um lobo não passava de um produto de sua imaginação ou de um estado patológico. É inadmissível, por exemplo, que, em sua infância, fosse rebelde, desobediente e anárquico, o que teria levado seus educadores a tentar combater a fera que havia nele, dando ensejo assim a que se formasse em sua imaginação a idéia e a crença de que era, realmente, um animal selvagem, coberto apenas com um tênue verniz de civilização. A esse propósito poder-se-iam tecer longas considerações e até mesmo escrever livros; mas isso de nada valeria ao Lobo da Estepe, pois para ele era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior.
    O Lobo da Estepe tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era seu destino, e nem por isso tão singular e raro. Deve haver muitos homens que tenham em si muito de cão ou de raposa, de peixe ou de serpente sem que com isso experimentem maiores dificuldades. Em tais casos, o homem e o peixe ou o homem e a raposa convivem normalmente e nenhum causa ao outro qualquer dano; ao contrário, um ajuda ao outro, e muito homem há que levou essa condição a tais extremos a ponto de dever sua felicidade mais à raposa ou ao macaco que nele havia, do que ao próprio homem. Tais fatos são bastante conhecidos. No caso de Harry, entretanto, o caso diferia: nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, mas apenas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dano ao outro, e quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça. Bem, cada qual tem seu fado, e nenhum deles é leve.
    Com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece aliás com todos os seres mistos. ocorre, entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante. Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba. Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo horrivelmente absurda e despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e costumes. Precisamente aí era qua a parte humana existente nele se punha a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-lhe toda a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina.
    Era isso o que ocorria ao Lobo da Estepe, e pode-se perfeitamente imaginar que Harry não levasse de todo uma vida agradável e feliz. Isso não quer dizer, entretanto, que sua infelicidade fosse por demais singular (embora assim lhe pudesse parecer, da mesma forma como qualquer pessoa torna o sofrimento que se abate sorte ela como sendo o maior do mundo). Isso não pode ser dito a propósito de ninguém. Mesmo aquele que não tem em seu interior um lobo, nem por isso pode ser considerado mais feliz. E mesmo a mais infeliz das existências tem os seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura a brotar entre a areia e as pedras. Assim também acontecia com o Lobo da Estepe. Não se pode negar que fosse, em geral, muito infeliz, e podia também fazer os outros infelizes, especialmente quando os queria ou era por eles estimado. Pois todos os que com ele se deram viram apenas uma das partes de seu ser. Muitos o estimaram por ser uma pessoa inteligente, refina e arguta, e mostraram-se horrorizados e desapontados quando descobriam o lobo que mostrava nele. E assim tinha de ser pois Harry, como toda pessoa sensível, queira ser amado como um todo e, portanto, era exatamente com aqueles cujo amor lhe era mais precioso que ele não podia de maneira alguma encobrir ou perjurar o lobo. Havia outros, todavia, que amavam nele exatamente o lobo, o livre, o selvagem, o indômito, o perigosos e forte, e estes achavam profundamente decepcionante e deplorável quando o selvagem e perverso se transformava em homem, e mostrava anseios de bondade e refinamento, gostava de ouvir Mozart, de ler poesia e acalentar ideais humanos. Em geral, estes se mostravam mais desapontados e irritados do que os outros, e dessa forma o Lobo da Estepe levava sua própria natureza dual e discordante aos destinos alheios toda vez que entrava em contato com as pessoas.
    Quem, entretanto, imaginar que conhece o Lobo da Estepe e pode analisar sua existência lamentavelmente dividida, incorrerá, sem dúvida, em erro, pois ainda não sabe tudo. Não sabe que (como não há regra sem exceção e como um simples pecador em certas circunstâncias pode ser mais querido a Deus do que noventa e nove justos) Harry também conhecia de quando em vez exceções e momentos ditosos em sentir harmonia, e mesmo em raras ocasiões estabelecer a paz e viver um para outro de tal forma que não apenas um vigiava enquanto o outro dormia, mas também se fortaleciam ambos e cada um duplicava a energia do outro. Também na vida desse homem parecia, como em todas as partes do mundo, que o costumeiro, o consuetudinário, o conhecido e o normal tinham simplesmente por objeto permitir de quando em quando a pausa de um segundo de duração para dar lugar ao extraordinário, ao milagroso, à graça. Se tais curtas e raras horas de ventura compensavam e dulcificavam a triste sina do Lobo da Estepe, de forma que a felicidade e a desventura viessem a equilibra-se finalmente na balança, ou se, talvez, este breve mas intenso usufruir daquelas poucas horas compensava todo o sofrimento e deixava um saldo favorável de alegria, é questão sobre a qual podem meditar as pessoas ociosas a seu talante. Também o Lobo meditava isso, em seus dias mais ociosas e inúteis.
    A esse propósito há que acrescentar algo. Muita gente existe que se assemelha a Harry; especialmente muitos artistas pertencem a essa classe de homens. Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue materno e paterno, há capacidade para ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes, em seus raros momentos de felicidade, tanta força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor, que sua luz espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. A isto se devem, a essa preciosa e momentânea espuma sobre o mar de sofrimento, todas aquelas obras artísticas em que o homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o seu próprio destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e parecem a todos os que a vêem como algo eterno e como se fosse seu próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas, sejam quais forem seus atos e obras, não têm propriamente uma vida, ou seja, sua vida carece de essência e de forma, não são heróis, nem artistas, nem pensadores de maneira como os demais homens são juízes, doutores, sapateiros ou mestres; sua existência é um movimento de fluxo e refluxo, está infeliz e dolorosamente partida e é sinistra e insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido precisamente naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obram que brilham às vezes sobre o caos semelhante vida. Entre os homens dessa espécie surgiu o perigoso e terrível pensamento de que, talvez, toda a vida do homem não passa de um espantoso erro, de um aborto brutal da mão primeva, um cruel e selvagem intento frustrado da Natureza. Mas entre eles surgiu também a idéia de que o homem talvez não seja apenas um animal dotado de razão, mas o filho de Deus destinado à mortalidade.
    Cada espécie de homens tem suas características, seus aspectos, seus vícios e virtudes e seus pecados mortais. Um dos signos do Lobo da Estepe era o de ser noctívago. A manhã era para ele a pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera nada de bom. Nunca fora alegre em qualquer manhã de sua vida, nunca fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas idéias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao começar a tarde, ia reagindo lentamente, principiava a se animar e, ao cair da noite, em seus melhores dias, tornava-se frutífero, ativo e, às vezes, até brilhante e alegre. Disso decorria sua necessidade de isolamento e independência. Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de independência como ele. Em sua juventude, quando ainda era pobre e tinha dificuldades em ganhar a vida, preferia passar fome e andar mal vestido a sacrificar uma parcela de sua independência. Nunca se vendera por dinheiro ou vida fácil às mulheres ou aos poderosos, e mil vezes desprezara o que aos olhos do mundo representa vantagens e regalias, a fim de salvaguardar a sua liberdade. Nenhuma idéia lhe era mais odiosa e terrível do que a de exercer um cargo, submeter-se a horários, obedecer ordens. Um escritório, uma repartição, uma sala de audiência eram-lhe tão odiosos quanto a morte, e o que de mais espantoso podia imaginar em sonhos seria o confinamento num quartel. Sabia subtrair-se a todas essas coisas, a custo de grandes sacrifícios e nisso residia sua força e virtude, nisso era inflexível e incorruptível, nisso seu caráter era firma e retilíneo. Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu sofrimento e seu destino. Ocorria a ele o que se dá com todos: o que buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxurioso pela luxúria. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de relações e de isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença. O maravilhosos desejo fora realizado e já não era possível voltar atrás e de nada valia agora abrir os braços cheio de boa vontade e nostalgia, disposto à fraternidade e à vida social. Tinham-no agora deixado só. Não que fosse motivo de ódio e de repugnância. pelo contrário, tinha muitos amigos. Um grande número de pessoas o precisavam. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade; recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma atmosfera contra a qual não poderia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma das características mais significativas de sua vida.
    Outra era a de que pertencia ao grupo dos suicidas. E aqui é necessário esclarecer que não se devem considerar suicidas somente aqueles que se matam. Entre estes há suicidas que só o chegaram a ser por mero acaso, e de cuja essência do suicídio não fazem realmente parte. Entre os homens sem personalidade, sem características definidas, sem destino traçado, entre os homens incapazes e amorfos, há muitos que perecem pelo suicídio, sem por isso pertencerem ao tipo dos suicidas, ao passo que há muitos que devem ser considerados suicidas pela própria natureza de seu ser, os quais, talvez a maioria, nunca atentaram efetivamente contra a própria vida. O "suicida" - e Harry era um deles - não precisa necessariamente viver em relações particularmente intensas com a morte; isto se pode fazer sem que se seja um suicida. É próprio do suicida sentir seu eu, certo ou errado, como um germe da natureza, particularmente perigoso, problemático e daninho, que se encontrava sempre extraordinariamente exposto ao perigo, como se estivesse sobre o pico agudíssimo de um penedo onde um pequeno toque exterior ou a mais leve vacilação interna seriam suficientes para arrojá-lo no abismo. Esta classe de homens se caracteriza na trajetória de seu destino porque para eles o suicídio é a forma de morte mais verossímil, pelo menos segundo sua própria opinião. A existência dessa opinião, que quase sempre é perceptível já na primeira mocidade e acompanha esses homens durante toda sua vida, não representa, talvez, uma particular e débil força vital, mas, ao contrário, encontram-se entre os suicidas naturezas extraordinariamente tenazes, ambiciosas e até ousadas. Mas assim como há naturezas que caem em febre diante da mais ligeira indisposição, assim propendem essas naturezas a que chamamos "suicidas" e que sempre são muito mais delicadas e sensíveis à menor comoção, a entregar-se intensamente à coragem a autoridade suficientes para ocupar-se do homem, em vez de fazê-lo simplesmente no mecanismo dos fenômenos vitais, se tivéssemos uma verdadeira Antropologia, uma verdadeira Psicologia, tais fatos seriam conhecidos de todos.
    O que foi dito acima a propósito dos suicidas só diz respeito obviamente à superfície; é psicologia, portanto uma parte da física. Do ponto de vista metafísico, o assunto aparece de outra forma e muito mais claro, pois, vistos assim, os "suicidas" se nos apresentam como perturbados pelo sentimento de culpa inerente aos indivíduos, essas almas que encontram o sentido de sua vida não no aperfeiçoamento e moldagem do ser, mas na dissolução, na volta à mãe, a Deus, ao Todo. Muitas dessas naturezas são inteiramente incapazes de cometer suicídio real, porque têm uma profunda consciência do pecado que isso representa. Para nós, entretanto, são, apesar disso, suicidas, pois vêem a redenção na morte e não na vida; estão dispostos a eliminar-se e a entregar-se, a extinguir-se e a voltar ao princípio.
    Assim como toda força pode converter-se em fraqueza (e em certas circunstâncias deve fazê-lo, necessariamente), assim, ao contrário, o suicida típico pode fazer de sua aparente debilidade uma força e um escudo, o que acontece aliás com certa freqüência. A estes pertenciam também Harry, o Lobo da Estepe. Como milhares de seus semelhantes, fazia da idéia de que o caminho da morte estava pronto para ele a qualquer momento, não uma quimera juvenil e melancólica, mas antes encontrava nesse pensamento um apoio e um consolo. É verdade que nele, como em todos os homens de sua espécie, cada comoção, cada dor, cada desesperada situação da vida, despertava imediatamente desejo de livrar-se de tudo por meio da morte. Mas, pouco a pouco, foi transformando em seu interior essa tendência numa filosofia que era, na verdade, propensa à vida. A profunda convicção de que aquela saída de emergência estava constantemente aberta lhe dava forças, fazia-o sentira curiosidade de provar seu sentimento até às últimas instâncias. E quando se via na miséria, podia às vezes sentir com furiosa alegria uma espécie de prazer em sofrer: "Estou curioso por saber até que ponto um homem pode resistir. E quando alcançar o limite do suportável, basta abrir a porta e escapar." Há muitos suicidas que extraem força extraordinária deste pensamento.
    Por outra parte, a todos os suicidas é familiar a luta contra a tentação do suicídio. Cada um deles sabe muito bem, em algum canto de sua alma, que o suicídio, embora seja uma fuga, é uma fuga mesquinha e ilegítima, e que é mais nobre e belo deixar-se abater pela vida do que por sua própria mão. Tendo consciência disso, a mórbida consciência que é praticamente a mesma daqueles satisfeitos consigo mesmos, os suicidas em sua maioria são impelidos a uma luta prolongada contra o próprio vício. O Lobo da Estepe era bastante afeito a esse tipo de luta; nela já havia combatido com várias armas. Finalmente, aos quarenta e seis anos de idade, deu com uma idéia feliz, mas não inofensiva, que lhe causava, não raro, algum deleite. Fixou a data de seu qüinquagésimo aniversário como o dia no qual se permitiria o suicídio. Nesse dia, convencionara consigo mesmo, podia usar a saída de emergência, segundo a disposição que demonstrasse. Então poderia ocorrer-lhe o que fosse, enfermidades, miséria, sofrimentos e amarguras, que tudo teria um limite, nada poderia estender-se além daqueles poucos anos, meses e dias, cujo número era cada vez menor. E na realidade suportava agora com mais facilidade males que antes o teriam atormentado profundamente, males que o teriam comovido até as raízes. Quando por qualquer motivo as coisas iam particularmente más, quando novas dores e perdas se vinham juntar à desolação, ao isolamento e ao desespero de sua vida, podia dizer aos seus algozes: "Esperai mais dois anos e eu vos dominarei." E logo se punha a imaginar o dia de seu qüinquagésimo aniversário, quando, logo pela manhã, começariam a chegar as cartas de felicitações, enquanto ele, tomando da navalha, despedir-se-ia das dores e fecharia a porta atrás de si. Então a gota das juntas, a depressão do espírito e todas as dores de cabeça e do estômago poderiam procurar outra vítima.

    Carece ainda de elucidação o fenômeno individual do Lobo da Estepe, e principalmente suas relações singulares com a burguesia, de modo que tais sintomas devem ser perscrutados em sua fonte de origem. Tomemos como ponto de partida, já que se nos apresenta por si mesma, precisamente aquela relação com o "burguês"!
    O Lobo da Estepe vivia, segundo seu próprio entendimento, inteiramente à margem do mundo convencional, pois não conhecera nem a vida de família nem as ambições sociais. Sentia-se isolado ora como um esquisitão e doentio eremita, ora como um indivíduo superiormente dotado, que por seu gênio se sobressaía do comum dos mortais. Desprezava conscientemente a burguesia e vivia orgulhoso de não pertencer a ela. Contudo, sob muitos aspectos, vivia inteiramente como burguês, tinha dinheiro no banco, ajudava alguns parentes pobres, vestia-se sem cuidados particulares mas de maneira decente e sem chamar a atenção; procurava viver em paz com a polícia, os coletores de impostos e outros poderes semelhantes. Mas além disso sentia forte e secreta atração pela vida burguesa, pelas tranqüilas e decentes residências familiares com seus bem cuidados jardins, suas escadas reluzentes e sua modesta atmosfera de ordem e decoro. Agradava-lhe ter pequenos vícios e extravagâncias, sentir-se antiburguês, esquisitão ou gênio, mas nunca fixava residência onde não existisse nenhuma classe da burguesia. Não se encontrava à vontade em meio de pessoas violentas e atrabiliárias, nem entre delinqüentes e criminosos, mas antes procurava sempre viver em meio à classe média, com cujos hábitos, normas e atmosfera estava bem familiarizado, embora pudesse ter contra elas revolta e oposição. Além disso, fora educado em meio à pequena burguesia e dela conservara um grande número de idéias e noções. Teoricamente nada tinha em contrário à prostituição, mas na prática não seria capaz de levar uma prostituta a sério ou considerá-la realmente sua igual. Aos criminosos políticos, aos revolucionários ou aos sedutores espirituais, podia amá-los como se fossem seus irmãos, ou respeitar o estado e a sociedade, mas não saberia como tratar um ladrão, um criminoso ou sádico, a não se demonstrando por eles uma compaixão eminentemente burguesa.
    Dessa forma sempre reconhecia e afirmava com uma parte de seu ser, por pensamentos ou atos, o que com a outra parte negava e combatia. Criado num lar burguês e culto, de moral firme, nunca chegara a libertar parte de sua alma desses convencionalismos, mesmo depois de haver-se individualizado na medida do possível dentro da burguesia e haver-se divorciado do conteúdo dos ideais e das crenças burguesas.
    O "burguês", como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares de opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições.
    E compreensível que esta débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande, não consiga manter-se, que, de acordo com suas particularidades, não possa representar outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiro entre lobos erradios. Contudo, vemos que, em tempos de governos fortes, os burgueses se vêem oprimidos contra a parede, mas nunca sucumbem; na verdade às vezes parecem mesmo dominar o mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição. Não há remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem. E, todavia, a burguesia vive, é forte e próspera. Porquê?
    A resposta é a seguinte: Por causa dos lobos da estepe. Com efeito, a força vital da burguesia não se apóia de maneira alguma nas particularidades de seus membros normais, porém nas dos extraordinários e numerosos outsiders2 que, em conseqüência, a querem rodear com a vaga indecisão e a elasticidade de seus ideais. Convivem sempre na burguesia uma grande multidão de naturezas fortes e selvagens. Nosso Lobo da Estepe, Harry, é um exemplo característico. Ele que se desenvolveu muito mais do que se espera de um burguês, ele que conhece as delícias da meditação e também as sombrias alegrias do ódio e do ódio contra si mesmo, ele que despreza a lei, a virtude, o senso comum, é, no entanto, um prisioneiro forçado da burguesia e não pode escapar a ela. E assim em torno do núcleo da burguesia se sobrepõem amplas camadas de Humanidade, muitos milhares de vidas e inteligências, cada uma das quais surgida certamente da burguesia e disposta a uma vida sem reservas, mas que continua dependente da burguesia por sentimentos infantis e um tanto contagiada em sua debilidade pela intensidade vital; e embora pertencendo a ela, obrigadas e a seu serviço, pois à burguesia assenta perfeitamente o contrário da máxima do Grande: "Quem não está contra mim, está comigo."
    Se examinarmos agora a alma do Lobo da Estepe, veremos que ele é distinto do burguês por causa do alto desenvolvimento de sua individualidade, pois toda a individualização superior se orienta para o egoísmo e propende portanto ao aniquilamento. Vemos que tem em si um forte impulso tanto para o santo quanto para o libertino; no entanto, não pode tomar o impulso necessário para atingir o espaço livre e selvagem, por debilidade ou inércia, e permanece desterrado na difícil e maternal constelação da burguesia. Esta é sua situação no espaço do mundo e sua sujeição. A maior parte dos intelectuais e dos artistas pertence a esse tipo. Só os mais fortes entre eles ultrapassam a atmosfera da terra da burguesia e logram entrar no espaço cósmico; todos os demais se resignam ou selam pactos, pertencem a ela, reforçam-na e glorificam-na, pois em última instância têm de professar sua crença para viver. A vida desse infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor. São os trágicos e seu número é pequeno. Mas os outros, os que permaneceram submissos, a cujo talento a burguesia concede com freqüência grandes homenagens, a estes se abre um terceiro reino, um mundo imaginário, mas soberano: o humor. Os inquietos lobos da estepe, a esses contínuos e terríveis pacientes, ao que está negado o apoio necessário para o trágico, para subir ao espaço sideral, que se sentem chamados para o absoluto e, no entanto, não podem nele viver; para esses, quando seu espírito se fez duro e elástico na dor, abre-se-lhes o caminho conciliante do humor. O humor é sempre um pouco burguês, embora o verdadeiro burguês seja incapaz de compreendê-lo. Em suas imaginárias esferas realiza-se o ideal intrínseco e multifacetado de todos os lobos da estepe: aqui é possível não apenas celebrar o santo e o libertino ao mesmo tempo e unir um pólo ao outro, mas também incluir os burgueses na mesma afirmação. É possível estar-se possuído por Deus e sustentar o pecador, e vice-versa, mas não é possível nem ao santo nem ao libertino (nem a nenhum outro absoluto) afirmar aquele meio-termo fraco e neutro que se chama burguês. Somente o humor, a magnífica descoberta dos que foram detidos em seu vôo para o mais alto, dos quase trágicos, dos infelizes superdotados, só o humor (talvez o produto mais genuíno e genial da Humanidade) atinge esse impossível e une todos os aspectos da existência humana nos raios de seu prisma. Viver no mundo como se não fosse o mundo, respeitar a lei e no entanto colocar-se acima dela, possuir uma coisa "como se não a possuísse", renunciar como se não tratasse de uma renúncia, todas essas proposições favoritas e formuladas com freqüência, todas essas exigências de uma alta ciência da vida, somente pode realizá-las o humor.
    E no caso do Lobo da Estepe, a quem não faltam faculdades e disposições para tanto, se lograsse, no labirinto de seu inferno, absorver e transpirar essa bebida mágica, então estaria salvo. Ainda lhe falta muito para isso, mas a possibilidade, a esperança existem. Quem o ama, quem se interessa por ele, pode desejar-lhe esta salvação. Ela iria, é verdade, mantê-lo preso ao mundo burguês, mas seu padecimento seria suportável e produtivo. Suas relações com o mundo burguês quer no amor quer no ódio perderiam seu sentimentalismo e sua sujeição a ele cessaria de atormentá-lo continuamente como um opróbio.
    Para alcançar isto, ou para, afinal, ser capaz de tentar o salto no desconhecido, teria um lobo da estepe de defrontar-se algumas vezes consigo mesmo, olhar profundamente o caos de sua própria alma e chegar à plena consciência de si mesmo. Sua existência enigmática revelar-se-ia então para ele em toda sua invariabilidade e ser-lhe-ia impossível para sempre no futuro escapar do inferno de seus impulsos e refugiar-se em consolos filosóficos e sentimentais. Seria necessário que o homem e o lobo se conhecessem mutuamente sem falsas máscaras sentimentais, que se fitassem nos olhos em toda a sua nudez. Então explodiriam ou se separariam para sempre, de modo que não voltariam a existir lobos da estepe ou chegariam a bons termos à luz nascente do humor.
    É possível que Harry tenha um dia esta última possibilidade. É possível que um dia aprenda a conhecer-se, seja porque receberá nas mãos um dos nossos espelhinhos, seja porque alcance o Imortal ou talvez encontre num dos nossos teatros mágicos aquilo de que necessita para libertar sua alma desgarrada. Mil possibilidades o esperam, seu destino as atrai irremediavelmente, pois todos esses solitários da burguesia vivem na atmosfera dessas mágicas possibilidades. Basta apenas um nada para que se produza a centelha.
    E tudo isso é amplamente conhecido pelo Lobo da Estepe, ainda que seus olhos nunca venham a dar com este fragmento de sua biografia íntima. Ele suspeita e teme a possibilidade de um encontro consigo mesmo, e está cônscio da existência daquele espelho no qual tem uma necessidade tão marga de olhar-se e no qual teme mortalmente ver-se refletido.
    Para terminar nosso estudo resta esclarecer ainda uma última ficção, um engano fundamental. Todas as interpretações, toda psicologia, todas as tentativas de tornar as coisas compreensíveis se fazem por meio de teorias, mitologias, de mentiras; e um autor honesto não deveria furtar-se, no fecho de uma exposição, a dissipar essas mentiras dentro possível. Se digo "acima" ou "abaixo", isso já é uma afirmação, que exige um esclarecimento, pois só existem acima e abaixo no pensamento, na abstração. O mundo mesmo não conhece nenhum acima nem abaixo.
    Da mesma maneira, para ser sucinto, o lobo da estepe também é uma ficção. Se o próprio Harry se sente como homem-lobo e se crê formado por dois seres inimigos e opostos, isso é puramente uma mitologia simplificadora. Harry não é nenhum homem-lobo, e se aceitamos a princípio sua mentira, inventada e acreditada por ele mesmo, e tentamos considerá-lo e explicá-lo dentro da realidade como um ser duplo, como um lobo da estepe, foi porque nos aproveitamos dela para sermos compreendidos mais facilmente, mentira essa cuja retificação deve ser tentada agora.
    A divisão em lobo e homem, em impulso e espírito, mediante a qual Harry procura explicar seu destino, é uma grosseira simplificação, uma violentação do real em favor de uma explicação plausível porém errônea da desarmonia que este homem encontra em si e que lhe parece a fonte de seus não leves sofrimentos. Harry encontra em si um "homem", ou seja, um mundo de pensamentos, de sensações, de cultura, de natureza domada e sublimada, e vê também, ao lado de tudo isto, um "lobo", ou seja, um obscuro mundo de instintos, de selvagerismo e crueldade, de natureza bruta e insublimada. Apesar desta divisão, ao que tudo indica tão clara de seu ser em duas esferas, que são inimigas entre si, de quando em quando, já percebeu que o lobo e o homem, durante algum tempo, vivem reconciliados. Se Harry tentasse estabelecer em cada momento determinado de sua vida, em cada um de seus sentimentos, a parte correspondente neles ao homem e a parte que corresponde ao lobo, acabaria por encontrar-se num dilema, e toda a sua bela teoria do homem-lobo cairia por terra. Pois não há um único ser humano, nem mesmo o negro primitivo, nem mesmo os idiotas, convenientemente simples, que possa ser explicado como a soma de dois outros elementos principais; e explicar um homem tão complexo quanto Harry por meio da ingênua divisão em lobo e homem seria uma tentativa positivamente infantil. Harry compõe-se não de dois, mas de cem ou de mil seres. Sua vida não oscila (como a vida de cada um dos homens) simplesmente entre dois pólos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis pólos.
    Não devemos surpreender-nos pelo fato de que mesmo um homem tão inteligente e educado quanto Harry possa tomar-se por um lobo da estepe e reduzir a rica e complexa imagem de sua vida a uma fórmula tão simples, tão rudimentar e primitiva. O homem não é capaz de pensar em alta escala, e mesmo o mais espiritual e altamente intelectualizado pode contemplar o mundo e a si próprio através das lentes de fórmulas enganosas e simplistas - especialmente a si próprio! Pois parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos os homens imaginarem o próprio ser como uma unidade. E apesar de essa ilusão sofrer com freqüência graves contratempos e terríveis choques, ela sempre se recompõe. O juiz que se senta defronte ao criminoso e o fita no rosto, e por um instante reconhece todas as emoções, potencialidades e possibilidades do assassino em sua própria alma de juiz e ouve a voz do assassino como sendo a sua, já no momento seguinte volta a ser uno e indivisível como juiz, volta a encerrar-se na envoltura do seu eu quimérico e cumpre seu dever e condena o assassino à morte. E se em algumas almas humanas, singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a suspeita de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir essa idéia, então imediatamente a maioria as prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a Humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses infelizes. Então, para que perder aqui palavras, por que expressar coisas que todos aqueles que pensam conhecem por si mesmos, quando sua simples enunciação é uma nota de mau gosto? Assim, pois, se um homem se aventura a converter numa dualidade a pretendida unidade do eu, se não é um gênio, é em todo caso uma rara e interessante exceção. Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece como uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.
    O equívoco reside numa falsa analogia. Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma. Também na literatura, mesmo na mais refinada, encontramos este conceito habitual em personagens aparentemente unas, aparentemente uniformes. No teatro de hoje, o que mais aprecia a gente do ofício, os conhecedores, é o drama, e com razão, pois oferece (ou oferecia) as maiores possibilidades para a representação do eu como uma pluralidade, se isto não se opõe a brutal impressão de unidade que nos dá cada pessoa isolada do drama, ao levar encerrada, sem resistência, essa pluralidade num corpo simples, uniforme e isolado. Também apreciam muito a ingênua estética do chamado drama de caráter, no qual cada figura se apresenta como uma unidade muito característica e isolada. Só de longe e pouco a pouco começa a despertar em alguns a suspeita de que tudo isto não passa de uma razoável estética superficial, de que nos equivocaremos se aplicarmos aos nossos grandes dramaturgos a magnífica idéia de beleza dos antigos, pois esta não é congênita a nós, mas simplesmente intuída, e é nela, na fonte comum dos corpos visíveis, que se encontra exatamente a ficção do ego, da personalidade. Nas obras da Índia antiga esta concepção é completamente desconhecida, os heróis da epopéia índica não são pessoas, mas aglomerados de pessoas, conjuntos de reencarnações. E em nosso mundo moderno há obras em que, por trás do véu do jogo das pessoas e caracteres, tentou-se apresentar uma pluralidade de almas, não de todo inconsciente para o autor. Quem queira comprovar isto deve decidir-se a considerar de uma vez as figuras de uma obra semelhante, não como seres individuais, mas como pares, como facetas, como aspectos diversos de uma suprema unidade (que para mim é a alma do poeta). Quem examinar deste modo o Fausto, tanto o Fausto, Mefistófeles, Wagner e todos os demais significarão para ele a unidade, uma superpessoa, e só nesta suprema unidade e não nas figuras isoladas estará refletido algo da verdadeira essência da alma. Quando fausto diz a frase que ficou célebre entre os professores e admirada com terror pelos filisteus: "Duas almas, ai, moram no meu peito!" esqueceu-se de Mefistófeles e de toda uma multidão de outras almas que também se abrigam em seu peito. Nosso Lobo da Estepe crê levar também em seu peito duas almas (lobo e homem) e por isto sente o peito demasiadamente oprimido e estreito. O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com muitos fios. Os antigos asiáticos sabiam disto muito bem, e encontram no ioga búdico uma técnica precisa para descobrir a ilusão da personalidade. Divertido e multíplice é o jogo da Humanidade: a ilusão que levou milhares de anos para ser descoberta pelos hindus é a mesma ilusão que aos ocidentais custou tanto trabalho custodiar e fortalecer.
    Se observarmos o Lobo da Estepe a partir deste ponto de vista, veremos claramente porque sofre tanto sob a sua ridícula dualidade. Crê, como Fausto, que duas almas são demais pra um peito só e podem arrebentar com ele. Mas, ao contrário, são demasiado poucas, e Harry violenta terrivelmente sua pobre alma se busca compreendê-la numa imagem tão primitiva. Harry, embora seja um homem grandemente instruído, procede talvez como um selvagem, que não sabe contar além de dois. Chama a uma parte de si mesmo de homem, à outra, de lobo, e com isso acredita haver chegado á meta e esgotado o assunto. No "homem" encerra tudo o que há de espiritual, de sublime ou culto que encontra em si, e no "lobo" tudo o que há de instintivo, de selvagem e caótico. Mas as coisas não se passam na vida de maneira tão simples como em nosso pensamento, nem tão rude como em nosso pobre idioma de idiotas, e Harry se engana duplamente ao empregar este método tacanho do lobo. Harry considera, o que é de temer-se, todas as divisões de sua alma como parte do "homem", muitas das quais já deixaram de ser homem, e qualifica partes de seu ser como lobo, partes que há muito já estão além do lobo.
    Como todos os homens, Harry crê saber muito bem o que é o homem, e não sabe absolutamente nada, embora o suspeite algumas vezes em sonho ou em outros estados anímicos não sujeitos a controle. Quem dera não esquecesse esses pressentimentos, mas se apropriasse deles tanto quanto possível! O homem não é uma forma fixa e duradoura (tal era o ideal dos antigos, apesar do pensamento em contrário de alguns luminares da época); é antes um ensaio e uma transição, não é outra coisa senão a estreita e perigosa ponte entre a Natureza e o Espírito. Para o espírito, para Deus, ele é impulsionado por sua vocação mais íntima. para a natureza, para a mãe, é atraído pelo mais íntimo desejo. Sua vida oscila vacilando angustiosamente entre ambos os poderes. O que se compreende comumente pela palavra "homem" é sempre uma estipulação efêmera e burguesa. Certos impulsos mais crus estão afastados e proibido nessa convenção; um grau de consciência e de cultura humana são reclamados à besta; uma pequena parcela de espírito não é somente permitida, como também encorajada. O homem desta convenção, como todos os outros ideais burgueses, é uma conciliação, um intento tímido, de ingênua astúcia com o intuito de enganar tanto à perversa mãe Natureza primitiva quanto o incômodo primitivo pai Espírito de suas enérgicas exigências e para viver na zona temperada entre eles. É por isso que a média das pessoas permite e tolera aquilo que denomina "personalidade", mas ao mesmo tempo entrega a personalidade àquele Moloch chamado "Estado" e intriga continuamente um com o outro. Assim o burguês queima hoje por herege e enforca por criminoso aquele ao qual amanhã levantará estátuas.
    Que o "homem" não é alguma coisa já criada, mas apenas uma exigência do espírito, uma possibilidade longínqua, tão desejada quanto temida, e que o caminho a que isto conduz só vai sendo percorrido em pequenos impulsos e debaixo de terríveis tormentos e sonhos, precisamente por aquelas raras individualidades, para as quais hoje se prepara o patíbulo e amanhã o monumento - é a suspeita que vive também no Lobo da Estepe. Porém, o que ele para si designa como "homem", em contraposição ao seu "lobo", não é, em grande parte, senão aquele homem medíocre do convencionalismo burguês. O caminho para o verdadeiro homem, o caminho para os imortais, Harry adivinha-o perfeitamente e percorre-o também aqui e ali com timidez, muito lentamente, pagando este avanço com graves tormentos e com seu doloroso isolamento. mas, proporcionar-se, aspirar àquela suprema exigência, àquela encarnação pura e buscada pelo espírito, andar o único caminho estreito para a imortalidade, isto receia-o no mais profundo de sua alma. tem perfeita consciência de que isto conduz a tormentos ainda maiores, à proscrição, à renúncia de tudo, talvez ao cadafalso; e, apesar de saber que no fim deste caminho a imortalidade sorri sedutora, não está disposto a padecer todos estes sofrimentos, a morrer todas estas mortes. Tendo ainda mais consciência do fim da encarnação do que os burgueses, fecha, todavia, os olhos e faz por ignorar que o apego desesperado ao próprio eu, a desesperada ânsia de viver, são o caminho mais seguro para a morte eterna, ao passo que o saber morrer, rasgar o véu do mistério, ir procurando eternamente mutações em si mesmo, conduz à imortalidade. Quando adora os seus favoritos entre os imortais, Mozart, por exemplo, nunca o faz, afinal, senão com olhos de burguês, e pretende explicar doutamente a perfeição de Mozart apenas pelos seus altos dotes de músico, e não pela grandeza de sua abnegação, paciência no sofrimento e independência perante os ideais da burguesia, pela sua resignação naquele extremo isolamento, semelhante ao do horto de Getsêmani, que em torno do que sofre e está em vias de reencarnação rarifica toda a atmosfera burguesa até convertê-la em gelado éter cósmico.
    Mas, enfim, o nosso Lobo da Estepe descobriu dentro de si ao menos a duplicidade fáustica; conseguiu determinar que à unidade de seu corpo corresponde uma unidade espiritual, mas que, no melhor dos casos, apenas se encontra em caminho, com uma larga peregrinação à frente, para o ideal dessa harmonia. Desejaria vencer dentro de si o lobo e viver inteiramente como homem, ou então, renunciar ao homem e viver ao menos como lobo uma vida uniforme, sem desvios. Provavelmente nunca observou com atenção um lobo autêntico; então veria, talvez, que nem mesmo os animais possuem a anuidade da alma, que também neles, atrás da bela e austera forma do corpo, vive uma multiplicidade de desejos e de estados; que também o lobo tem abismos no seu interior e também sofre. Não! Com a volta à Natureza o homem vai sempre por um falso caminho, cheio de sofrimentos e sem esperanças. Harry não pode tornar a converter-se inteiramente em lobo, e se tal acontecesse veria que nem mesmo o lobo é simples e originário, mas alguma coisa já muito complexa. Também o lobo tem duas e mais de duas almas dentro do peito, e quem desejar ser um lobo incorre na mesma ignorância do homem da canção: "Feliz quem voltasse a ser criança!" O homem simpático, mas sentimental, que entoa a canção do menino ditoso, desejaria também voltar à Natureza, à inocência, ao princípio, mas esqueceu que nem mesmo as crianças são felizes, e sim suscetíveis de muitos conflitos, de muitas desarmonias, de todos os sofrimentos.
    Para trás, não conduz a nenhum caminho, nem para o lobo nem para a criança. No princípio das coisas não há simplicidade nem inocência; tudo o que foi criado até o que parece mais simples, é já culpável, já complexo, foi lançado ao sujo torvelinho do desenvolvimento e já não pode, não poderá nunca mais, nadar contra a corrente. O caminho para a inocência, para o incriado, para Deus, não se dirige para trás mas sim para diante; Não para o lobo ou a criança, mas cada vez mais para a culpa, cada vez mais fundamente dentro da encarnação humana. Nem mesmo com o suicídio, pobre Lobo da Estepe, te livrarás realmente das dificuldades; tens de percorrer o caminho mais largo, mais penoso e mais difícil da humana encarnação; freqüentemente terás de multiplicar a tua multiplicidade, complicar ainda mais a tua complexidade. Em vez de reduzir o teu mundo, de simplificar a tua alma, terás de recolher cada vez mais mundo, de recolher no futuro o mundo inteiro na tua alma dolorosamente dilatada, para chegar talvez algum dia ao fim, ao descanso. O mesmo caminho foi percorrido por Buda e todos os grandes homens, uns conscientes, outros inconscientemente, na medida em que a fortuna favorecia a sua busca. Nascimento significa desunião do todo, limitação, afastamento de Deus, penosa reencarnação. Volta ao todo, anulação da dolorosa individualidade, chegar a ser Deus, quer dizer: ter dilatado a alma de tal forma que se torne possível voltar a conter novamente o todo.
    Não se trata aqui do homem conhecido das escolas, da economia política ou da estatística, nem do homem que aos milhões anda pela rua e não tem mais importância do que a areia ou a espuma dos mares: pouco adiantam alguns milhões a mais ou a menos; são material e nada mais. Não, nós falamos aqui do homem no sentido elevado do termo, do largo caminho da encarnação humana, do homem verdadeiramente real, dos imortais. O gênio não é tão raro como em geral nos parece, nem tão freqüente como pretendem as histórias literárias, a história universal e até mesmo os jornais. O Lobo da Estepe, Harry, segundo nossa opinião, seria gênio bastante para intentar a aventura da encarnação humana, sem necessidade de trazer para confrontação, lamentavelmente, a cada dificuldade, o seu estúpido lobo da estepe.
    É tão estranho e entristecedor que homens de tais possibilidades surjam como lobos da estepe e com "duas almas, ai!" e que mostrem tanta afeição covarde ao burguês. Um homem capaz de compreender Buda, um homem que tem noção dos céus e dos abismos da natureza humana, não deveria viver num meio em que domina o senso comum, a democracia e a educação burguesa. Só por covardia continua a viver nele, e quando suas dimensões o oprimem, quando a estreita cela do burguês se torna demasiado apertada, ele atribui tudo isto ao "lobo" e não que aperceber-se de que às vezes o lobo é a sua melhor parte. Tudo o que há de feroz dentro de si ele o atribui ao lobo e o tem por mau, perigoso e terror dos burgueses; mas ele que, no entanto, se acredita um artista e supõe ter sensibilidade, não é capaz de ver que fora do lobo, atrás do lobo, vivem no seu interior muitas outras coisas: que nem tudo o que morde é lobo; que dentro de si habitam também a raposa, o dragão, o tigre, o macaco e a ave-do-paraíso, e que todo este mundo é um éden cheio de milhares de seres, formosos e terríveis, grandes e pequenos, fortes e delicados, mundo asfixiado e cercado pelo mito do lobo - tanto como o verdadeiro homem que nele há é asfixiado e preso apenas pela sua aparência de homem, pelo burguês.
    Imagine-se num jardim de cem espécies de árvores, com mil variedades de flores, com cem espécies de frutas e outros tantos gêneros de ervas. Pois bem: se o jardineiro que cuida deste jardim não conhece outra diferenciação botânica além do "joio" e do "trigo", então não saberá que fazer com nove décimas partes de seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras, cortará as árvores mais nobres, ou pelo menos ter-lhes-á ódio e as olhará com maus olhos. Assim faz o Lobo da Estepe com as mil flores de sua alma. O que não está compreendido na designação pura e simples de "lobo" ou de "homem nem sequer merece sua atenção. E quantas qualidades ele empresta ao homem! Tudo o que é covarde, símio, estúpido, mesquinho, desde que não seja muito, diretamente lupino, ele atribui ao "homem", assim como atribui ao "lobo" tudo o que é forte e nobre, só porque não conseguiu ainda dominá-lo.
    Despedimo-nos de Harry. Deixamos que continue o seu caminho. Se já estivesse com os imortais, se já tivesse chegado lá onde a sua penosa marcha parece querer levá-lo, como olharia assombrado este vaivém, este feroz e irresoluto ziguezague da sua rota, como sorriria a este lobo da estepe, animando-o, censurando-o, com compaixão e complacência!
    trecho do romance O Lobo da Estepe, de Herman Hesse
    posted by iSygrun Woelundr @ 5:57 PM   0 comments
    HISTÓRIA das lendas, Jean-Pierre Bayard
    eBookLibris

    Jean-Pierre Bayard

    HISTÓRIA
    DAS LENDAS

    —Ridendo Castigat Mores—

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    História das Lendas
    Jean-Pierre Bayard
    Edição
    Ridendo Castigat Mores

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    eBooksBrasil.com

    Fonte Digital
    www.jahr.org
    Copyright ©
    Autor: Jean-Pierre Bayard
    Tradução: Jeanne Marillier
    Edição eletrônica:
    Ed. Ridendo Castigat Mores
    (www.jahr.org)
    “Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


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    ÍNDICE
    INTRODUÇÃO.
    PRIMEIRA PARTE: Evolução das Lendas.
    CAPÍTULO I. — Generalidades.
    CAPÍTULO II. — Divulgação dos contos.
    CAPÍTULO III. — Interpretação das lendas.
    I. Sentido profano.
    II. Sentido sacro e iniciático.
    SEGUNDA PARTE: Estudo das Lendas.
    CAPÍTULO I. — Fausto.
    CAPÍTULO II. — Don Juan.
    CAPÍTULO III. — As canções de gesta.
    I. Canção de Rolando.
    II. Os quatro filhos de Aymon.
    III. O Cid.
    CAPÍTULO IV. — O ciclo arturiano.
    I. A Demanda do Santo Graal.
    II. Merlin.
    III. Tristão e Isolda.
    CAPÍTULO V. — O maravilhoso da lenda.
    I. Gargântua.
    II. O judeu errante.
    III. Roberto, o Diabo.
    IV. Pierre de Provença.
    CAPÍTULO VI. — Formação das lendas recentes.
    I. Cartouche.
    II. Mandrin.
    CAPÍTULO VII. — Alguns contos de Perrault.
    I. Introdução.
    II. O Barba-Azul.
    III. A Bela Adormecida no bosque.
    IV. Gata Borralheira e Pele de Burro.
    V. O pássaro da verdade.
    VI. O Chapeuzinho Vermelho.
    VII. O Pequeno Polegar.
    VIII. João, o Urso.
    IX. Riquet à la Houppe.
    X. O Gato de botas.
    BIBLIOGRAFIA.
    NOTAS.


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    HISTÓRIA DAS LENDAS
    JEAN-PIERRE BAYARD

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    INTRODUÇÃO


    A evolução constante da humanidade para um fim inatingível influi sobre a vida do indivíduo; as artes, expressão natural do homem, constantemente modificada, seguem uma curva que pretendemos ser ascendente.

    Foi dito que tudo o que era estático, imóvel, era atrasado; a evolução só deve ser dinâmica. Contudo, o estudo da evolução nos confunde dada a soma de mistérios que surgem a todo momento.

    Parece paradoxal que homens, em épocas em que a ciência era menos adiantada do que a nossa, tenham descoberto leis que apenas encontramos. Contudo, as características das grandes pirâmides nos provam, de maneira irrefutável, que os egípcios conheciam os segredos de fórmulas que ainda não descobrimos inteiramente. Nossos rigorosos cálculos científicos eram, sem dúvida, substituídos por outra ciência tão precisa quanto a nossa.

    Esta evolução ascendente torna-se, desta forma, menos positiva; cremos apenas que as questões formuladas o eram de maneira diferente; é uma transformação de energias. O mar, com seu fluxo e refluxo, pode, em certos momentos, fazer crer que evolui; contudo, permanece como é, não enche sem vazante. Nossa lei de transformação torna-se então uma constante e a contribuição de nossa atividade científica cuja utilidade não é certa — é anulada pela nossa falta de raciocínio. Numa civilização mecanizada o espírito acha-se cada vez mais deslocado

    Se nossos conhecimentos se modificaram, a inteligência continua a ser um bem imutável; não se pode dizer que Einstein seja mais inteligente do que Pascal, mas apenas que Einstein resolveu, em seu tempo, outros problemas. Einstein — ou qualquer outro sábio — descobriu apenas o que outros já haviam vislumbrado, e quando diz que o mundo está fechado, repete apenas o que o Evangelho de São João Batista já nos ensinou.

    A evolução do homem continua pois a ser uma miragem e os grandes iniciados revelam, simbolicamente, algumas verdades cuja veracidade controlamos com dificuldade. O estudo de problemas humanos, de raças, de folclore; nos leva a crer que o homem, anteriormente, tenha sido um iniciado mas que seus conhecimentos se perderam. Algumas tribos da África equatorial conservaram virtudes e sentidos que já não temos. Nossas sensações se evaporaram. É assim que um ensinamento geral emana dos contos e que toda essa poesia anônima, feita de graça e frescor, reflete a mesma preocupação.

    Acontece que essa literatura coletiva, criada pelo produto inconsciente da imaginação, pela massa, pretendia ser um testemunho, uma prova. Não é absurdo pensar que os contos, antes divulgados oralmente e depois, por escrito, provavam, apoiavam teses, argumentavam em seu favor. Sob a forma de um divertimento, a fábula educava.

    A moral dessas fábulas é agradável, engraçada; distrai pois não aborrece aquele a quem se dirige.

    O estudo do folclore mundial — que reflete a atividade, o pensamento de uma época e de um povo — é pois o estudo da humanidade. Essas obras esclarecem períodos obscuros e suas deformações são instrutivas, pois nada mais são do que a evocação de mores locais, de concepções particulares e humanas. A lenda, mais verdadeira do que a história, é um precioso documento: ela exara a vida do povo, comunica-lhe um ardor de sentimentos que nos comove mais do que a rigidez cronológica de fatos consignados; desta forma, o romance é a sobrevivência das lendas. Imaginamos uma literatura científica na qual os “robots” escrevem poemas; mas esses engenhos mecânicos nunca poderão transmitir emoções iguais às contidas nos poemas de Villon ou de Baudelaire, pois que as obras desses homens eram feitas com sangue.

    Além do maravilhoso que envolve esses mitos é preciso descobrir o tema inicial que se reproduz em países diferentes e muito longínquos: essa concepção nos leva a uma nova interpretação. Esses contos misteriosos fazem a Th. Briant escrever (Le Goéland, n.o III) (A Gaivota): “cada lenda podia ter uma explicação mística no plano de analogias e correspondências”, contudo, “as identidades nos fogem e chapinhamos no Relativo”.

    Alguns contos, assim tratados, mostraram aspectos de sua evolução e interpretação; é evidente que estas simples páginas não esgotarão o assunto.


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    PRIMEIRA PARTE
    EVOLUÇÃO DAS LENDAS
    CAPÍTULO I
    GENERALIDADES


    I. — Definições
    A palavra lenda provém do baixo latim legenda, que significa “o que deve ser lido”. No princípio, as lendas constituíam uma compilação da vida dos santos, dos mártires (Voragine); eram lidas nos refeitórios dos conventos. Com o tempo ingressaram na vida profana; essas narrações populares, baseadas em fatos históricos precisos, não tardaram a evoluir e embelezar-se. Atualmente, a lenda, transformada pela tradição, é o produto inconsciente da imaginação popular Desta forma o herói sujeito a dados históricos, reflete os anseios de um grupo ou de um povo; sua conduta depõe a favor de uma ação ou de uma idéia cujo objetivo é arrastar outros indivíduos para o mesmo caminho.

    A fábula é uma narração em verso, cujos personagens são animais dotados de qualidades humanas. As mais célebres fábulas são as de Esopo, La Fontaine e Florian.

    Os contos de animais são fábulas redigidas em prosa.

    O conto é uma narração maravilhosa baseada numa trama romanesca; os lugares não são determinados e os personagens não têm nenhuma precisão histórica; a narração distrai. A lenda é um conto no qual a ação maravilhosa se localiza com exatidão; os personagens são precisos e definidos. As ações se fundamentam em fatos históricos conhecidos e tudo parece se desenrolar de maneira positiva. Freqüentemente a história é deformada pela imaginação popular.

    O mito é uma forma de lenda; mas os personagens humanos tomam-se divinos; a ação é então sobrenatural e irracional. O tempo nada mais é do que uma ficção. Na realidade, essas categorias se embaraçam e os mitos são de uma infinita variedade; relacionam--se às religiões, são cosmogônicos, divinos — ou heróicos. As lendas, com personagens mais modestos, fazem evoluir mágicos, fadas, bruxas, que, de uma maneira quase divina, influem nos destinos humanos.

    2. — Origem

    A lenda, mais verdadeira do que a história, devido à quantidade de ensinamentos humanos, contraria freqüentemente a verdade psicológica; uma abóbora transforma-se em carruagem; um rato, em cocheiro. Entretanto, essas ficções não são nem pueris nem grotescas; elas nos interessam, nos repousam e nos deslumbram. Esse mundo fluido que põe em xeque o nosso mundo real, foi definido pelo bondoso Jean de la Fontaine:

    e até mesmo eu.
    Se me contassem a Pele de burro
    sentiria um extremo prazer(1)

    Este divertimento do povo é sua aspiração secreta, sua busca espiritual de um mundo maravilhoso onde impere o valor do homem, onde as leis, tão detestadas, sejam abolidas. E o encantamento, a volta ao Paraíso Terrestre.

    A lenda existe desde a formação do clã, da sociedade e os temas se desenvolvem com preocupações semelhantes em todas as culturas.

    Essa literatura coletiva pode ser proveniente de um único mito propalado de país em país A Índia foi primeira a nos fornecer o índice escrito desse folclore mundial, o que não implica que a Índia seja o seu berço. Divulgados oralmente, esses contos -foram talvez escritos e conservados em outros países, mas sua mensagem não chegou até nós: por muito tempo ignorou-se as riquezas contidas nas pirâmides cujos segredos ainda não foram completamente desvendados, o que não permitiria aos nossos filhos dizerem que as pirâmides não contêm nenhum segredo.

    Esses contos, transformados, decantados, modificados, foram portanto transcritos nos Vedas, aproximadamente 4.500 anos a. C. base de nossa mais antiga civilização teriam os Arias e o original da compilação é o Pantchatantra (os “cinco livros”). Considerando os animais que falam e as leis da metempsicose, parece ser a fábula um produto espontâneo da Índia. É curioso, contudo, que uma passagem do romance de Merlin esteja reproduzida num conto Indiano (Gulcasapati) e numa compilação de Somadeva. Sinais do budismo aparecem em vários outros lugares e principalmente na grande caridade demonstrada pelos heróis para com os animais.

    Nestes últimos anos, a escola folclorista compilou contos semelhantes aos da Índia, em todos os países. Portanto, os mitos se divulgaram através do tempo e do espaço. A religião grega toma emprestado à religião fenícia, o mito de Adônis e Cibele. Reinhold Kohler e Theodor Benfey ficaram estupefatos ao encontrar os mesmos temas iniciais em todos os países. É verdade que durante sua peregrinação, os contos se transformaram; há a influência do meio, a alteração de certos fatos, lacunas que foram preenchidas e novos motivos surgiram, mas a base da criação continua a mesma; as particularidades locais, muitas vezes morais, fornecem preciosos ensinamentos sobre o povo e sua maneira de pensar.

    A divulgação dos contos talvez nos surpreenda em função da época mas, na realidade, os países se comunicavam entre si muito antes das viagens de Cristóvão Colombo, Magellan ou Marco Polo. Teria havido navegadores, verdadeiros aventureiros, que transportavam ensinamento de uma a outra civilização e o ritmo da vida era assim o mesmo em cada país. A América possuía suas fundições no mesmo período que a Ásia ou a Europa.

    Concluindo, não se pode afirmar que houve uma única invenção, mas apenas a Índia possui os documentos antigos onde nossos mitos estão registrados.

    3. — Os temas

    Transcrição do pensamento do povo, os temas simbolizam suas aspirações. Transposição de sentimentos e desejos humanos a lenda abole o real.

    O homem — infeliz torna-se poderoso. A pastora bela e incompreendida, desposa um príncipe encantado; o sapatinho perdido, emblema de sua beleza, é cultuado na Índia. As mulheres, prisioneiras dos hábitos, vivem sob a dependência do homem: as princesas terão liberdade e o rei será passivo. O subconsciente criou uma “supercompensação” para os nossos sentimentos de inferioridade

    Os mistérios naturais preocupam a imaginação: tudo é maravilhoso, incompreensível, surpreendente e fascinante. Desde o desabrochar da flor até as ondas sorrateiras que dirigimos sem conhecer — a eletricidade — essas manifestações são de uma amplitude desconcertante. O sol e, conseqüentemente, a lua, favorecem com seu culto, a criação de malefícios, de palavras mágicas e de palavras-chave.

    Entretanto, esses conhecimentos só podem ser adquiridos com uma certa iniciação; para comandar os espíritos é preciso instrução e o adepto, depois das provas e dos três estágios (purificação, conhecimento e poder), conhecerá, finalmente, todas as virtudes da câmara secreta. O conto será uma lição mas o mito não poderia se enunciar claramente; elementos conscientes, só instruiriam os iniciados enquanto que o povo veria nisso apenas um divertimento. Naturalmente a bruxaria liga-se a essa magia feiticeira. É a estranha personalidade do diabo. A lenda religiosa deveria se utilizar do antagonismo entre a dualidade da alma humana.

    De acordo com Freud, a sexualidade desempenha um papel primordial no comportamento da sociedade; é representada sob o símbolo do algarismo 3 — a Trindade mística — e o lírio heráldico representaria o órgão macho. A psicanálise interpretará os contos da mesma forma que os sonhos.

    A lenda histórica fundamenta-se em fatos reais, mas o narrador altera a verdade a fim de provar. A lenda do Cid, criada quarenta anos depois da morte do herói, é de composição diferente da de Rolando, escrita duzentos e setenta anos depois de Roncesvales. As suas falhas são flagrantes, bem como nas duas célebres lendas épicas, a Ilíada e a Odisséia.

    Outras lendas estão em formação. Eis a de Cartouche, Mandrin, Jack, o Estripador, Mayerling, o mito de Hitler vivendo num rancho americano é análogo ao de Napoleão. A irmãzinha de Lisieux deu origem, segundo o padre de Ars ou São Vicente de Paula, a uma imensa literatura que não pode desaparecer imediatamente.

    Todavia, nesses ciclos temáticos, raramente um tema se representa no estado isolado; ele se imbrica com vários outros, também mais ou menos modificados. Sendo esses assuntos primordiais inumeráveis, estudaremos apenas alguns mitos principais.

    4. — A pesquisa folclórica

    A palavra folklore foi criada por W. J. Thomas, em 1846. Folk significa povo e lore; saber ou conhecimento. Antigamente os franceses empregavam a expressão: “Tradições Populares”.

    Perrault, quando publicou, na editora Barbin (Paris), em 1697, suas Histoires ou Contes du temps passé, abriu caminho aos irmãos Grimm que compilavam os contos ouvidos da boca dos camponeses de Hesse, em 1810. Walter Scott fez o mesmo na Inglaterra, em 1820, aproximadamente.

    Quando se descobriu, em diferentes países, o mesmo repertório de contos, com pequenas variações de costumes, a atividade dos folcloristas tornou-se intensa. Essa atividade permitiu a interpretação das lendas e principalmente sua classificação; foram unidos entre si e compiladas. Miss Roalfe Cox publicou análises notáveis sobre Cendrillon (Gata Borralheira) e Peau d’Ane (Pele de burro) (Folklore Society, Londres, 1893).

    Com o estudo dessas narrações maravilhosas, a análise das crenças e dos costumes permitiu evocar períodos pouco ricos em comentários. Contudo, o folclore não se interessa unicamente pelo passado; dedica-se também ao presente, tanto em economia política como em instituições, ofícios ou atividades populares. Saintyves assim o definiu: “É a ciência da vida popular no seio de sociedades civilizadas.”

    Embora a explicação dos contos seja mais ou menos fantasista, este método de observação permitiu ligar os fatos uns aos outros de forma que parecessem, de início, disparatados. O folclore permitiu preencher essas lacunas e acompanhar a evolução da psicologia coletiva mesmo fora das grandes civilizações que nunca foram homogêneas. Essa cultura tradicional, devida à massa popular à margem do ensino oficial, tem uma base permanente que, apesar de incompleta, assegurou definitivamente a estabilidade das sociedades sucessivas. Essa camada inferior, verdadeira corrente cultural, transmite-se de geração em geração e é graças a ela que os contos foram conservados.


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    CAPÍTULO II
    DIVULGAÇÃO DOS CONTOS


    1 — Teoria das Migrações

    Gaston Paris estudou, depois de Benfey, a migração do contos orientais na literatura da Idade Média. — Cosquin, o inglês Clouston, o alemão Landeau, estabeleceram paralelos entre as novelas de Bocácio e as fontes orientais.

    Buscaram, para cada conto, a estrada percorrida: foi a teoria dos motivos errantes ou a teoria das migrações. Max Müller aponta sempre a Índia como fonte comum e o russo Stassov (1868) diz a mesma coisa e foi por isso criticado pela sua falta de patriotismo.

    É preciso analisar com atenção as semelhanças, as condições históricas, a fim de reconhecer o tema pois se o conto toma de empréstimo o seu motivo ele adquire, de formo mais ou menos rápida, um caráter nacional. Os russos Vesselovski e Vsevolod Miller determinaram as trajetórias dos motivos emprestados e reconheceram uma influência turco-mongólica.

    Joseph Bedier (Fabliaux), conforme a escola antropológica, manifestou dúvidas sobre o método de Benfey; julgou-se que as aproximações fossem vãs e a busca limitou-se ao que ligava essa obra à poesia nacional. O russo Oldenburg, zombando das dificuldades, provou serem os fabliaux oriundos da antiga Índia. O tcheco Polivka e o alemão Bolte forneceram também uma relação dos possíveis paralelos existentes entre cem contos de Grimm (Remarques sur les contes enfantins et familiaux de Grimm - Observações sobre os contos infantis e familiares de Grimm).

    Com efeito, é curioso notar que as aventuras de Ulisses se assemelham às de Sindbad, o marujo e que o prólogo de Mil e uma noites relata a história de uma jovem chinesa, conto budista, traduzido para o chinês no século III (tradução Chavannes, conto n.o 109). Miss R. Coxe, numa monografia, conta quatrocentos variantes de Pele de burro e Gata Borralheira. Além das dos autores já citados, notemos as variantes erguidas por René Basset, Dähnhardt, Adolphe Pictet, Buslaiev e Afanassiev.

    2. — A influência da Índia

    Quando o conto primitivo, ou assim suposto, se libertou de todos os elementos transitórios e permanentes, sua variante foi discernida na literatura hindu, que penetrou na China antes do budismo. A maioria dos contos são encontrados no Extremo Oriente, dois séculos antes da nossa era. A influência budista, as invasões mongólicas contribuíram para a divulgação dos contos hindus que formam a base das coleções folclóricas.

    3. — Migração dos Contos e dos povos

    A migração dos contos nos é desconhecida e podemos quanto muito construir teorias mais ou menos plausíveis conforme nossa imaginação.

    Além da influência budista e das invasões mongólicas, em conseqüência das conquistas árabes, toda a costa barbaresca e a Pérsia sofreram a influência asiática. Eis porque Mil e uma noites têm influência pérsica cuja cultura provinha da Índia. E preciso pesquisar a marcha do conto em relação à marcha do indivíduo.

    A migração dos povos foi estudada por Elliot Smith, Maximo Soto Hall; os antigos egípcios seriam descendentes dos Maias que haviam emigrado para a África. A Atlântida, esse antigo continente, teria formado uma ligação natural entre a Europa e a América. Entretanto, conforme a notável teoria de Wegener sobre a separação dos continentes, a América seria um bloco que se desprendeu da Europa e da África. Realmente essa cisão parece que se produziu antes da aparição do homem. Contudo, se nos referimos ao sábio americano Libbey, que estudou as propriedades radioativas do carbono contido nos vestígios orgânicos (o “C 14”), nossas civilizações datariam de trinta mil anos (época pleistocena). Ora, há trinta mil anos, a Ásia e a América se juntavam: O Alasca e a Sibéria ainda não haviam sido separados pelo estreito de Behring. Canals Frau (Préhistoire de l’Amérique, 1953), é de opinião que grupos de emigrantes asiáticos aventuraram-se nas planícies norte-americanas, numa época imediatamente anterior ao último máximo da glaciação Wisconsiniana. Conforme os geólogos e Antevs, essa última glaciação, denominada Mankato, ter-se-ia produzido aproximadamente em 25.000 a. C.

    Canals Frau supõe que nova onda emigratória asiática tenha-se produzido na época mesolítica; essa civilização esquimó teria, há três ou quatro mil anos, dominado a Sibéria e se teria fixado no litoral ártico da América. Esses homens teriam atravessado a América de norte a sul a fim de atingirem a Terra do Fogo.

    É indiscutível que nossos antepassados viajavam e só a falta de documentos deu origem ao julgamento de que esses povos se ignoravam uns aos outros, Serviam-se das correntes naturais e a expedição Kon Tiki provou ser possível a travessia do oceano, de jangada, desde a América até os Mares do Sul. As monções favoreciam as viagens entre o Oriente e o Ocidente. Os malaios invadiram as ilhas polinésias com a ajuda de grandes vapores providos de balanceiros.

    Os monumentos deixados pelos habitantes da antiga América testemunham uma civilização adiantada injustamente podada em todo o vigor da sua seiva, quando da invasão espanhola, no século XVI. Eis porque, nas margens do Mississipi, os rochedos estão eivados de caracteres que parecem ser fenícios; rochedos trêmulos que evocam monumentos druídicos; no hemisfério austral, imensas ruínas de outeiros assemelham-se às sepulturas do norte da Ásia. A admirável pirâmide de Paplanta, a fortaleza européia de Xochialco, o emprego do cimento no templo situado nas imediações de Santa Fé, fazem supor que a América era conhecida pelas civilizações hindus e européias antes da viagem de Cristóvão Colombo; a tradição deve ter-se apagado um pouco e a mensagem das antigas civilizações nem sempre foi transmitida.

    Eis porque, nas imediações de Montevidéu, uma pedra tumular registra, em caracteres gregos, que um capitão heleno aportou nessa terra americana no tempo de Alexandre. Um contemporâneo de Aristóteles também pisou o solo brasileiro. Nas crônicas, Madoc, filho do príncipe de Gales, abriu velas em 1170, dirigindo-se para o oeste e descobriu terras férteis; porém, já em 942, os normandos haviam aportado na Groenlândia passando pela Islândia. Isto justificaria terem tribos do Missouri também falado a língua céltica. Humboldt admite que os tártaros e os mongóis tenham passado do norte da Ásia às regiões setentrionais da América antes do século VI; os chineses comerciaram com os americanos bem como o cartaginês Himilcon. Salomão e Hiram enviaram os fenícios para as regiões americanas conhecidas, sem dúvida, pelo nome de Ofir e Társis.

    É um erro julgar que os povos antigos eram selvagens e bárbaros; nossa falta de conhecimentos a esse respeito não prova essa asserção. Cristóvão Colombo deve ter ficado surpreendido quando encontrou entre esses “selvagens” a nossa cruz latina que figurava ainda nas esculturas colossais da cidade de Palenque, no México.

    Depois da sensacional descoberta do Vixenu, por René joffroy (1952), compreende-se que o prestígio das artes gregas e italianas estendia-se à Gália céltica. O oppidum do monte Lassois (perto de Châtillon-sur-Seine) seria uma base dessa rota do estanho; e os móveis funerários, as jóias ítalo-gregas do século VI antes da nossa era, a bacia de bronze de fabricação etrusca, encontradas nessa parte setentrional da Borgonha, então somente céltica, colocam um enigma que provoca dúvidas sobre as influências da Etrúria ou das regiões greco-cíticas de passagem pela Grécia.

    Os egípcios conheciam os movimentos planetários e as dimensões do nosso globo terrestre quando Galileu quase foi queimado vivo por ter adotado o sistema de Copérnico. Nossas descobertas modernas já haviam sido precedidas pela Escritura, nossas verdades físicas foram por muito tempo desconhecidas e ignoradas, enquanto que os Livros Sagrados ficam no limite da verdade e na harmonia de nossas mais recentes observações, cuja exatidão são apenas confirmadas por nossas pesquisas científicas; em compensação não havia na Antigüidade a mesma concepção do tempo e do seu emprego de hoje; conhecimentos provinham de uma reflexão amadurecida no recolhimento e no silêncio, alheio a qualquer agitação.

    Além dos mercadores, as guerras muito contribuíram para a divulgação dos contos. Essa divulgação deve-se às conquistas de Alexandre da Macedônia e ao período helênico (do fim do IV ao II séculos antes da nossa era); depois as conquistas árabes (1.o milênio da era cristã) e finalmente à época das cruzadas (do X ao XII séculos).

    A transmissão oral foi muito importante. Foi dessa forma que Pitágoras tomou conhecimento das religiões da Índia, quando já convivia com os magos da Caldéia. Esse sábio grego, contemporâneo de Buda — que talvez tenha encontrado — e de Confúcio, participava das idéias do hindu e do chinês e esses três homens pregavam o mesmo evangelho. As descobertas e os pensamentos existem, pois, no tempo e se transmite de forma desconhecida.

    Walter Scott observa que a impressão era inexistente, os vedas e os edas noruegueses, a Bíblia só foram escritos depois de haverem sido transmitidos oralmente. Deve-se à inspiração popular a criação da Odisséia e dos Niebelungen.


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    CAPÍTULO III
    INTERPRETAÇÃO DAS LENDAS


    I. — Sentido profano
    As lendas são sujeitas a interpretações bastante diferentes que se contradizem ou se completam. Loeffler-Delachaux (Symbolisme des contes de fées (Simbolismo dos contos de fadas, 1949) interpreta-as no sentido profano, sacro ou iniciático.

    1. Teorias astrais ou naturalista

    Os povos divinizaram as grandes manifestações da natureza. Se Max Müller e Bréal Mélanges de mythologie et de línguistique (Miscelânia de mitologia e lingüística), cogitam nos fenômenos solares e no combate à escuridão, Kuhn e Schwartz são de opinião de que não foram os fenômenos regulares que chocaram a imaginação mas sim os espetáculos raros e inesperados (relâmpago, trovão); é, pois, a escola meteorológica. Para Ploix (La nature des dieux - A natureza dos deuses) a luz é que é adorada e conduz ao estudo dos fenômenos crepusculares. Mannhardt encontra nas lendas explicação dos mistérios da vegetação, enquanto que Regnaud e Renel Evolution d’un mythe (Evolução de um mito) pensam no mito do fogo. Saintyves descobriu nesse mito antigas cerimônias estacionárias praticadas por ocasião do ano novo e da primavera.

    Deulin em Contes de ma mere l’Oye (Contos de minha mãe gansa) refere-se a Husson para quem as sete esposas de Barba Azul tornam-se as sete auroras da semana. Deulin mostra que com um pouco de imaginação é possível provar que Virgínia é uma aurora que procura esconder-se de Paulo, que nesse caso seria o sol. Dupuis (Origine de tous les cultes - Origem de todos os cultos) mostra que Napoleão só pode existir sob a forma de um deus solar. Entretanto, prosseguindo-se o trabalho de Afanassiev Contes populaires russes (Contos populares russos), em 8 volumes, Miller (1833-1889) compara as variantes entre si.

    É todavia verdade que o fetichismo foi criado para isolar essas forças invisíveis e que sua influência sobre as lendas é certa.

    Os mitos meteorológicos, os mitos do fogo, da origem e da morte humana podem pois basear-se nessas criações literárias, mas outras teorias vieram modificar esses temas iniciais.

    2. — Teoria mitológica

    Os irmãos Grimm elevaram a criação dos contos à infância pré-histórica da pátria. Chega-se assim à escola precedente Gubernatis Mythologie Zoologique (Mitologia Zoológica), acha que esses mitos pertencem a um naturalismo infantil; dá, enfim, grande importância às formas animais e chega, com seus três livros, à tese da reencarnação: Schelling Essai sur les mythes (Ensaio sobre os mitos) (1793), vê nesses mitos a consciência individual de um povo aliada a uma significação religiosa.

    3. — Teoria lingüística. Escola Filológica

    Os trabalhos de Baudry, Darmesteter, Van den Heyn e Angelo de Gubernatis, são trabalhos de lingüistas. Com Max Müller esses homens estudam as lendas desde a deformação de algumas palavras que puderam provocar um obscurecimento do sentido primitivo original. Max Müller, por aproximações forçadas, procura demonstrar no sentido da tese solarista. Desta forma se Dyaus na época védica significava céu, transforma-se em Zeus. Dontenville explica assim a lenda de Gargântua. O russo Marr estudando Tristão e Isolda cria sua sessão de Semântica,

    É muito possível que os povos tenham empregado termos que, no curso de suas migrações, perderam o sentido ou foram desnaturados; a lenda grega fez empréstimos da Índia e é muito provável que essa confusão tenha sido voluntária. Os filólogos, comparando as raízes das línguas entre si com as do sânscrito, propuseram sábias etimologias que foram substituídas por outras mais sábias ainda; e assim tudo encaminhou-se para o ceticismo geral.

    4. — Teoria antropológica
    (ou geração espontânea dos assuntos)

    Para Taylor, Mannhardt, Andrew Lang, Gaidoz os contos e as lendas refletem modos de pensar primitivos. Os povos civilizados herdaram esses contos e lendas do passado; são sobrevivências religiosas e culturais extremamente elementares fundadas no animismo, espiritualização dos fenômenos da natureza ambiente.

    Mas, as leis do desenvolvimento da humanidade nos levaram a não mais considerar as civilizações anteriores como épocas de barbárie. O totem, objeto-tabu, a palavra misteriosa, representam valores mágicos que a escola antropológica não soube definir. Frazer, no seu Le rameau d’or (O ramo de ouro) (12 volumes, 1911-1915) afirma que a magia precede o animismo, isto é, a espiritualização da natureza; a magia é, portanto, o embrião da ciência e da religião. Essa Teoria prosetivista é combatida pelos etnógrafos soviéticos.

    5. — Escola Alegórica

    Creuzer vê no mito, uma alegoria moral, o símbolo de uma antiga filosofia, nascida no Oriente e divulgada na Grécia em linguagem figurada. Aí aparece novamente a opinião dos filósofos neoplatônicos da escola de Alexandria (Platão e Porfírio), Frazer: The origin of totemism (A origem do totemismo) mostra a conexão do mito com o totemismo primitivo.

    6. — Teoria orientalista ou teoria dos empréstimos

    O orientalista alemão Benfey, quando publicou em 1859 a coleção de contos hindus o Pantchatantra, descobriu uma extraordinária semelhança entre os contos sânscritos e os europeus.

    Essas narrações, que circulavam oralmente, foram compiladas na Índia; o budismo tibetano mostrou-se particularmente ativo. Contudo, não seria possível afirmar com segurança que esses contos tenham sido criados na Índia. Bizâncio e a literatura mongólica desempenharam papel importante na exportação dessas lendas que, da Síria e da Pérsia, se infiltraram no mundo árabe; as cruzadas relataram esses contos maravilhosos e a Espanha, com as invasões sucessivas, usufruiu todo o seu encanto.

    Pictet: Origines indo-européennes (Origens indo-européias) (1858) apoia Benfey e mostra a importância da cultura dos árias primitivos. Esses trabalhos foram continuados por Cosquin, Gaston Paris, Charles Bédier, Gédéon, Huet, Bouslaiev e Afanassiev.

    7. — Teoria geográfico-histórica ou Escola Finesa

    Anderson e H. Gaidoz contribuíram com um exame sistemático e escrupuloso das variantes, com diagramas cronológicos e mapas geográficos dos itinerários percorridos pelos assuntos. O catálogo dos contos de Aarne (1867-1925) é arbitrário na sua divisão, mas facilitou a tarefa de Andreiev (1929), que adaptou esse livro ao folclore russo. Não se desvendando a forma primitiva, Sidow tentou comparar os contos entre si.

    8. — Escola poética-histórica. Teoria comparativista

    Criada por Vassélovski (Index bibliographique, 1921), esta teoria trata da influência oral e escrita da poesia e depois do papel da religião cristã. E a procura do gênero poético (epopéia, poesia, lírica, drama), das variedades, das formas. Vsevolod Miller, abandonando a Escola dos Empréstimos procura analisar os costumes nas canções de gesta: Études de la littérature populaire russe (Estudos sobre a literatura popular russa); a análise crítica foi a obra de Orestes Miller. Essas aproximações contraditórias, essas comparações arbitrárias, foram postas em evidência por Skafttymov: Poétique et Genèse dos Bylines (Poética e Gênese das Bilinas, 1924). A escola russa moderna preocupa-se com o meio (folclore dos camponeses e dos operários), que traduz a vida do povo com Sokolov: Le folklore russe (O folclore russo, 1945) e Pryjov.

    9. — Teoria psicológica. Escola de Freud

    Wundt: Psychologie des peuples (Psicologia dos povos) analisa os mitos com as condições psicológicas do povo (estados de sonho, alucinação mórbida). Laistner, von der Leyen não conseguem dar grande importância à sua teoria.

    Freud, com seus alunos Abraham, Rank, Riklin, vê nos mitos a expressão de desejos persistentes da mesma natureza dos que se manifestam nos sonhos. Quanto mais a censura social se desenvolve, mais a civilização se complica. Freud mostra ainda que “as aspirações fundamentais da humanidade, que encontram satisfação nas diferentes crenças religiosas e os vários estados emocionais têm como fonte conflitos intrapsíquicos que, do ponto de vista ontogênico remontam à nossa primeira infância e, do ponto de vista filogênico, aos nossos primeiros ancestrais humanos.”

    A escola austríaca, porém, abusou demasiadamente dos fenômenos de ordem sexual e Regnaud: Le Rig-Veda et les origines de la mythologie (O Rig-Veda e as origens da mitologia) é de opinião que o cérebro humano não evoluiu há milhares de anos: Renel, Evolution du mythe (Evolução do mito).

    Loeffler-Delachaux: Symbolisme des légendes (Simbolismo das lendas, 1950) pensa num fascínio curativo, num poder terapêutico para as doenças da alma. Os contos servem para manter o equilíbrio psicológico e é assim que os Faraós enganados por suas esposas, as ascensões milagrosas nas situações inesperadas, as jovens grávidas milagrosamente fecundadas pelo deus Nauli ou Júpiter e todas essas ficções nasceram de circunstâncias precisas. Essas narrações imaginárias são pois a compensação dos nossos sentimentos de inferioridade e o subconsciente acrescenta-lhes uma “supercompensação”.

    10. — Origem histórica. Escola Evemérica

    Schelling publica em 1793 um ensaio sobre as lendas históricas. O cerne do mito contém a verdade sob uma forma histórica. Spencer crê que o culto dos antepassados origina-se nas religiões. A escola Evemérica, século IV a. C. já pretendia serem os mitos provenientes de acontecimentos históricos e que seus personagens reais haviam sido elevados à dignidade de deuses. Essa teoria foi retomada por Hoffmann.

    Realmente, nossos heróis épicos são a combinação de diversos personagens históricos e se nossas canções de gestas comportam inexatidões, esses protagonistas convergem para a individualidade do herói.


    II. — Sentido sacro e iniciático
    1. — Esoterismo e Magia

    O esoterismo é subjacente em muitos de nossos atos. A religião católica não pode se livrar dos ritos de religiões antigas e os círios e o incenso provam a sobrevivência das oferendas, bem como a tonsura do padre indica o sítio da espiritualidade.

    O coroamento é uma cerimônia esotérica: os braceletes tornam o rei prisioneiro de seu povo, o cetro é a vara mágica, e a coroa o emblema da flor ritual de mil pétalas. Th. Briant deu: Le goéland, n.o 108 (A gaivota) preciosas informações sobre o coroamento da rainha Elisabete da Inglaterra que, vestida com sua roupagem de linho, está ritualmente nua para a unção real.

    Os povos da África, com seus conhecimentos sobre magia, se aproximam de uma verdade transcendente que nos escapa. Os ritos esotéricos eram, porém, muito mais empregados em tempos passados e Victor Emile Michelet: Le secret de la chevalerie (O segredo da cavalaria) escreveu: “Os construtores de catedrais inscreveram no secular silêncio da pedra o eco da palavra perdida que os predestinados ouvirão.” Se os mitos sagrados fossem divulgados seriam profanados e com isso perderiam suas virtudes místicas, diz Lévy-Bruhl: La mythologie primitive (Mitologia primitiva, 1935). Assim é que o sentido profundo e a virtude eficaz são revelados somente aos iniciados, os não iniciados só encontram nesses mitos um divertimento. Os contos da Nova Guiné expõem essa eficácia mágica.

    Ora, todos os povos fizeram uso da magia. No evangelho assistimos aos fenômenos da levitação, à multiplicação dos pães e dos peixes; se o alcance das palavras de encantamento nos escapa, não deixamos de sentir que esses ritos se destinam a manter a coesão de uma civilização (Van Gennep). Saintyves: Les contes de Perrault (Os contos de Perrault, 1923), definiu as provações e as tentações com suas encenações prestigiosas que são ritos de iniciação.

    Este elemento sobrenatural requer uma explicação a qual tentaremos evidenciar no estudo de algumas lendas. Pois esses costumes de iniciação, provindo de um conhecimento profundo e de um ritual desenvolvido estão tão alterados que perderam o seu sentido original. O símbolo do casamento, em que a bênção coloca os eleitos sob a proteção de um poder superior; o elo sem princípio nem fim, cadeia indissolúvel que une dois esposos romanos; o elo deve ser de ouro puro pois que a mulher é acorrentada pelo mérito e pelas qualidades sólidas de seu noivo; mas esse elo liga a vontade do operador ao gênio benfazejo personificado pelo fluido invisível.

    O simbolismo do casamento é muito vasto, mas o ritual da morte — freqüentemente tido como uma espécie de sortilégio — mereceria também ser estudado. A magia popular deveria ocupar-se do modo de conquistar o poder com Fausto e D. Juan. Surgiram então os feiticeiros, as invocações, os filtros, os remédios e os venenos; essa magia natural penetrou nos contos.

    O sistema cabalista — de origem esotérica e de espírito iniciado — serviu para a construção das catedrais. A constituição da sociedade — que teve seu apogeu no reinado de São Luís — a música dos gregos de Eleusis, o cantochão provêm da Cabala que serviu para estabelecer os monogramas árabes, as estátuas da Índia, as regras para a seção do ouro. Este ensinamento profundo, freqüentemente insuspeitado, constitui um precioso patrimônio da inteligência humana.

    Os próprios jogos têm origem esotérica (jogos de cartas, buena-dicha, de xadrez, de damas, gamão, dominó, jogo do ganso, roleta, marelinha, esconde-esconde, etc.). As canções populares, muitas vezes, são iniciáticas (Les compagnons de la Marjolaine, la tour prends-garde, Cadet Roussel).

    O valor dos algarismos é nesse caso muito importante. O texto pode ser dividido em livros, capítulos, versículos, alíneas, cujo número é ditado, (poema em doze cantos, tragédia em cinco cantos). Às vezes é o número de personagens, o número de anos de sua existência, o número de seus combates. O escritor multiplica os algarismos para não se dar a conhecer e os acontecimentos descritos ultrapassam, dessa forma, a realidade. As profecias entram nessa categoria. O número 3, emblema sexual em Freud, é a base do princípio divino que reaparece em todos os cultos, culto de Mitra, triade teológica céltica, ternário de Pitágoras. São três as penitências e existem três etapas essenciais no aperfeiçoamento individual; as fadas, como no teatro, dão três golpes com a varinha; dez, número de Adão e Eva, falo e ovo, são a base da filosofia pitagórica.

    Os ritos podem derivar para a superstição, o fetichismo, mas a interpretação desse simbolismo é sempre delicada.

    2. — Religião e origem sacra

    As teses religiosas são numerosas. O Pe. Banier, com sua Escola bíblica, via nos mitos pagãos, a revelação divina; Bérard, na sua tese religiosa, explica as cerimônias rituais.

    Lenormant e Gladstone interpretam as personalidades dos deuses a partir de personagens bíblicas.

    O Apocalipse de São João é uma obra esotérica cujas palavras-chave servem a religiões e ordens assaz diferentes. As religiões empregam palavras de encantamento que devem produzir o máximo de efeito além de processos na aparência muito simples; eis aí uma forma de magia (Anne Osmont). Diz o conde de Larmandie a esse respeito: “Esses ritos que nada mais são do que a realização de símbolos, têm poder natural sobre o mundo astral, que contém em potencial e germe todo o desabrochar do mundo físico. A palavra símbolo significa, principalmente, resumo, quintaessência; atingimos, pois, completando-o, a causa segunda na órbita de nossa vontade: desencadeamos o dinamismo produtor do fenômeno.” F. Ch. Barlet (A iniciação, janeiro de 1897), diz que “a religião nas suas manifestações exteriores torna-se apenas uma alta magia cerimonial”.

    Se Lévy-Bruhl afirma que o homem primitivo não tem o sentimento do divino, parece que para Piobb: Formulaire de haute-magie (Formulário de alta magia) ele está presente em toda parte mas suas leis são difíceis de discernir; são muitos os véus que encobrem esses segredos que só se exprimem por meio de símbolos. Contudo, toda essa ciência que provém dos colégios iniciáticos, não está perdida. O cristianismo não soube se eximir de leis anteriores; as idéias jurídicas em curso formaram o direito canônico; as vestes sacerdotais provêm de Bizâncio.

    3. — A arte sagrada da Índia

    Estas lendas, encontradas na Índia, pertencem à mitologia hindu que compreende os Vedas (hinos), os Bramanas (comentários), as Sutras e Upanichads (manuais de devoção) e finalmente as compilações de lendas Puranas.

    Mallarmé: Les dieux antiques (Os deuses antigos) fala desse berço misterioso, os Arias, situado no centro da grande Ásia, no vale do Oxo e do qual temos poucas referências. Suas tribos nômades emigraram para os países eslavos e depois para a Pérsia, a Índia, a Grécia e a Itália. A mitologia persa, no seu falar Zenda, devia influir sobre a mitologia norse para criar a epopéia escandinava.

    Varuna, autor do mundo, exprime o instinto monoteísta dos cantos védicos. Não é absurdo afirmar que os três deuses da Índia (Varuna, Agni e Indra) representam diferentes aspectos do Ente Infinito. Eis porque Deus, falando com Moisés, diz nós e não eu. Outros três deuses sucedem aos três deuses antigos: o deus da criação Brama, o deus da conservação Vichnu e o deus da destruição Civa, portador do terceiro olho: R. Fougère, Contes et légendes de l’Inde (Contos e lendas da Índia). Quanto a Buda, seria apenas um dos mais recentes avatares do Vichnu e o próprio Jesus Cristo seria o reflexo desse Deus. Um livro curioso e inspirado, La vie de maîtres (A vida dos mestres), de Baird T. Spalding (Ed. Leymarie, 1946), retoma esse tema.

    É digno observar que a crença na transmigração é reencontrada na literatura céltica; é que a religião druídica, de uma amplidão esquecida, estendia-se até a Grécia e com toda certeza se achava em comunicação com a Ásia. Desta forma, depois da morte, a alma se reencarna tomando nova forma, ora superior, ora inferior, relativamente à vida anterior. Essa sucessão de existências pode ser humana ou animal e ter lugar neste ou em outros mundos. A sociedade bramânica é estabelecida em castas, cujos grupos são hereditários e hierarquizados; em seu pináculo reinam os brâmanes, os padres.

    No século VI antes da era cristã, porém, o bramanismo se transforma sob a impulsão de Gotama, o Buda. Depois de reencarnações sucessivas, o indivíduo chega ao aniquilamento total, o Nirvana. Por suas concepções mais amplas e mais sociais, todo homem tem acesso à via religiosa.

    Lotus de Paini observa que o Tao seria uma força oculta ao redor da qual todos os valores morais evoluiriam. Esse dinamismo cósmico seria produzido por elementos eletrizantes Iang e Iin que se aparentam ao próton e ao eléctron. Essa sabedoria espiritual se obtinha por meio da meditação realizada sobre regras precisas; a formação dos órgãos da clarividência só podia se produzir após as duas fases impostas: a purificação do corpo astral e a iluminação.

    Langlois (Monuments littéraires de l’Inde, 1827) analisou essa literatura sânscrita cujos Vedas (4500 a. C.) são os livros do conhecimento e os Vidia, os da ciência. As quatro obras Upanichad tratam da natureza de Deus, os Upavedas são relativos à vida corrente. Valmiki escreveu o Ramaiana, as aventuras do deus Rama e Viasa (1000 a. C.) e é o autor de Maabarata que descreve as desgraças de uma família real. O Bagavad-Gita é um episódio desse trabalho: o deus revela ao seu favorito Ardjuna a origem e a natureza do universo.

    Essa literatura é escrita em sânscrito, língua dos padres e da alta sociedade mas entremeada de dialeto Pracrit, linguagem de classes inferiores. Sob o efeito das invasões o sânscrito foi esquecido e só em alguns santuários é encontrado. Observemos os recentes estudos de Jones, Wilkins, Colebrooke, Wilson, e Langlois.

    Quanto ao grande livro hindu, o Pantchatantra, foi traduzido do sânscrito para o phlvi por ordem do rei Choroés, no século VI. A importância desse livro é considerável uma vez que foi traduzido em antigo persa e em sírio (Calila e Diná); traduzido em árabe (século VIII) em hebraico (século XII), passou pela Espanha e sua tradução latina data do século XIII, quando chegou à França e à Alemanha. Paralelamente a esse eixo, sua tradução árabe penetra na Grécia (Stéphanit et Ikhnilate) e na língua eslava (XII e XIII) para alcançar, enfim, a Rússia.

    4. — Influência da Igreja católica

    Todas as religiões empregam os mesmos símbolos, mas os colégios sacerdotais velaram a verdade aos profanos a fim de reservá-la aos seus iniciados; velaram-na de tal forma que a sufocaram e não souberam mais separar as ficções. Contudo as religiões refletem a consciência humana, as relações sociais entre os indivíduos, toda a experiência de nossa vida. A divulgação dos contos é devida, em grande parte, a uma propaganda religiosa. O budismo não foi o seu único agente de difusão, há também o druidismo, o catolicismo e todas as religiões. Os missionários e os exploradores propagavam lendas bíblicas. A religião que nada mais é que esoterismo, pois que pode existir apenas em estado de mistérios, age pelo seu maravilhoso e provoca uma espécie de entorpecimento da alma. Schelling escreve: Introduction à la philosophie de la mythologie (Introdução à filosofia da mitologia): “O conteúdo da religião é puramente espiritual e jorra, desta forma, das profundezas mais intimas da vida humana.”

    A Bíblia é uma grande lenda histórica que abrange vários séculos e não alguns anos. Obra de várias gerações concentradas na única vida humana, ela nos ensina o deslocamento dos nômades, a migração do povo de Abraão que se estendeu durante numerosos anos. A influência bíblica, por seu maravilhoso, se revela em todas as artes e também nas procissões, nas festas e na própria vida.

    5. — Criação do mito do diabo

    O antagonismo entre Deus e Satanás se encontra em todo o decorrer dos temas orientais, persas e cristãos. E Ariman, a grande serpente da noite, adversária de Ormuzd. O princípio do mal vem da mais remota antigüidade. Mas, na religião católica, Deus criou ele mesmo seus anjos caídos, enquanto que Ariman é um poder primordial, antítese da Bondade.

    A fim de combater a sensualidade, a curiosidade, os prazeres da carne e do espírito, a Igreja católica, serviu-se do personagem de Satanás e lhe criou uma personalidade mais intensa; dos mistérios da Idade Média ficou-lhe a truanice que lhe deram os primeiros dramas. Assim nasceu a bruxa, serva do mau espírito. Os métodos de feitiçaria mostram essa alucinação coletiva, comparável ao Grande temor; mas esses métodos terminaram de maneira trágica. A Inquisição incumbia-se de conduzir a um ponto cruciante essa extraordinária criação do espírito.

    Assim é que Loeffler-Delachaux vê nos contos de fadas um protesto contra essas regras inflexíveis, a fada que reabilita a sacerdotisa ou a feiticeira druida injustamente condenada.

    6. — Conclusão

    Quer se trate da Escola filológica, naturalista ou histórica, a origem e a interpretação das lendas só tem sentido a partir de uma equação pessoal; cada sistema crê possuir a verdade. Mas a abundância, de assuntos iguais em cada país, a esperança que deles se desprende, a perfeição de suas formas poéticas deixam prever a busca de temas iniciáticos capazes de elevar o indivíduo. A aventura maravilhosa, com sua surpreendente riqueza de alma, nos alegra e nos instrui.


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    SEGUNDA PARTE
    ESTUDO DAS LENDAS
    CAPÍTULO I
    FAUSTO
    ou o homem que vende sua alma aos poderes do mal


    Esse personagem imortal de Goethe — às vezes de Marlowe — soube, depois de velho, reconquistar a juventude, acumular bens, governar seu espírito com uma compreensão, quase divina.

    O homem contrai desta forma uma aliança sobrenatural a fim de se alçar a um nível superior e, abandonando seu arcabouço original, projeta-se num outro ente espiritual.

    Este conhecimento é tributário da dualidade da alma humana; e Mefistófeles endossa nossa dívida e nossos defeitos. Satanás se incumbe de nossos crimes e de nossas baixezas; é a válvula que permite ao homem, se libertar. Mas, depois de haver vendido seu bem mais precioso, o homem tenta zombar do Espírito do mal e almeja finalmente o espírito supremo da Bondade.

    1. — A presença do diabo

    Desde a criação do Mundo o diabo tenta nos corromper; ele é a origem da maldição celeste; evoca o assassínio de Abel, provoca o dilúvio e a destruição de Sodoma. Se quer tentar Jesus incita tempestades e violenta as virgens.

    As concepções demonológicas encontram-se entre os povos mais diversos: árabes, babilônios, assírios, bem como no pensamento hebraico, na religião persa, na doutrina cristã, na filosofia grega. Tiveram lugar dominante na vida e nos escritos.

    Mas o cristianismo, com o fito de despertar a atenção do público cansado de dissertações filosóficas de mistérios, criou o personagem literário do diabo. Não é mais uma divindade inatingível mas apenas um ser ridicularizado, válvula indispensável para o rigor do catolicismo e da justiça divina. É assim que aparece em Le jeu des Vierges sages et des Vierges folles (O jogo das virgens ajuizadas e das virgens loucas) em La premiere joie de Marie (A primeira alegria de Maria) etc. Cohen busca esse rasto maravilhoso no seu Théâtre français au Moyen Age (O teatro francês na Idade Média).

    2. — As duas formas de lenda

    Fausto reflete a geração em que evolui; a conclusão difere conforme o gosto do autor ou o interesse da religião. Esse homem que vendeu sua alma morre amaldiçoado, abandonado pelo céu: é o drama de Marlowe e dos protestantes. Em compensação, esse homem orgulhoso que se perverteu para satisfazer sua curiosidade natural e que logo em seguida se revoltou contra Satanás receberá o perdão. Surge então o drama cristão de Goethe.

    3. — Origem da lenda

    A primeira forma da lenda parece ser oriunda da Ásia, com La légende de Théophile (A lenda de Teófilo), de que Eutiquiano, sacristão da igreja de Adana, teria sido testemunha ocular.

    Teófilo, vidama — administrador — muito estimado, é injustamente destituído de seu cargo. A fim de reencontrar seu posto, pediu auxílio a um mágico. Satanás concluiu o pacto. Apesar do êxito, Teófilo, arrependido, reza durante quarenta dias e quarenta noites implorando à Virgem Maria a restituição do ato satânico. Teófilo confessa publicamente o seu ato e morre. Essa lenda foi muito apreciada na Idade Média: Saint-Bernard, Voragine, Rutebeuf utilizaram-na. No tímpano do portal norte da Igreja de Notre-Dame de Paris acha-se representado esse milagre; na mesma ocasião, Viollet-le-Duc põe em cena o artista Biscornet assinando um pacto com o demônio a fim de completar sua obra (Serralheria das portas de Notre-Dame de Paris).

    4. — Outras formas da lenda

    Em 1220, Cesário d’Heisterbach escreveu Histoire de Militarius (História de Militarius) que, depois de uma vida de deboche, vende-se ao diabo e, finalmente, obtém o perdão da Virgem. Com a Légende du chevalier qui donna sa femme au diable (Lenda do cavaleiro que deu a mulher ao diabo) de origem picarda (século XIV), a virgem, tomando o lugar da mulher caluniada, põe em fuga Satanás.

    Mais próximo de La légende de Théophile está o texto brabantês La légende du chevalier voué au démon et sauvé par sainte Gertrude (1612) (Lenda do cavaleiro ao demônio e salvo por Santa Gertrude) (G. de Rébreviett) e La farse de Munyer (A farsa de Munyer).

    Dessa forma, nessa espécie de imaginaria popular — assaz rica em textos semelhantes — a Virgem intercede em favor de homens orgulhosos, perdulários e jogadores.

    5. — A lenda de Cipriano

    Santa Justina, virgem de Antioquia, é atormentada por Cipriano que se dá à magia; mas Cipriano constata que “o crucificado é maior do que todos os diabos” converte-se e torna-se bispo. Voragine acentua dessa forma o poder esotérico do sinal da cruz. Calderón recolhe a lenda para seu Magicien predigieux (1637) (O mágico prodigioso). O pacto foi também suprimido em São Cristóvão ou Santa Teodora.

    Em Saint Basile, évêque (São Basilio, bispo), Voragine confunde o amor com o desejo de se elevar; Urádio, um jovem escravo, que se vende ao demônio para poder esposar a filha do seu patrão, São Basilio conseguirá recuperar a célula demoníaca. Achille Jubinal, depois de Jehan de Saint-Quentin, narra em seus Contes, dits et fabliaux, várias lendas semelhantes (Le dit du chevalier et de l’escuier - Os ditos do cavaleiro e do escudeiro), Le dit du pauvre chevalier (O dito do pobre cavaleiro), Le dit des II chevaliers (O dito dos II cavaleiros). Mira de Amescua: L’esclave du démon (Escravo do demônio) associa D. Juan e Fausto. O eremita D. Gil sucumbe à tentação; dá sua alma a Satanás para poder abraçar uma freira que não passa de um esqueleto. O pavor restitui seu pensamento a Deus e São Miguel triunfará sobre Satanás.

    Moreto: Tomber pour se relever (Cair para se reerguer), Calderón: Joseph des Femmes (José das Mulheres), Molina: Le damné pour manque de confiance (O maldito por falta de confiança), pensam ainda na doutrina luterana. Thomas Mann, no Doutor Fausto narra vários contos semelhantes (capítulo XIII).

    6. — O ensinamento da lenda

    Assim sendo, para atingir um fim ardentemente desejado um infeliz vende sua alma ao diabo, seja por intermédio de um judeu, seja por evocação direta graças a fórmulas mágicas. O pacto é escrito com sangue, marca indelével que o torna indissolúvel por um período de sete anos. A vítima arrependida é arrancada a Satanás por meio de uma intervenção celeste. Esta luta é de quarenta dias — prazo da redenção. Substitui-se a Virgem pela santa da região para que a autenticidade seja incontestável. Teófilo busca a dignidade e as honrarias; os cavaleiros se ocupam de riquezas; Urádio pensa no amor; e Fausto, na juventude e no gênio.

    A Igreja reformada serve-se da lenda de Fausto para combater o ensinamento do catolicismo.

    O inferno triunfa nas literaturas alemã, inglesa, escandinava e holandesa.

    7. — O pacto satânico e a crendice popular

    Fortemente instrumentada, a crença popular é de que toda inteligência superior é alimentada por um trato desonesto. Procura-se solapar o poder da Igreja católica. O poder temporal do Papa Silvestre II é oriundo da colaboração do diabo que fez com que um pastor de Auvergne fosse elevado às mais altas dignidades: é o “homem dos três R” por ter assumido postos em Reims, Ravenne e Roma. Abelardo, precursor do racionalismo moderno, tem a exigência de Fausto; esse herói da crítica e da independência é derrotado por São Bernardo, conservador da ordem. Apolônio de Tiano, Sião, o Mágico e os papas desde João XIII até Paulo II período ativo da Reforma — são assim caluniados por espíritos invejosos do seu poder. Alfred Neumann, ao escrever O diabo, sob o nome de Necker, servidor de Luís XI, mostra claramente a opinião do povo que pretende ver no êxito de um homem surpreendente um poder oculto.

    8. — O personagem histórico

    Fausto, nascido nos últimos anos do século XV, talvez em Kundling, perto de Bretten, teria morrido em 1543 ou, conforme o médico Bégardi, em 1539. E. Faligan na sua Histoire de la légende de Faust (História da lenda de Fausto) cita escritos históricos que provam a sua existência; Fausto, em 1507, era professor, em 1509, bacharel em teologia e recebido na Faculdade de Heidelberg. Esse indivíduo preguiçoso, ladrão e dado à embriaguez, discípulo de Lutero, tem uma vida movimentada. Toma como cunhado o próprio Diabo e chama o seu cão de Prestigiar. Prematuramente envelhecido pelos excessos, sua morte impressiona a imaginação popular. Sua vida estranha e sua morte cruel — talvez crapulosa — deram origem a uma lenda.

    9. — Nascimento da lenda

    Em 4 de setembro de 1587, Johan Spies publica em Francforte L’histoire du docteur Faust (História do doutor Fausto) (autor anônimo). Depois da evolução psicológica dessa alma transviada, as suas aventuras extraordinárias são relegadas, desordenadamente, para o fim do livro.

    A edição de Widmann em 1599, acentua o caráter teológico: é a contribuição protestante. L’histoire de Wagner (A história de Wagner) é a repetição da de Fausto. Fredericus Scotus Tolet publica em 1593 uma vida de Fausto na qual ele viaja como sendo Cristóvão Colombo. Marlowe escreve uma farsa trágica, violenta e sem igual, a Tragique histoire du docteur Faust (A trágica história do doutor Fausto) (Londres, 1604). É uma obra profundamente humana na qual o autor conclui que o inferno está em nós mesmos. Com o teatro de fantoches — os “puppenspiele” — Fausto perde seu conteúdo ideológico para tornar-se o impostor; o elemento trágico passa a residir apenas no destino do herói, ficando a parte cômica com Hanswurst ou Kasperle, Polichinelo alemão.

    Essas numerosas representações inspiram Dreher e Schütz e depois, Geisselbrecht.

    10. — O drama de Goethe

    Em 1773 Goethe inspira-se no teatro de fantoches. Devolve a essa lenda protestante sua nobreza primitiva: Fausto tornar-se-á um Abelardo alemão. Símbolo da vida humana, esse drama é o do saber, o da paixão. Mas Fausto aspira a uma verdade superior: será salvo apesar de seus erros. Mefistófeles é a antítese das boas qualidades do sábio. Esse desdobramento de personalidade é mais notável em L’étrange cas du docteur Jeckyll (O estranho caso do doutor Jeckyll) com Stevenson que identificou o vício e a virtude. Essa cumplicidade demoníaca reteve a atenção de Goethe, e o mal — força consciente — seria o reativo do bem. Satanás torna-se então o servidor de Deus. “O diabo é um companheiro que, provocando o homem, fá-lo também agir.” Aliás, o prólogo de Fausto assemelha-se à conversação entre Deus e Satanás (Job, I, 6; II, 3) que é encontrada no ensaio de Abraão (Job, 17, 1812).

    Não será esse o licor da imortalidade que foi apresentado pelo médico dos Deuses ao Vichnu por ocasião de um dos seus avatares?

    Além do valor esotérico desse drama, eis que aparece a heroína Margarida, uma das mais belas almas humanas. Mas nessa luta de amor pueril, sem escrúpulos e sem remorsos, a lei da fatalidade esmaga a inocência. Se Fausto não houvesse soçobrado na desvairada noite de Walpurgis, teria representado o amor imortal.

    Goethe, entre setenta e seis e oitenta e dois anos escreveu o segundo Fausto, soma de saber e conhecimento. Nesse poema metafísico, de simbolismo muitas vezes obscuro, Fausto — a ciência — casa-se com Helena, mulher perfeita, de beleza antiga e plástica, símbolo da iniciação. Euforion é a alma no último grau da encarnação, libertada de suas correntes materiais.

    Dois grandes filmes foram inspirados nesses temas equivalentes, um de Marcel Carné, Les visiteurs du soir (Os visitantes da noite) e o outro de René Clair, La Beauté du diable (A beleza do diabo).

    11. Sucessão literária

    Fausto enamorado, faz lembrar D. Juan, e Grabbe desenvolve essa comparação analisada por Micheline Sauvage: Le cas de Don Juan (O caso de D. Juan) (Le Seuil, 1953). Mas Fausto, romântico. como Chamisso e Lenau, suicida-se. Intelectual puro para Lessing, é um orgulhoso revoltado para Lenz, Muller, Klinger. O Fausto de Heine desapareceu; sua ação é muito confusa conforme Soden, Klingemann e Stolte.

    Herói de todas as dúvidas e de todos os conflitos humanos, o Fausto de Turguenief é alvo do amor culpável. Mac Orlan o faz viver entre rufiões e raparigas e uma prostituta endossa essa terrível dívida (Margarida da noite). Em compensação, Mon Faust (Meu Fausto) de Paul Valéry, é uma criatura que esgotou tudo o que a vida pode dar. Mefistófeles é desviado pelas transformações do mundo moderno. Essa fresca sensualidade aparece na comédia satírica, Lust; depois de La demoiselle de Cristal (A jovem de Cristal), vem Le Solitaire (O solitário) que é o drama da negação de nossa civilização; sonho intelectual de M. Teste ou de Leonardo da Vinci, cada homem integrou-se de uma parcela diabólica. As duas peças estão inacabadas; se Lust deixa supor o triunfo do amor, observamos o pensamento trágico já assinalado por Rhumbs (Rumbas), Variétés (Variedades), Analectas (Analetos).

    Thomas Mann escreveu a tragédia de um músico obcecado: O doutor Fausto. Livro de uma extraordinária densidade e anotações perturbadoras, o Diabo aparece durante a Idade Média. Lembramo-nos de Paganini cuja virtude era classificada entre a dos personagens diabólicos e que não pode ser enterrado religiosamente (as tribulações de seu cadáver duraram cinquenta e sete anos). Ferchault observa, porém, os músicos inspirados por esse tema. São eles, Schumann, Berlioz, Gounod, Liszt, Wagner e outros. Stravinsky orquestrou L’histoire du soldat (A história do soldado) de Ramuz — na qual um desertor vende a sua alma — num verdadeiro milagre de realização instrumental sonora. Bellaigue se filia aos pintores: Étude artistique et littéraire sur Faust (1883) (Estudo artístico e literário sobre Fausto). Depois de Ary Scheffer haver pintado Margaridas, as melodias de Berlioz transpareceram em Delacroix.

    Não poderíamos deixar passar em silêncio La merveilleuse histoire de Pierre Schlemihl (A maravilhosa história de Pierre Schlemihl) na qual Chamisso aponta um pacto particular; um homem vende a sua sombra pela bolsa de Fortunato. A tentação é feita em dois estágios; o diabo, humilde como nos tempos medievais, compra apenas a sombra na esperança de recuperar a alma quando a desgraça se consumar. As sombras aparecem também na obra de Mac Orlan (Père Barbançon) na qual a sombra de Encolpe instiga uma luta sorrateira; se bem que o pacto não apareça, a atmosfera diabólica é a mesma.

    12. — Conclusão

    Esta lenda de origem satânica nasceu com L’histoire de Théophile. Pelo poder da prece, o homem foge ao jugo do mal. O protestantismo consagra o triunfo do inferno. Fausto denuncia uma crise literária e moral, é um universo resumido. O drama de Fausto continua a ser, assim, o drama humano por excelência.


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    CAPÍTULO II
    D. JUAN


    Possuir pelo espírito ou possuir pelo corpo são os dois desejos insaciáveis e eternos do homem. Fausto luta com os problemas do conhecimento. D. Juan procura enlaçar a beleza e se inebria no furor sensual. Mas esse “benfeitor inesgotável de todas as mulheres”, como é denominado por A. Saurès, persegue um ideal inacessível; luta com Deus e submete-se finalmente à sua lei comungando no Amor supremo.

    D. Juan representa nossa tentação, nosso desejo repudiado; herói da força de sedução, essa criatura audaciosa, nobre e cavalheiresca, cínica é odiada mas secretamente admirada. É que sob os andrajos D. Juan permanece um grande Senhor; não é um espadachim e sua paixão, que poderia ter sido vil, o aureola.

    Seu instinto de revolta faz com que entre em conflito com instituições existentes. D. Juan nasceu num clima quente e sensual, no estrondear das frutas maduras e odorantes, mas sob o controle da inquisição aos dogmas rigorosos que proscreviam a liberdade do amor:

    L’oeuvre de la chair ne désireras
    Qu’en mariage seulement.(2)

    Apesar de Bernard Shaw ser de opinião que D. Juan continua “um crente fervoroso num inferno último e de que se arrisca à excomunhão, é que o inferno lhe parece tão distante que o arrependimento pode ser diferido até o momento em que se tiver saciado de prazeres” (Man and superman) o povo não pode admitir a excomunhão desse homem excepcional. D. Juan reconcilia-se com Deus; e depois da lenda de D. Juan Tenório — que morre excomungado — aparece D. Juan Mañara.

    1. — Os dois D. Juan

    Depois de haver sido o símbolo da força maligna anti-social; o individualista D. Juan Tenório transforma-se na figura idealista de D. Juan Mañara, vítima das realidades físicas de nossa sociedade. Escravo do nosso mundo, verá seus erros perdoados por saber arrepender-se; é o símbolo do sofrimento e da luta.

    Prosper Mérimée mostrou em Les âmes du Purgatoire (As almas do Purgatório) que as duas lendas eram contadas da mesma forma; entretanto, Tenório foi levado pela estátua de pedra enquanto que o Mañara salvou-se. A Igreja manda um epílogo moralista e quanto mais perverso é o personagem, mais a conversão será retumbante. Bemard Shaw denomina-a “moral monástica”. Albert Camus admite que esse refúgio em Deus “é o confinamento de uma vida totalmente penetrada de absurdidade”; “o prazer termina aqui em ascese”,

    No decorrer de sua longa existência D. Juan se purificou.

    Romântico, persegue a imagem de uma beleza feminina, é um amante místico que vai do desencantamento ao desespero. É um Werther que, pelas suas preocupações intelectuais, liga-se a Fausto.

    2. — D. Juan e Fausto

    D. Juan e Fausto são dois revoltados que se insurgem contra os princípios da sociedade e da Igreja. Esses orgulhosos — serão excomungados — porque ultrapassam os limites impostos por Deus. A aproximação desses dois peregrinos, de um absoluto inacessível, foi materializada por Nicolas Vogt no seu poema Les ruines des-bords du Rhin (As ruínas das margens do Reno). O paralelo foi admiravelmente tratado por Micheline Sauvage em Le cas Don Juan (Le Seuil, 1953), onde “Fausto é a inteligência de Don Juan, Don Juan o erotismo de Fausto”; Albert Camus: Le mythe de Sisyphe (O mito de Sisifo) é de opinião que Fausto não sabia alegrar a sua alma enquanto que a vida cumulava D. Juan, que sabia organizar sua saciedade.

    3. — Os personagens históricos

    Essa criação imortal começa com D. Juan Tenório. Tirso de Molina, que foi o primeiro a divulgar o tipo em, aproximadamente, 1627, deve ter conhecido obras literárias anteriores. Uma crônica de Sevilha fixa Tenório matando o Comendador cuja filha havia raptado e a armadilha dos frades franciscanos; este teria sido mandado por uma estátua subitamente animada. Fez-se de Tenório o filho do almirante Alonso Jofre Tenório, contemporâneo de Pedro, o Cruel.

    Conhecemos melhor D. Miguel Mañara. Nascido em Sevilha no dia 3 de março de 1627, casou-se no dia 31 de agosto de 1648, após uma juventude dissipada; ao falecer sua esposa, em 1662, ingressou na confraria “la Hermandad de la Caridad”; no cargo de irmão maior, faleceu em 1679 em odor de santidade; quiseram beatificá-lo.

    Barres: Du sang, de la volupté et de la mort (Do sangue, da volúpia e da morte), Théophile Goutier (Voyage en Espagne, XIV), t’Serstevens (Le nouvel itinéraire espagnol, Segep, 1951), nos descrevem a última morada desse personagem lendário. A partir do quadro de Valdês Leal, Montherlant (revista N. R. F. de janeiro de 1953) vê na vida de D. Juan uma contínua blasfêmia; o que contrariaria os propósitos do Padre jesuíta Jean de Cardenas, amigo de D. Juan Mañara. Lorenzi de Bradi estabeleceu a origem corsa desse erradio do amor, cujo tio habitava ainda em Calvi, em 1643; foi dessa forma que pelos Cinarca, Napoleão foi parente dos D. Miguel.

    4. — Origem literária

    Se Georges Gendarme de Bévotte escreveu um livro notável, La Légende de Don Juan (Hachette, 1906 e 1910), Lorenzi de Bradi (Don Juan - 1930), pensa no sedutor com Zeus, “esse deus devasso, incestuoso, adúltero”, Plutão o raptor de almas e de corpos ou Prometeu.

    A silhueta do personagem não é nova: aparece no Amadis de Gaula (1492), nas comédias de Calderón e principalmente nas de Lope de Vega, aproximadamente em 1598.

    Tirso de Molina (1627), porém, extrai desse contemporâneo do Cid e de D. Quixote o máximo de força. Seu herói vindicativo tem respostas breves; sua atitude é digna e de uma calma intrépida diante da estátua animada; essa grandeza o reabilita. O aspecto singelo desse drama dá-lhe um sabor extraordinário. No Le truand béatifié (O truão beatificado), de Cervantes, Cristobal de Lugo morre em odor de santidade; com Mira de Amescua: L’esclave du démon (O escravo do demônio), D. Gil vende sua alma ao diabo a fim de possuir uma freira: enlaça apenas um esqueleto e seu pavor o reconduz a Deus.

    5. — Os outros temas do assunto

    Esse drama religioso, no qual a doutrina de Lutero e da predestinação suscita a dúvida, comporta também o tema do convite de um morto à mesa de um vivo. O assunto se encontra em peças escritas nos colégios de jesuítas alemães nos séculos XVII e XVIII: um libertino, o conde Leôncio, esbarrando com uma cabeça de morto, convida-a para jantar; o misterioso hóspede aceita o convite e leva o anfitrião para o inferno. Bévotte observa que a lenda teria nascido na Itália, o que é confirmado por Simone Brouwer. As estátuas animadas são freqüentemente usadas: Aristóteles nota o assassínio de Mitis pela estátua da vitória (Poética, XI, 6), Crisóstomo e Pausânias (Voyage en Grèce, 6, XI - Viagem à Grécia) observam que um invejoso é esmagado pela estátua erguida ao atleta Teógenes de Tasos; o escultor Pigmalião enamora-se de sua estátua que será animada por Vênus.

    Eckhardt (Corpus historiarum, Leipzig, 1723) menciona o texto de um cronista do século X referido por Gauthier de Coinsi em sua Chronique rimée des miracles de la Vierge (Crônica animada dos milagres da Virgem): “Du Clerc qui mis l’anel au doi Nostre Dame”. Notemos ainda Cicognini com La statue de l’honneur (A estátua do homem). Shakespeare e o Conte d’hiver (Conto de inverno) e a Vênus d’Ille de Prosper Mérimée.

    6. — De Tirso de Molina a Molière

    Depois da obra humana de Tirso de Molina, a peça espanhola é traduzida conforme o gosto italiano, por Cicognini, Giliberto; cenas burlescas e até vulgares foram acrescentadas por Biancolelli. Dorimon interpreta Le festin de Pierre, em Lião (1658), Villiers no palácio de Borgonha, em 1659. Ao título Le convié de Pierre, preferiu-se algumas vezes Le festin de Pierre, sendo Pedro o prenome do Comendador que deu origem ao contra-senso atual. Molière imagina, no Palais Royal, em 15 de fevereiro de 1665, essa notável peça que só será impressa em 1682. Seu ateísmo revolta os bons costumes e a peça é condenada. Com dois novos personagens, Sganarelle — mordomo jovial e de bom senso — e dona Elvira — vítima inocente — D. Juan é um cético de idéias engenhosas. Calculista, perversa, hipócrita e facciosa, essa peça é na realidade uma pintura dos costumes da época.

    7. — Superabundância literária

    Cada autor retomaria esse tema, a fim de nele se introduzir, em folhetos impressos. Depois de Rosimond (1669), La Fontaine trata do personagem ao escrever Joconde ou l’infidélité des femmes (Joconda ou a infidelidade das mulheres). D. Juan passa para o teatro de fantoches, nas feiras de Saint-Laurent e Saint-Germain e o Almanach forain de 1777, organiza uma lista.

    Cokain introduz D. Juan na Inglaterra e Shadwell transforma-o em um monstro: La libertine. (1676) (A libertina). Byron escreve um longo poema inacabado no qual o herói se deixa conduzir pelo destino. Em Clarisse Harlowe, de Richardson (1751), Lovelace é uma criatura complicada que tem o gênio do mal. Choderlos de Laclos aproveita essa mesma segurança diabólica no prazer da corrupção: Les liaisons dangereuses (Ligações perigosas - 1782), mas nessa luz cruel onde todos os recursos da astúcia são orquestrados, Valmont aparece mais perverso do que D. Juan.

    O abade italiano Lorenzo da Ponte introduz episódios da sua vida em Don Giovanni; Mozart aproveita esse texto, enquanto que Balzac cria L’elixir de longue vie (O elixir da longa vida).

    Do personagem humano de Puchkin (1830), Musset faz apenas um ente quimérico (Les marrons du feu, 1829, Namouna, 1832; Une matinée de Don Juan). Em 1833, Lélia, de George Sand, ataca D. Juan que é por ela reabilitado em 1839. Mérimée (Les âmes du Purgatoire, 1834 - As almas do Purgatório), Blaze (Le souper chez de commander - 1834), inspiram-se em Mañara, enquanto que La chute d’un ange (A queda de um anjo), de Alexandre Dumas, é um drama desconcertante. D. Juan continua demoníaco em Albertus, (1831), Comédie de la mort, (1838) de Th. Gautier.

    Se a maioria dos dramas é pueril, Baudelaire compõe um poema surpreendente, Don Juan aux enfers (D. Juan nos infernos), que evoca talvez Delacroix (1846, Les fleurs du mal - As flores do mal). Depois dessa síntese vigorosa, D. Juan é novamente desiludido com Lenau (1851), Tolstói (1860). Flaubert lembrou-se dele numa peça inacabada (Une nuit de Don Juan), enquanto que Barbey d’Aurevilly, fê-lo contar “seu mais belo amor” nos Diaboliques (Diabólicos); Henri Bataille também evocou esse personagem na velhice (L’homme à la rose - O homem da rosa). Richepin obriga o sedutor entediado a amar apenas mulheres bonitas: Mille et quatre, inconnue (Mil e quatro, desconhecida). H. de Régnier, Ed. Rostand trazem poucas inovações. Bemard Shaw produz uma obra de fé sobre esse motivo: Man and superman (1901-1903) (Homem e super-homem); Miguel Mañara de O. V. de Milosz é humano e comovente; foi escrito depois de Les sept solitudes (As sete solitudes) Scenes pour Don Juan et l’amoureuse initiation (Cenas para D. Juan e a amorosa iniciação). L’homme de cendres (1949) (0 homem feito de cinza) de André Obey é também Le fruit de Don Juan (1934) (O fruto de D. Juan) e do Trompeur de Séville (1937) (O impostor de Sevilha); mas após esse homem da negação, eis o “assassínio do amor” por Delteil (Grasset, 1930); é um fraco vencido pela mulher. Depois deste estilo imperioso e colorido, Claude-André Puget propõe-se dois fins em Echec à Don Juan (1941 e 1953), (Malogro de D. Juan), obra brilhante e cavalheiresca. Para t’Serstevens, La légende de Don Juan (1924 e 1946) (A lenda de D. Juan), ele é o judeu errante do amor. Esta vibração da carne encerra-se com êxtase, enquanto que para Fernand Fleuret: Les derniers plaisirs, (1924) (Os últimos prazeres), Mañara morre como um libertino.

    8. — Os representantes de D. Juan

    Além dos personagens históricos de Tenório — e Mañara, muitos outros sedutores tornaram-se representantes desse herói. Ocorre-nos imediatamente a lembrança de Alexandre com o seu harém de trezentas e sessenta e cinco mulheres, renovado todos os anos ou a de Júlio César, o sedutor inescrupuloso. Mencionemos ainda Henrique II de Montmorency, Nero, Francisco I, Luís XIV, Henrique IV (Le Vert Galant). Temos ainda Lauzun, o duque de Richelieu e a vida galante da Regência. Depois de Lázaro vêm as vidas tumultuosas de Santo Inácio de Loiola, de Calderón ou do terrível espadachim Lope de Vega. Sade, por sua obscenidade doentia, sua perversão sexual dificilmente se assemelha a esse voluptuoso que não pagava as mulheres como o fazia Casanova; D. Juan não teria admitido as astúcias de Charpillon que se assemelham às da Conchita imaginadas por Louys: La femme et le pantin (A mulher e o títere). Nicolas Rétif La Bretonne também se assemelha mais a Casanova do que a D. Juan.

    9. — Conclusão

    D. Juan encarna a paixão humana, pertence a todos os países, a todas as épocas. Está na base de nossa literatura: é o René de Chateaubriand, o Steerforth de David Copperfield, L’egoiste (O egoísta) de Meredith, o Woodstock de W. Scott; aparece ainda na obra de Montherlant, Stendhal, Maupassant. Esse sedento de ideais integra-se na concepção de cada autor; é uma criação viva.

    À satisfação física quer acrescentar a do espírito. Esse carrasco de corações, cortês e cavalheiresco, buscando a posse suprema, o amor absoluto, tende à santidade. Mas não deixou de ser essa criatura inconstante, cujos desejos insaciáveis e inesgotável curiosidade, permitiram-lhe mil e três aventuras, verdadeiras conquistas e não simples mercancias. Iluminado, peregrino do êxtase, judeu errante da volúpia, aventureiro que sonda corações e entranhas, traz no seu vício uma elegância nativa para transformar-se nesse frade arrependido.

    Ao seu lado a estátua é altiva e marcial; o mordomo conselheiro, tímido, hesitante entre seus escrúpulos e seu interesse; Dona Enviar — ou Dona Ana — é pura.

    O drama de D. Juan com seu espírito revoltado denuncia uma crise literária e religiosa. Mito de riqueza incomparável, é um universo com a condição do homem, sua dualidade, seu drama da carne e do espírito. Ainda por muito tempo nos encantará.


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    CAPÍTULO III
    AS CANÇÕES DE GESTA


    As canções de gesta nasceram na excitação religiosa e guerreira; os frades e os prestidigitadores desenvolveram seu suporte histórico, a ficção embrionária num objetivo preciso. Não são obras coletivas; gentes de ofício fixaram uma obra maduramente pensada. Bédier demonstrou a influência exercida pela vida dos santos, e a marcha dessas epopéias nas vidas dos santuários; pois que essas obras morais deviam reter e “explorar o peregrino”.

    1. — Histórico das teorias sobre a origem

    1. Em 1830, para Fauriel, Wolf, Herder e Edgar Quinet, a lenda vem de um canto popular contemporâneo ao evento histórico. A poesia nasceu espontaneamente; esses contos são “Ilíadas em potência”

    2. Os irmãos Grimm “germanizaram” as canções de gesta. Essa poesia popular exprime a alma da coletividade; não é escrita por um poeta, mas pelo povo. Os escribas apenas a coletaram. J. J. Ampère é da mesma opinião;

    3. Em 1835, Leroux de Lincy denomina de Cantilenas os velhos cantos populares. Essa teoria das origens faz parte do ensino com as Histoires de la littérature française de Demogeot (1851) e de Gérusez (1852);

    4. Gaston Paris admite essa origem mas controla os cantos que seriam de origem merovíngia e não tudesca;

    5. Em 1884, Pio Rajna mostra que a canção de gesta é o término da epopéia merovíngia herdeira da epopéia franca; foi adaptada somente para a aristocracia germânica. (Carlos Magno fala alemão). Rajna arruina a teoria das cantilenas e mostra que a epopéia era composta de longos poemas estruturais. Mayer conserva a tradição oral, Gaston Paris, a noção do canto lírico-épico;

    6. Bédier observa a importância dos santuários situados nas estradas das grandes peregrinações que conduzem para São Tiago de Compostela. Assim sendo, a igreja é o berço das canções de gesta. que nada mais são do que “a história poética de uma estrada”. Bédier traçou a “estrada dos santuários”. A chanson de Fierabras foi composta pela abadia de Saint-Denis para que melhor se venerasse o Cravo da Cruz e a Coroa de Espinhos do Cristo.

    2. — Situação dos ciclos

    Indicamos sumariamente a composição de três ciclos principais:

    A) Gesta do rei Carlos Magno — É o ciclo mais nobre; narra guerras santas efetuadas pelo Imperador. A título de indicação citaremos como a mais antiga canção de gesta a Chanson de Roland.

    Observemos a descrição das guerras santas: Da Itália (Canções d’Aspremont, d’Otinel, as Canções Enfances d’Ogler, de Balan, de Jean de Lanson, de Bete et Milon); da Palestina (Canção de Miran, Pèlerinage à Jerusalém, o Chevalier au Cygne, Chanson d’Antioche); da Bretanha a fim de libertar as sete igrejas (Chanson d’Aiquin); contra os Saxônios (Chanson de Saisnes); da Espanha (Chanson de l’Entrée en Espagne, de La prise de Pampelune, de Pierabras, e d’Agolant, de Roland, de Galien, d’Anseis).

    B) A gesta de Garin de Monglane — São as pesquisas de Luis, filho de Carlos Magno, apoiado pelo cavaleiro Guilherme. Não tratando deste ciclo, daremos alguns dados.

    1. O coroamento de Luís — Poema do século XII que marca a chegada de Luis em Aix-la-Chapelle. Guilherme Fierebrace — o verdadeiro herói — combate até Corsolt, o gigante. Cogitou-se historicamente no conde de Toulouse, Guilherme, que foi defensor das marchas meridionais contra os sarracenos. Ao retirar-se para o mosteiro em 806, tornou-se São Guilherme do Deserto; nossos dados limitam-se a esta descrição. Guilherme morreu antes do coroamento de Luís.

    2. O carreto de Nimes — Por ocasião da distribuição de méritos e feudos, Guilherme foi esquecido pelo rei. Reivindica então o direito de conquistar a Espanha e o reinado de Nimes. Penetra em Nimes disfarçado num vendedor de barris de sal onde estão escondidos, na realidade, seus soldados. (O que nos faz lembrar o cavalo de pau da Ilíada ou As mil e uma noites).

    Guillaume au court nez (Guilherme de nariz curto) é um herói popular; a narração é truculenta, pitoresca e cômica. Notemos o episódio da morte do cavaleiro Renouart no qual o autor pensa no ciclo arturiano ao falar da fada Morgana e do rei Artur. Guilherme está ainda presente na Prise d’Orange (Tomada de Orange), Aliscans.

    Os ascendentes de Guilherme estão presentes com:

    1. Aymeri de Narbonne — Cinco mil versos decassilábicos atribuídos a Bertrand de Bar-sur-Aube (Princípio do século XIII), divididos em cinco manuscritos anônimos. Aymeri, depois de haver conquistado Narbonne partiu para a Itália a fim de desposar Hermengarda, irmã do rei dos Lombardos. Deve reconquistar dos sarracenos aquilo que lhe pertencia.

    Com o Département des enfants d’Aymeri vemos a luta de seus sete filhos contra os sarracenos. Aymeri morre combatendo os Centauros (os Sagitários); seus quatro mil versos têm o titulo La mort d’Aymeri de Narbonne.

    Victor Hugo lembrou-se dessa lenda em Aymerillot (A lenda dos séculos).

    2. Girardo de Viena — Durante sete anos Girardo é sitiado em Viena por Carlos Magno. Oliver combate ao lado de Girardo. Ora, Rolando apaixona-se por Aude, irmã de Oliver. A fim de terminar a guerra, Rolando e Oliver empenham-se num combate implacável; um anjo aparta os combatentes e Rolando esposa Aude.

    Baseado nesse tema, Victor Hugo escreve Le mariage de Roland (O casamento de Rolando), La Légende des siècles (A lenda dos séculos).

    Mas os descendentes de Guilherme deram origem a: Les enfances de Vivien (As infâncias de Vivien), Foucon de Candis, La batalhe Loquifer (A batalha Loquifer), Rénier enquanto que seus irmãos estão presentes no Bovon de Commarcis, Le siége de Barbastre (O sitio de Barbastre), Guibert d’Andrenas ou La prise de Cordoue (A tomada de Córdoba). C) A gesta de Doon de Mogúncia — É a narração da revolta dos cavaleiros rebeldes de Carlos Magno. Estudaremos melhor na Chevalerie d’Ogier os Quatre fils Aymon (Os quatro filhos Aymon), lenda justamente célebre e que é prosseguida por Maugis d’Aigremont e La mort de Maugis (A morte de Maugis).

    O orgulho, a loucura, o exagero formam o fundo dessas canções onde rancores imperdoáveis nasceram (Chanson d’Aubri le Bourguignon, de Basin, de Girard de Roussillon, de Gormond). Mas, às vezes, os barões já não lutam contra Carlos Magno e sim entre si (Raoul de Cambrai, Les Lorrains).

    Observemos que a história de Gormond e Isambard foi composta pelo, abade Hariulf, em 1088, conforme a crônica de Saint-Riquier. É pois ainda um santuário que guardou a tradição doa invasores escandinavos que ameaçaram a França em 879. E exato que um dos Wikings se chamava Gormond, que seus bandos devastaram Ponthieu em 2 de fevereiro de 881, e que no dia 3 de agosto de 881, Luis III os desalojou. As crônicas anglo-saxônicas mencionam um Gormond estabelecido em Circester em 879 e um clérigo cometeu o contra-senso de confundir os dois Gormond.

    D) Finalmente os empresários dos espetáculos desejaram satisfazer os públicos mais vulgares. As canções de gesta se transformaram em melodramas. Surgiu o tema da inocência perseguida (Elie de Saint-Gilles, Doon de La Roche...), o das damas oprimidas (Berthe aux grands plods, Les enfances Doon, Orson de Beauvais). São peças moralistas onde se assiste ao castigo do crime.

    I. — Canção de Rolando
    1. — Tema da canção

    Carlos Magno deve negociar com o rei muçulmano de Saragoça que pede paz. Ganelon, o traidor, permite que Marsile cerque a retaguarda comandada por Rolando. Quando este se decide a pedir socorro a seu tio, todos os bravos, inclusive Olivier e o arcebispo Turpin, morrem. Carlos Magno aniquila os sarracenos e em Aix-la-Chapelle. Ganelon é esquartejado.

    2. — Tema histórico

    Einhard escreve em aproximadamente 800 (Vita Karoli, IX) que o emir da Saragoça solicitou o auxílio de Carlos contra os príncipes muçulmanos (777 em Paderborn) No dia 19 de abril de 778 Carlos Magno atravessa os Pireneus, toma Pampelune e malogra-se em Saragoça. No dia 15 de agosto de 778 sua retaguarda é surpreendida pelos bascos no desfiladeiro de Roscenvales. Carlos não pode castigar os montanheses.

    Desta forma, para os bascos, a imaginação popular teria substituído os sarracenos, inimigos arraigados dos cristãos.

    Conforme a versão árabe de Ibn-al-Athir (século XIII), os sarracenos aliciados junto aos francos, teriam auxiliado os bascos.

    Gaston Paris adere a esta opinião e diz que Einhard registrou um fato inexato para poupar o amor-próprio dos francos.

    3. — Arquivos históricos

    Estes acontecimentos são ainda anotados nos Anais de Angilbert, em 778, na crônica do astrônomo Limousin Vita Kludovici.

    Eis a crônica do frade de Silos (aproximadamente 1110), ato da fundação da abadia de Saint-Pede-Gèneres em Bearn (1096); história eclesiástica de Fleury (1109); epístola III de Raoul le Tourtier (antes de 1114); Les exploits de Tancrède (As proezas de Tancredo), de Raoul de Caen (1112-1118). Uma cruz adorna a gola de Cize antes de 1106 e é mencionada numa Carta Episcopal de Baiona, em 980; os arquivos de Pampelune (1127), falam de uma capela erguida por Carlos Magno nesse local de carnificina.

    4. — Os personagens históricos

    Rolando era verossimilmente um conde de la Marche da Bretanha. Carlos, que na realidade tem apenas trinta e sete anos, torna-se o imperador da “Barba florida”. A lenda deforma os fatos e, para melhor expor a bravura de Rolando, quatrocentos mil sarracenos combatem vinte mil francos.

    Costuma-se relacionar também esses acontecimentos históricos a Guilherme, duque de Septimânio, de Toulouse e de Aquitânia, que, em 793 foi derrotado pelos sarracenos, em Villedaigne. Em 806, Guilherme retirou-se para o mosteiro de Gellone onde morreu em odor de santidade (28 de maio de 812). O mosteiro fez sua apologia e assim foi inspirada a lenda.

    5. — Os manuscritos

    A versão assonante do manuscrito de Oxford (quatro mil versos em decassílabos do início do século XII) é a mais conhecida. Bédier localiza-a entre 1080 e 1134. Para Gregório, essa versão prender-se-ia ao episódio de Baligant. A de decassílabos assonantes conservada na biblioteca de São Marcos, em Veneza, está muito próxima do texto de Oxford (manuscrito IV, fundo francês). Nas versões rimadas, notamos o manuscrito de Châteauroux; outro grupo compreende textos semelhantes (manuscrito VII, São Marcos, em Veneza; Biblioteca Nacional de Lião, Cambridge.

    O Rolando alemão foi escrito por Konrad (Ruolandes liet) conforme o texto de Oxford; o mesmo se dá com a versão norueguesa redigida em, aproximadamente, 1240, por ordem do rei da Noruega Haakon V (Capítulo VIII da Karlamagnussaga). Deve-se ainda registrar uma versão galesa (século XIV), dos poemas ingleses, neerlandeses, latinos (Carmen de prodicione Guenonis), ou os dois poemas de Apt em língua provençal (estudados por Mario Roques).

    6. — O autor

    O último verso do poema de Oxford: Ci falt la geste que Turoldus déclinet fez com que se procurasse o sentido de “déclinet” que tanto pode significar procurar, refundir ou recitar. Faral (Les jongleurs en France, 1910) mostrou essa aristocracia das clérigos menestréis. Turold seria então um “pelotiqueiro considerado autor”, provavelmente de origem normanda. Na tapeçaria de Bayeux aparece um Turold que se julgou ser um padre, beneditino de Fécamp, filho do antigo preceptor de Guilherme, o Conquistador (Génin). Tavernier pensa no bispo de Bayeux, nascido entre 1055 e 1060.

    Para Boissonnade (1923), esse clérigo pelotiqueiro, de caráter independente e fé profunda, oriundo de Avranchin, teria sido o companheiro de Roger de Seis ou Sai; seus nomes são encontrados numa Carta do capítulo Notre-Dame de Tudela.

    7. — Origem

    Sendo a teoria das cantilenas destruída por Rajna, a crítica de Bédier parece tornar-se definitiva. A importância dos santuários situados entre Blaye e Roscenvales — la Via Tolosana — é confirmada na lenda que envolve a vida secular de Guilherme. Os louvores religiosos, conservados nos anais de 1124 com os atos de doação, certamente excitaram ainda mais a imaginação do poeta de profissão do que a magra informação contida nos anais carolíngios.

    É por essa razão que Mireaux, baseando-se no Guide des Pèlerins (1140) investiga se o olifante exposto em Saint-Seurin de Bordéus existia antes da canção ou se foi originado por ela. Boissonnade liga o evento da nossa canção às empreitadas das cruzadas francesas na Espanha nos séculos XI e XII.

    8. — Valor da lenda

    As canções evocam personagens históricos. Para Pauphilet (Romania, LIX, 1933), o principal personagem continua a ser Carlos Magno. Mas para Mireaux, a obra de Turold visaria a glória e os desígnios de Henrique Plantageneta tornando sua a concepção cisterciense da cruzada.

    Todavia, as memórias evocadas pelo autor são as que mais nos interessam. Mário Roques (Romania, n.o 263, julho de 1940), mostrou a preocupação do poeta perante as verdades materiais e psicológicas. É enfim uma obra de criação poética na qual os temas tornaram-se imortais.

    Essa lenda simboliza também as guerras efetuadas por Carlos Martel e principalmente as de Carlos Magno a fim de realizar a unificação do catolicismo; para agradecê-lo por este fato, o Papa Leão III coroou Carlos Magno imperador, no dia de Natal no ano 800.

    9. — Sucessão literária

    Se A. Fabre (campeão 1941) mostrou que La chanson de Roland era a origem e a base da Chanson de Sainte-Foy, Le dit de la bande d’Igor é o tema russo em homenagem aos “príncipes que se bateram pelos cristãos contra os exércitos pagãos”.

    O assunto inspira o romance de Gabien, as Conquestes de Charlemagne de David Aubert. Mas depois de Spagna, o Morgante de Pulci (1485) dirige Rolando para o burlesco. O ideal mundano aparece mais desenvolvido no Roland amoureux. Mas Boiardo falece (1494) deixando sua obra inacabada. Ariosto vê apenas em Rolando um amante enganado, mas seu Roland furieux (1516-1532) influencia Mairet; Quinault (1685) compõe com a música de Lully. Vigny, ao escrever Le cor (1825) pensa na narração de Turpin; Monin (1832) atrai a atenção dos letrados com seu Roman de Roncevaux, enquanto Francisque Michel estudava o manuscrito de Oxford.

    II. — Os quatro filhos de Ayimon
    (Gesta de Doon de Mogúncia)
    1. — O tema

    Carlos Magno armou cavaleiro aos quatro filhos de Aymon de Dordone: Aalard, Renaud, Guichard e Richard. Mas Renaud, devido a uma série de derrotas, matou Bertolai, sobrinho de Carlos Magno. Um antigo rancor gerou entre o imperador e as fileiras de Renaud; Carlos Magno, para se. vingar da afronta, perseguiu durante anos os quatro irmãos que provocavam a admiração de seus inimigos. Ei-los ao lado do rei Yon lutando contra os sarracenos, desde Ardenas até Bordéus. Com o auxílio de um primo, Maugis, o mágico, capturaram Carlos Magno para libertá-lo imediatamente. Libertarão seu maravilhoso cavalo Bayard e Renaud parte para combater na terra santa; essa vida de orgulho e violência termina com a penitência e a graça.

    2. — Textos análogos

    Os problemas de honra e de consciência que se impõem a esses revoltados se encontram em La chevalerie Ogier no qual o filho de Ogier, o Dinamarquês, foi morto pelo filho de Carlos Magno; Ogier quer se vingar; se arrependerá e tornar-se-á frade. Em Raoul de Cambraf, Raoul, deserdado pelo pai, devasta Vermandois. Seu implacável adversário Ybert de Ribemont, reconhecendo seus erros, funda, no local onde estão os sete castelos — monumentos do orgulho — sete mosteiros — testemunhos de penitência.

    3. — Manuscritos

    O manuscrito do século XIII, arquivado na Biblioteca Nacional de Paris (n.o 24.387, versão de La Vailière), deu origem a duas edições (Michelant, Tübingen, 1862; F, Castets, Montpellier, 1909). Treze outros manuscritos completaram esse texto chamado La Vailière (manuscritos de Montpellier, de Veneza, estudados por Pio Rajna, de Cambridge, ns. 766 B. N.). Um poema neerlandês (segunda metade do século XIII), retoma a trama do manuscrito La Vallière.

    4. — Estudos

    Paulin Paris localiza a ação primitiva nas Ardenas. Bédier acentua que a lenda não é mencionada no Catalogue de 1150, mas que é bastante conhecida no princípio do século XIII. Longnon estabelece em 1879 um paralelo histórico entre Yon de Gasconha e o rei de Aquitânia Eudon que guerreou, não contra Carlos Magno mas contra Carlos Martel. (Revue des questions historiques). Rajna (1884). Léon Jordan (1908), Castets (1909) considerando a mesma tese, mas Castets, sem demonstrá-lo, identifica os quatro filhos Aymon aos quatro filhos de Clotário: Clodoveu, Meroveu, Gondovaldo e Childeberto.

    Gaston Paris atribui esse poema de dezoito mil versos a Huon de. Villeneuve, enquanto que Bédier estabelece um paralelo com a vida de Santo Agilolfo, que conteria todo o elemento histórico.

    5. — Conclusão

    Essa lenda de situações dramáticas, ternas, trágicas ou burlescas é a epopéia de vassalos rebeldes que lutam contra seu senhor. Com um fundo maravilhoso e cômico, cenas pueris e joviais. Les quatre fils Aymon caracterizam essa literatura feudal acentuada por uma espiritualidade cristã e pagã. A verdade histórica desaparece perante a verdade psicológica. Mais do que na Canção de Rolando, temos o retrato da sociedade dos Capetos na qual os vassalos são freqüentemente insolentes e intrépidos; guardam contudo um certo senso da honra e essa perseguição implacável dos quatro irmãos, cercada de maravilhoso, continua a ser uma obra das mais atraentes.

    III. — O Cid
    O personagem do Cid pertence à Espanha. Mas Corneille, prosseguindo com a peça de Guillen de Castro, imortaliza o herói. Essa lenda cavaleiresca descreve a vida rude e trabalhosa de um hábil guerreiro; é uma poesia de autenticidade na qual o sobrenatural, o misticismo e o fanatismo desaparecem.

    1. — O personagem histórico

    A Gesta Roderici Campidocti registra o nascimento do Cid em, aproximadamente, 1050; a Crónica del Cid, em 1026. Deve ter nascido em Bivar (a 8 quilômetros de Burgos), de Diego. Laynez, descendente de Layn Calvo, juiz do condado de Castilha.

    Conforme outras tradições, Rodrigo é um bastardo e tem três irmãos mais velhos. Guillen de Castro faz dele um filho natural, Corneille, um filho único.

    Guerreia sob o reinado de Sancho II e depois sob o de Afonso VI que o exilou em 1081. Rodriguez Diaz bate-se então para outros reis. Requestam-se os serviços do Campeador (O batalhador).

    Ajudando o rei muçulmano de Saragoça, os soldados lhe deram o nome de Cid, Mio Cid oriundo do árabe Sidi, senhor. Cumulado de riquezas e honras apoderou-se de Valença (1094) e lá viveu até 1099 como grande senhor. Depois de sua morte, sua mulher, Ximena, neta de Afonso V. teve que abandonar Valença (1102).

    A imaginação do povo acrescentou logo uma infinidade de pormenores extraordinários. Esse vassalo injustamente exilado permanece um motivo ora respeitável, ora revoltado; chefe de um bando ambicioso, pouco escrupuloso (conforme Dozy), torna-se um cavalheiro cortês e galante. São-lhe atribuídas intenções que são de outros tempos e de outros personagens. Mas esse homem rude, independente, leal, representa bem a Espanha cristã; provocou a admiração.

    2. — Os documentos

    O Museu Real de Armas de Madri conserva uma das espadas do Cid (Tizona); a catedral de Sala manca retém o ato de 1098 pelo qual o Cid dava todos os seus bens à catedral de Valença; bem como os de Ximena (1101). Burgos tem em seu poder o contrato de casamento entre Cid e Ximena e os. dois cofres que o Cid teria entregue aos judeus. Os restos mortais do herói e de sua mulher descansam em San Pedro de Cardena. Em 1272, Afonso X mandou erguer, em sua homenagem, um ataúde de pedra.

    3. — Fontes literárias

    a) Historia Roderici Didaci Campi docti, crônica latina (antes de 1238), descoberta em 1742 pelo P. Risco, traduzida por Saint-Albin (Paris, 1866).

    Só nos restam trinta e duas estrofes desse poema;

    b) Crônica rimada, descoberta em 1844 por Enjemio de Ochoa, publicada por Francisque Michel e Ferdinand Wolf — Tradução de Damas-Hinard em 1858. E a juventude do Cid feudal. A narração inicia-se com a querela entre o Conde de Gormaz e Diégo Lainez;

    c) Le Romancero é a obra mais considerável. Foi impressa em Saragoça em 1550;

    d) A crônica do Cid, quarto livro da Crónica general, teria sido composta pelo próprio Afonso X e refundida no século XV; e) La crónica del famoso Caballero Cid Ruy Diaz Campeador, em prosa, publicada em 1512 por Juan de Veloredo, em 1845 por Huberto, em Marburgo e em 1853, em Stuttgart;

    f) O poema do Cid (Gesta del mio Cid), publicado em 1779 por Sanchez, reeditado em 1858 por Damas-Hinard e depois por Saint-Albin. Talvez escrito por um prestidigitador de Madenaceli em, aproximadamente, 1140; esse admirável poema encena um Cid mais apaixonado pelas guerras do que pelo amor. A influência da Canção de Rolando nela é indiscutível, mas os episódios sobrenaturais são apenas quatro, sendo um a visita, do Anjo Gabriel e o outro a de São Lázaro.

    Essa grande lenda épica espanhola não precisa pois do maravilhoso;

    g) Documentos árabes. Dozy (1881) encontrou o manuscrito árabe de Ibn Bassam (Dzakhira, terceiro volume, primeira parte), escrito em Sevilha em 1109 dez anos depois da morte do Cid lbn-al-Cardebus et Ibn-al-Abar falaram também do Cid.

    4. — Sucessão literária

    O amor Ximena-Cid não é tratado. Essa invenção arbitrária nasceu nos romanceros, os quais dizem que Ximena amou Rodrigo depois da morte de seu pai. Francisco Santos no Cid ressuscitado faz com que o Cid ressuscite bastante descontente com as fábulas que lhe são atribuídas.

    a) Guillen de Castro — No século XVII, este autor forneceu o conflito dramático da morte do conde. Las mocedades del Cid (Juventude do Cid), composto em 1618, foi editado em 1621; é um drama fértil em espetáculos nos quais o amor luta com o dever durante três anos. A segunda parte de Las mocedades narra as proezas do Cid e a ação só é iniciada vários anos depois do casamento do Cid com Ximena.

    Esta peça edificante exalta o espírito da caridade; é uma arma contra a Reforma;

    b) Corneille — Corneille retoma esse texto (dezembro de 1636) inspirando-se também em dois antigos romances espanhóis. A lei imperiosa da unidade de tempo aboliu esse período de três anos; Corneille, reagindo contra a apresentação dos mistérios, suprime as cenas religiosas mas exalta o ideal de cavalaria. É criticado pelo casamento dessa moça com o assassino de seu pai, mas na Espanha, o rei dispunha, como queria, da mão de uma órfã.

    “La querelle du Cid”, erguida por Richelieu, tem motivos políticos (apologias do duelo e de um herói espanhol justamente quando os éditos de 1634 proíbem esses combates e que a França está em guerra com Madri). E nada mais do que uma rivalidade literária, o orgulho de Corneille feriu a suscetibilidade de seus rivais;

    c) Diamante — La Harpe e Voltaire pretenderam sem razão que o Cid de Diamante era anterior ao de Castro. Le vengeur de son père data de 1659 e é uma tradução de Corneille;

    d) Les tragédies — Desfontaines (Le mariage du Cid, 1635), Chevreu (La vraie suite du Cid), Timothée Chillac (La mort du Cid ou L’ombre du comte de Górmaz, 1639), Pierre Lebrun (Le Cid d’Andalousie, 1825), de Casimir Delavigne (La fille du Cid, 1840) não trouxeram nenhum elemento novo.

    Abel Hugo traduziu o Romancero (1822) e Victor Hugo lembra-se de Rodrigo em La bataille perdue (Les Orientales), Bivar, Le Cid exilé, Le Romancero du Cid (La légende des siècles);

    Em 1882, Zorilla compõe uma abundante paráfrase do romancero (La légende du Cid). Massenet escreve sua música segundo o livreto de Gallet, d’Ennery e Blau. Leconte de Lisle inspira-se em Rodrigo nos seus Poèmes barbares (1862), bem como José-Maria de Herédia (Revue des Deux Mondes, 1885).

    Alexandre Arnoux publicou uma excelente Légende du Cid Campeador (Piazza, 1923) e Georges Fourest traduziu o lamento de Ximena em La négresse blonde (Vanier-1909):

    Dieu!
    Qu’il est joli garçon l’assassin de papa!(3)

    5. — Conclusão

    Esse canto triunfal, único texto épico de uma tradição espanhola foi, desde o princípio, influencia.

    do pelo espirito francês que se irradiou então sobre toda a Europa. Poema de propaganda, o autor baseou-se em documentos humanos. Debaixo de sua boa cota de malha, o Cid combateu para ganhar a sua vida. Mas esse personagem bem espanhol veio até nós, não tanto pela sua coragem que se assemelha à de Rolando, mas por um fato imaginado por Guillen de Castro: a luta entre o dever e o amor. Corneille, pela sua concisão, pelo vigor de seus versos cintilantes e imortais, forjou sua duradoura personalidade.


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    CAPÍTULO IV
    O CICLO ARTURIANO


    O ciclo arturiano, apresenta-se como um conjunto vasto e fértil que prossegue os Romances corteses. E também denominado Matéria da Bretanha. A figura central continua a ser a de Artur, rei lendário de origem céltica; pretendeu-se ver nesse rei o mantenedor da luta contra os saxônios e que, para salvaguardar sua ilha, deixou-se matar em 542; esse rei liberal teria nascido em Tintagel, na Cornualha.

    Artur — ou Artus — triunfa com suas armas maravilhosas, mas também pela amizade do mágico Merlin que é considerado algumas vezes como sendo um personagem real.

    A rainha Guenièvre, filha do rei Léodagan, figura ideal da dama da corte, toma emprestado alguns traços a Isolda, outro personagem do ciclo. Guenièvre reina sobre os seus cavaleiros que se reúnem em volta da Távola Redonda; o casal real comanda empresas nobres e temerárias; o “geis” que é ao mesmo tempo um pedido piedoso e uma injunção de defesa, cria um obstáculo que é a base de perigosas aventuras. A fim de levar a bom termo a conquista de objetos-talismã e de taças com virtudes mágicas que embelezarão os tesouros do rei, as fadas ajudam os cavaleiros. Esses combates sobre naturais, esses próprios objetos, vêm de uma tradição pagã muito divulgada.

    Quando o poderoso Artur vai penetrar em Roma, a revolta de seu sobrinho Mordret — que talvez seja também filho do adultério e do incesto entre Artur e a esposa do rei Loth — obriga-o a reconquistar seu reinado. Nessa campanha sangrenta, seus leais servidores morrem. Os saxônios aproveitam-se do sucedido para invadir o país e, no último episódio da carnificina, Artur e Mordret se ferem de morte.

    É a ruína da cavalaria bretã, mas a sua esperança sobrevive. Artur teria sido levado vivo para o reino das fadas e um dia voltaria para restituir ao seu povo a independência e o poderio.

    O ciclo arturiano contém a extraordinária Demanda do Santo Graal que se inicia com um romance de cavalaria e termina como uma narrativa mística.

    Essas demandas permitiram a cada narrador de compor uma narrativa de acordo com seu temperamento; os episódios de combate se alternam com cenas sentimentais; atos de bravura sucedem às imagens voluptuosas e ordens breves de estratégia guerreira, às palestras galantes. Os progressos sucessivos afastam pouco a pouco o tema da deixa primitiva e depois os romances em prosa efetuam a fusão entre as lendas arturianas e as narrativas do Graal.

    Essa mitologia céltica ter-se-ia formado por ocasião da invasão saxônia (450-510) e ter-se-ia enriquecido posteriormente com a inspiração vinda do continente. A história Britonum, atribuída a Nênio, foi retomada no século XII na História Regum Brittaniac de Geoffroi de Monmouth (1137). Wace menciona a Távola Redonda no seu Roman de Brut. A origem é talvez gaulesa a partir de Kuchwch e 0lwen ou irlandesa como diz Jean Marx baseado no texto dos Mafinogion.

    Chrétien de Troyes nos legou esse conjunto extraordinário e sobrenatural. Hábil narrador, aproveitou a tendência do povo pelo fabuloso e criou romances de aventuras e de episódios palpitantes. Ao descrever Lancelote à procura da, rainha (Le chevalier à la charrette), imaginou um herói que tendo merecido o amor de sua amante arrisca-se a adormecer numa vida ociosa. Mas Yvain (ou Le chevalier au lion), voltará ao manejo das armas. Erec, o “cavaleiro do falcão”, depois das censuras de sua dama Enide, encontra novamente sua força.

    Não podendo citar todos os trabalhos relativos a esse ciclo (remetemos o leitor à Histoire littéraire de la France, t. XXX e XXXI, de Gaston Paris e aos Romans de la Table Ronde, de Paulin Paris), observaremos que o assunto continua a ser o de um jovem cavaleiro desconhecido que, da corte de Artur, levará a bom termo uma aventura tida como impraticável; graças às suas qualidades, desposa a jovem que se acha envolvida e que lhe dá, como dote, um reinado.

    Todas essas lendas comportam elementos míticos, pagãos, druídicos nos quais se envertará uma concepção mística cristã. Histórias humanas mescladas de história sagrada, conjunto que forma a tragédia da fraqueza humana cobiçando os poderes do espírito (o Graal). Este tema se assemelha ao de Fausto; Lancelote ficou sendo o valete de nossas cartas e o uso da torta de reis veio até nós. Estudaremos sucessivamente: A demanda do Santo Graal, Merlin, Tristão e Isolda.

    I. A demanda do Santo Graal
    1. — Generalidades

    Para a Idade Média, o Graal é a taça de que se serviu Jesus durante a Ceia. Nela, José de Arimatéia colheu o sangue do Senhor ferido pelo centurião romano Longin. Os genoveses expuseram em 1101, depois da tomada de Cesaméia, um prato de vidro, venerado pelo nome de “Sacro-Catino”. Prato ou vaso, objeto radiante em ouro ou em cristal, o graal tanto pode ser essa esmeralda celeste ou o livro sagrado tal como o evangelho perdido de São João.

    Esses objetos mágicos evocam os dos contos de Mil e uma noites mas no embaralhamento desses temas, a descrição da cena do cortejo continua primordial. Estudaremos antes de tudo a evolução do ciclo.

    2.- Os temas

    a) Chrétien de Troyes, Parsifal — Chrétien de Troyes, natural de Champanha, teve que compor Perceval ou le conte du Graal a pedido de Filipe da Alsácia, conde da Flandres, noivo da protetora do poeta: Marie de Champanha.

    Não sabemos onde Chrétien tirou os seus dados; o texto teria sido escrito entre 1180-1183; Wilmotte diz que foi antes do 14 de maio de 1181. Eis o assunto:

    Parsifal é criado por sua mãe num domínio solitário Depois de uma aprendizagem bastante rudimentar, recebe a ordem de cavaleiro e liberta Branca Flor então sitiada. É recebido no castelo mistérioso, pelo rei-pecador paralisado por uma lançada na coxa. Espectador ingênuo assiste ao desenrolar de uma estranha cerimônia: o anfitrião entrega-lhe uma espada. Um mordomo leva-lhe uma lança toda branca cuja ponta está embebida de sangue; mais longe, uma jovem carrega o graal (cálice) de ouro muito puro, guarnecido de pedras preciosas e que difunde uma claridade sobrenatural; depois outra jovem carrega um prato de prata. Parsifal estupefacto cala-se; no dia seguinte, afasta-se do castelo deserto. Uma jovem ter-lhe-ia revelado que devia perguntar sobre a significação da cena; com suas palavras libertadoras teria curado o rei enfermo e o encantamento da região adormecida e estéril teria cessado; Parsifal recusa então dormir duas noites seguidas debaixo do mesmo teto. Durante cinco anos realiza as mais perigosas aventuras; esses episódios fabulosos dependem do fantástico e são de uma iniciação ritual cujo verdadeiro sentido nos escapa. Um eremita — seu tio — aconselha-lhe então a caridade, a humanidade e lhe transmite uma oração secreta que lhe permitirá, talvez, encontrar o graal.

    Assim termina o romance de Chrétien, de dez mil e sessenta e um versos octossilábicos. Entre os prosseguidores a parte “pseudo-Wauchier” se estende até o verso 21.916 (edição Potvin) e se ocupa de Gauvain. Wauchier de Denain — ou um autor anônimo — trata das propriedades da espada entregue a Parsifal (verso 34.934) e faz da lança uma relíquia divina. Manessier, em 1225, a pedido de Jeanne de Flandre, termina essa obra: Parsifal torna-se o guardião do Graal (versos 34.934 a 45.379). Muitos outros poetas participam com a sua contribuição pessoal, tais como Gerbert de Montreuil que compôs dezessete mil versos insuficientes para que Parsifal pudesse recolher a sucessão do rei-pecador. Ferdinand Lot analisou essas obras (Romania, I. VII, 1931).

    Obra enigmática com Chrétien, o tema — assume uma significação mística e religiosa. O graal — que não era o Graal — não era nem uma relíquia santa, nem um tacho de abundância; nenhum capelão assiste ao desfile da lança que sangra. O tema goza rapidamente de um êxito prodigioso e inspira outros poetas.

    b) Wolfram d’Eschenbach et Guiot — Wolfram d’Eschenbach compõe Parzival entre 1200 e 1210. Diz ele: “Mestre Chrétien de Troyes contou essa história, alterando-a e Kyot que nos transmitiu o conto verdadeiro irrita-se e com razão. O Provençal...” Discutiu-se muito sobre a existência desse poeta Guiot ou Kyot. Para Schreiber e San Marte trata-se de Guiot de Provins, o acre satírico da Bíblia. Wilmotte pensa no autor de um Miracle de la Vierge (Milagre da Virgem) entre 1150-1180. Será que Guiot precede Chrétien? A questão permanece sem solução. Com Wolfran o cerimonial do desfile se complica, lembrando-nos a coreografia de um ballet. O Graal é então uma pedra santificante dada por Deus a Adão (era a esmeralda frontal de Lúcifer). Seth, terceiro filho de Adão, obteve licença para entrar no Paraíso a fim de retomar a pedra. Lá ficou quarenta anos — número da expiação — e esse cálice será entregue por Pôncio Pilatos a José de Arimatéia que nele recolheu o Sangue Divino; depois de quarenta anos de prisão e depois de Vespasiano haver destruído Jerusalém, José, acompanhado por sua irmã Enigéia e de seu cunhado Bron, se estabeleceu na Grã-Bretanha, no país de Hofelise onde constrói o castelo Aventureux; a cidade de Corbenic se estendeu em volta. Pela linhagem de seu sobrinho Josafá, será concebido Galaad.

    A ordem misteriosa dos Templeisen é encarregada de guardar essa pedra; Parsifal sucederá a seu tio Anfortas. Le nouveau Titurel — poema de seis mil duzentas e sete estrofes — atribuído a Albreht de Scharpfenberc (por volta de 1280), adapta para o alemão a história de Merlin conforme Robert de Boron. A base mística do conto se desenvolve; Montsalvage, lugar santo, seria Montségur na França ou Montserrat na Espanha.

    c) Robert de Boron — O Saint-Graal ou Joseph d’Arimathie é uma narrativa curta, de três mil quinhentos e catorze versos e baseada em narrativas apócrifas. — A lenda de José alcançou grande celebridade em Lorraine. Depois do verso 2.357 o autor dá livre curso à sua fantasia. Esse romance que recebeu a influência das abadias de Fécamp e de Glastonbury e por meio delas, de Gautier Map, foi composto entre 1212-1214 (F. Lot, Romania, 1931; Hoepffner, Lumière du Graal, 1951). Eugene Hucher (1875), Suchier (1892) procuraram a origem de Robert de Boron; de anglo-normando passou-se a considerá-lo atualmente franco-condado.

    O grande mérito de Boron é haver transformado a lenda fazendo do Graal um símbolo da divina graça a qual aspira a alma humana. A tendência é ascética e corresponde ao ideal monástico cisterciense.

    Parsifal em prosa também é atribuído a esse poeta e é conhecido por Didot-Parsifal.

    d) Gautier Map. A demanda do Santo Graal — La queste del Saint-Graal, atribuída d Gautier Map, teria sido composta entre 1225-1230. Os estudos de Pauphilet (Étude sur la queste, Champion, 1921) de Etienne Gilson (Romania, L. I. 1925; Vrin, 1932) iam provar a influência cisterciense, a doutrina mística de São Bernardo e estabelecer uma relação com Robert de Boron. Parsifal é substituído pelo cavaleiro casto Galaad, messias arturiano. O Graal torna-se o símbolo de Deus. Neste “evangelho aventuroso” (Pauphilet), a exploração terrestre termina com a descoberta de uma revelação planetária. Obra espiritual, é a história de uma alma à procura de Deus. Esse conhecimento, com suas divulgações habilmente graduadas, conduz à humildade, à contemplação e à compreensão. A suprema beatitude, o êxtase levam Galaad para o céu. A Demanda que se ergue veementemente contra o assassínio, as festas cavaleirescas e os torneios, transformou o cortejo tradicional num ofício religioso; o Santo Graal se desloca pela força invisível de Deus e a missa celebrada em Corbenye é dita por Josephes, o primeiro bispo.

    Gauvin é a imagem do mau cavaleiro. É assim que o Lancelot en prose (Lancelote em prosa) imporá duras provas a este cavaleiro falho de fé; o mesmo se dá com Bohort.

    Lancelote, considerado como o melhor dos cavaleiros, não pode tampouco triunfar. Suas aventuras galantes, seu amor sacrílego pela rainha tornam-no indigno dessa conquista bem sucedida pelo seu filho Galaad, descendente de José de Arimatéia por sua mãe. Esse puro entre os puros termina essa busca do infinito.

    Aí está a busca da perfeição terrestre onde os desejos humanos são satisfeitos:

    e) Perlesvaus — Perlesvaux, atribuído a Manessier (1225-1230) conta a aventura de Parsifal conforme o poema de Chrétien. Sob a influência dos monges de Cluny — esta obra — de menos valor do que a Queste — interpreta pela primeira vez a mística do sangue divino: o sangue da lança escorre dentro do Santo Graal. Enfim o silêncio do neófito é explicado aqui pelo seu êxtase no momento da passagem dos objetos sagrados.

    3. — Sucessão literária

    O ciclo bretão é novamente trazido à moda no século XVIII pelo conde de Tressan. O entusiasmo romântico dele se apodera; Wagner o difunde com suas preocupações metafísicas. Paulin Paris decifra os textos; Gast on Paris os confronta. Oscar Summer estabelece uma notável compilação: La vulgate Lancelot (Washington, 1909); Douglas Bruce estabelece a bibliografia (The evolution of Arthurian Romance, Baltimore, 1923), completada pelos cuidados da Sociedade internacional arturiana que reside em Paris. As grandes universidades americanas publicam interessantes trabalhos.

    Georges Burectud (Lumière du Graal, 1951) estabelece um paralelo entre D. Quixote e o tema do cavaleiro santo, mas sua comparação entre o Graal e a Divina Garrafa do Pantagruel de Rabelais me parece mais engenhosa. O segredo supremo do “Vin de Verité” (Vinho da verdade) assemelha-se ao sangue universal; a Santa Fonte que corre conforme a curva de uma espiral logarítmica (movimento da vida que se enrosca), fornece o vinho desejado e mergulha o conviva num delírio báquico próximo ao arrebatamento.

    Georges Bureaud descobre ainda esse tema em Milosz nos seus poemas dogmáticos e metafísicos do Sangue universal (Ars Magna, Arcanes); e na obra de Péladan, Léon Bloy, Péguy o no Château d’Argol de Julien Gracq.

    4. — Origem

    A origem da lenda tem muitas controvérsias. A Matéria da Bretanha é para uns insular (Gaston Paris, Histoire Littéraire de la France, t. XXX). Os celtistas alemães refutam a transmissão dos temas arturianos por via anglo-normanda e Zimmer se pronuncia a favor de uma origem armórica e não galesa. Esse sistema é prosseguido por Foerster e Brugger, contestado por. F. Lot (Romania, XXIV, XXVIII) e por Loth (Kritischer Jahrest bericht, I, 271). Vendryes encontra nesses temas uma sobrevivência da literatura céltica (Cahiers do Sud); Max Gilbert e principalmente Jean Marx (La légende arthurienne), mostram que a contribuição da Bretanha armórica foi muito pobre mas que a literatura galesa introduziu temas admiráveis. Jean Marx escreveu: “Essa lenda arturiana de origem pagã e profana ia, de início, sob influências certamente inglesas (Glastonbury), e em seguida francesas (Clairvaux) tomar uma tonalidade cada vez mais cristã.”

    Blochet (Les sources orientales de la Divine Comédie (1901) (As fontes orientais da Divina Comédia), mostrava a civilização preponderante da Irlanda que conhecia Bizâncio por intermédio das repúblicas italianas.

    Todavia, outros pontos permanecem litigiosos: as relações entre as obras, a data em que foram feitas, o autor. Apesar do minucioso estudo dos dezesseis manuscritos conservados sobre o Graal, essas questões parecem insolúveis.

    5. — Interpretações

    Apesar de Jean Blondel haver escrito: “Li conte de Brétaigne sont si vain et plaisant”, parece que esses mitos exprimem verdades veladas assimiláveis pelo iniciado. Sentimos, na obra literária, surdirem outras interpretações.

    a) Interpretações astrológicas e naturistas — Wolfram preocupava-se com a astrologia. Ora, o nome de Artur seria oriundo de Arthos, isto é, “ours” (Ursa) no simbolismo astrológico da constelação polar. Esse palácio astrológico torna-se o centro do mundo e Guénon (Le roi du monde, 1927), imagina os doze signos zodíacos que gravitam em torno do sol como os doze cavaleiros que rodeiam Artur. Saint-Yves evoca a zona zodíaca; nela Lotus Péralté encontra os princípios druídicos de Crom-Lek. Loomis, diante das esculturas da catedral de Modena, evoca também a teoria solar.

    Miss Jessy L. Weston (Cambridge, 1920) insiste sobre o aspecto ritualista e liga ao vegetal uma interpretação pelos órgãos genitais. Observou que os ferimentos atingem as partes viris do rei.

    b) interpretações tiradas de fontes orientais — Georges Dottin aponta na literatura irlandesa, motivos tirados da literatura grega e na sucessão das provas aproxima-se das narrativas hindus. Hannah Closs (Lumière du Graal) pensa na lenda de Bagavata Purana. Baseando-se no edifício circular e irradiante que é o Templo do Graal, pensamos na arquitetura dos templários idêntica à das igrejas armênias e à dos templos iranianos.

    Otto Rahn localiza o castelo Aventureux em Montségur — outros em Glastonbury — e Hannah Closs, pela descoberta de cerâmicas que aí se fez, pensa no maniqueísmo. Guénon, (Le roi du monde) estabelece relação entre o Sangue Divino — beberagem da imortalidade — e o Soma dos hindus ou o Haoma dos persas; depois compara a esmeralda caída da fronte de Lúcifer — que tornou-se a taça — a Urna, pérola frontal e terceiro olho de Civa.

    Chrétien menciona o gavião, representação oculta da consciência; ora, o gavião simboliza o grande Horo egípcio.

    Finalmente, como na fábula antiga, os animais exprimem as paixões dos homens, e a cada animal liga-se um simbolismo.

    c) Interpretação religiosa — Essa obra mística tornou-se finalmente a glorificação do sacramento eucarístico. Os evangelhos apócrifos vindos de Bizâncio — e principalmente o Apocalipse, apontam esse tema (observemos os algarismos rituais 3, 7, 12 e a cor branca). O homem se liberta da fatalidade antiga e prostra-se diante do mistério da redenção. Chrétien considera os acontecimentos históricos (transporte da galheta com o Santo-Sangue a Bruges por Thierry d’Alsace; descoberta da Santa-Lança em Antioquia.); a carne se submete à alma e a alma, ao espírito. O herói da Queste — primeiro livro filosófico — seria a representação mística do Cristo. Mas Jean Marx (La légende arthurierine) mostra que a igreja não adotou a aventura do Graal que continua sendo obra de um sacristão inspirado pela doutrina espiritual de São Bernardo. Se a Igreja se houvesse apoderado dessa lenda, os textos teriam sido conservados nos mosteiros; mas guardados nas bibliotecas dos nobres, perderam-se em parte. A Igreja, lembrando-se dessa origem pagã, não lhe deu muito lugar na representação artística. Otto Rahn (Croisade contre le Graal (Cruzada contra o Graal), Stock conclui que foi contra o Graal que se mobilizou a cruz por ocasião da cruzada albigense.

    Lotus Péralté (L’ésotérisme de Parsifal (O esoterismo de Parsifal, Perrin, 1914), diz que o princípio druídico é visível na Queste. Todavia, ignora-se quase tudo sobre as grandes comunidades visitadas por São Patrício no século IV, ficando o país de Gales ao abrigo das influências estrangeiras. O prolongamento do druidismo foi encontrado no século XII na igreja culdeana e seu ensinamento é básico na instituição da igreja de Roma.

    d) Interpretação esotérica

    1) Generalidades — Valores esotéricos e iniciáticos podem se sobrepor ao sentido exterior. René Guenon (Esotérisme du Graal (Esoterismo do Graal) observa que esse simbolismo é disfarçado e que as dúvidas, as contradições aparentes têm talvez por objetivo desviar a atenção dos profanos. Teriam sido os autores iniciados? Não saberíamos responder; mas a organização iniciática presente — druídica e depois cristã — não quis que a lenda se tornasse um ritual de iniciação ou de vulgarização. A perda do Graal parece ser o obscurecimento do centro espiritual secundário e a iniciação deve fazer com que seja encontrado.

    Victor-Emile Michelet: Les secrets de la chevalerie (Os segredos da cavalaria, Bosse, 1928), busca o simbolismo na forma da Távola redonda com os druidas, quadrada com José de Arimatéia, o arcano subsiste para a da Ceia que Leonardo da Vinci representou sob a forma de um retângulo oblongo. Percebe-se um significado nesses símbolos e pensa-se em Gauvain que leva o pentáculo do Tarot. A cor preta na indumentária de certos cavaleiros isenta-os de uma influência malsã; é o pentáculo mágico.

    A Igreja esotérica revela dessa forma um dos aspectos da sua face interior, o esoterismo. Esses caracteres encontram-se em Dante e no Romance da rosa.

    2) 0 centro supremo — Para Guénon (Le roi du monde (O rei do mundo, 1927), Graal quer dizer ao mesmo tempo vaso (grasale) e livro (gradale ou graduale); Monsalvat — o monte da Salvação — ilha sagrada ou montanha polar, terra da imortalidade que se identifica com o Paraíso Terrestre. A lança torna-se o eixo do mundo e o sangue que dela provém é o orvalho que se emana da Árvore da Vida. Artur é raptado em Avallon, ilha hiperbórea, sede da realeza e da dinastia dos padres Jean; esse Paraíso Terrestre é ainda, simbolicamente, designado pela Índia.

    Julius Evola diz que o país do Graal não é a Inglaterra mas sim o centro nórdico primordial, Thulé. Evola pensa também na ordem dos Templários, cujos últimos representantes, os Rosa-Cruz, conservam o mito da citadela solar.

    Guénon imagina a representação do centro do mundo no princípio central de Omphalos e que é também o centro de uma roda. Sua representação material continua a ser a pedra sagrada — o menir — para os celtas — morada da Divindade. A Irlanda fornece grande número de dados relativos a Omphalos. Guénon, observa, enfim, a equivalência simbólica existente entre o crescente, o navio e a taça; eis porque o Graal é designado pelo nome de Santo Vaso.

    3) 0 poder oculto do sangue — Chrétien teria pretendido traduzir exotericamente uma lenda esotérica na qual o sangue continua a ser um poder oculto excelente pela sua figuração misteriosa. Base de todo o princípio vital é o arcano da profecia, da evocação, dos batismos em certos mistérios. Marca a descendência hereditária e pelo seu princípio racial a desigualdade no casamento, o adultério, são punidos com a morte. Essa pureza de sangue é a virtude do indivíduo, do clã, da nação, da raça.

    Para Chrétien, o sangue sublinha a alvura do cisne moribundo, esse cisne, símbolo da pureza, que está no limiar da primeira iniciação. O sangue está ainda presente no ferimento do rei pecador: leva em si todos os desejos violentos da carne. O problema do sangue, licor solar, força impulsiva, vontade cósmica foi mencionado por Théophile Briant (Le Goéland, dez. 1953). Mas talvez seja também a sede da alma. A presença do arcano nas cerimônias religiosas é a base dessa demanda do Graal que continua válida para todos nós. 4) 0 rito da iniciação — Elie Lebasquais (Études traditionnelles, 1939), é de opinião que A demanda do Santo Graal, Fausto, Rolando, são rituais de iniciação da mesma categoria que O Pequeno Polegar. O herói, para chegar ao estado superior, busca um personagem, um tesouro ou um objeto mágico. No simbolismo de Hiram, três mestres procuram os restos do Grande Arquiteto. Esses ritos proviriam “de tradições antigas, de formas tradicionais desaparecidas, conservadas pela memória coletiva mais ou menos subconsciente do povo” (Guenon). Essa iniciação visaria aqui a conquista de estados sobre-humanos.

    5) A alquimia e a cavalaria — Na linguagem secreta a pedra filosofal representa a salvação; o ouro nada mais é do que o hieróglifo da espiritualidade e das forças psíquicas de Deus. A demanda é então uma busca semelhante à dos alquimistas que eram filósofos herméticos; citemos Alberto, o Grande, Roger Bacon, São Tomás de Aquino, Nicolas Flamel.

    O arcano é a base da ordem da cavalaria — que deu origem ao companheirismo operário — e à arte heráldica. “O brasão é a chave da história da França”, diz Gérard de Nerval. Nessa cavalaria histórica, os Templários foram os guardiães do Baphomet; os cavaleiros errantes eram atacados pelos dragões, símbolos do guarda da entrada, ou pelo leão animal solar, alegoria da paixão interior. O alquimismo é a conseqüência final dessa cavalaria mágica e essa viagem de aventuras de uma epopéia religiosa e científica é a mesma que a da Demanda do Santo Graal.

    II. - Merlin
    Personagem lendário, Merlin — em céltico Myrddhin, em armoricano Marzin — foi poeta, profeta e mágico. Companheiro do rei Artur, estabeleceu a Távola redonda e seu nome fica ligado à demanda do Santo Graal.

    1. — Textos literários

    a) A crônica latina — Na Crônica latina, atribuída a Mônio (fim do século X), vê-se o rei bretão Wortingem abandonado pelos seus devido à sua crueldade. Desejoso de uma fortaleza que não pudesse ser tomada, os mágicos aconselham-no a regar o solo com o sangue de uma criança nascida sem pai. Merlin — nomeado Ambrósio — confunde o rei com suas respostas proféticas e salva assim a sua vida.

    b) Geoffroy de Monmouth — Em aproximadamente 1135 Geoffroy de Monmouth dá um caráter cavaleiresco, cortês e histórico à lenda de Mênio. A pedido de Alexandre, bispo de Lincoln, redige as Profecias (Atribuídas a Merlin) e depois a Vita Merlini.

    c) Robert de Boron — Esse autor inclui o nome de Merlin à lenda do Graal. Sua trilogia comporta um poema sobre Merlin que institui a Ordem da Távola redonda (Brut de Wace mencionava a Távola redonda em 1155). Merlin é o herói de uma epopéia espiritual.

    d) Os continuadores — O simbolismo desaparece e a profecia torna-se um meio literário. Merlin aparece em numerosos romances (Claris et Loris). O Ariosto, Cervantes (Don Quixote, II, 21), Rabelais, Shakespeare (O rei Lear, III, 11), observam esse personagem que inspirou Gluck (A ilha de Merlin, Viena, 1758). Para K. L. Immermann (Merlin, 1832) é um Fausto cristão; Heine por ele se interessa (1835) bem como Tennyson (Vivien, 1859, 0 Santo Graal, 1870), e Edgar Quinet (Merlin l’enchanteur, 1860). Apollinaire escreveu L’enchanteur pourrissant (1909), Cocteau, Les chevaliers de la Table ronde e Aragon Brocêliande (Cahiers du Rhône, 1942). Contudo, a lenda de Merlin parece estar a caminho da extinção.

    e) As críticas — Depois dos estudos de Bâle (1559), Buchanan (1590), David Powel (1603), é preciso esperar a de Walter Scott (1638) para tocar realmente o assunto (The Ministrelsy). Francisque Michel e Thomas Wright (1837), tentaram uma síntese crítica. Depois de Saint-Aignan (1921), de Eschevannés (1935), Paul Zumthor apresentou, em 1943, uma tese à Universidade de Genebra com uma bibliografia muito completa.

    2. — Símbolo da lenda

    a) Origem de Merlin — O nascimento desse Proteu da Idade Média é muito obscuro. De acordo com Robert Boron, o diabo seduziu uma virgem; Merlin, com sua palavra eloqüente faz com que sua mãe, tornada responsável por esse estranho nascimento, seja absolvida. Eis a lenda de Ambrósio cujo tema é o de Robert de diable.

    Para La Villemarqué a mãe de Merlin teria sido uma princesa que, penetrando num bosque atraída pelo canto de um pássaro, adormeceu e a criança que nascerá de modo tão sobrenatural e poético, falará imediatamente. Supõe-se também que seja um personagem real, um burdo galês ou da Cornualha do século VI; ou um deus gaulês, parente de Mercúrio, Merddyn cujo nome vem da raiz Mercs encontrada em Mercúrio.

    b) A ação de Merlin — Mestre do Heptacórdio formulou as regras que regiam os cavaleiros da Távola redonda; dirige as batalhas e sua harpa encanta os poderes hostis; comanda os demônios, encanta as fadas.

    O episódio mais dramático continua a ser o do seu amor por Viviana. Todo-poderoso, deseja que essa mulher o procure livremente; mas o temor de Viviana torna-se odioso. Merlin transformou-se no profeta vencido pelo amor e o encantamento feminino.

    c) Evolução do personagem — Profeta, Merlin não é o mestre de uma alquimia misteriosa; torna-se a seguir o fascinador. O papel de Merlin ao lado dos cavaleiros arturianos permanece, entretanto, episódico. Seu simbolismo corresponde às nossas exigências pessoais e finalmente nada mais é do que uma significação poética.

    III. — Tristão e Isolda
    Esse par imortal influenciou inúmeros episódios do ciclo arturiano. É a epopéia do amor que se prolonga além da morte.

    1. — O tema

    Tristão de Loonois é criado por seu tio Marc, rei da Cornualha. Ferido pela espada envenenada do Morhout da Irlanda, a quem mata, Tristão se faz tratar pela irmã do monstro, a rainha da Irlanda, cuja filha é Isolda. Mais tarde, em nome de seu tio, Tristão pede a mão de Isolda e dessa forma reconcilia os dois países inimigos. Porém, durante a travessia, os dois jovens bebem um filtro de amor. Unidos pela paixão, traídos pelos que os circundavam, banidos por Marc, os dois amantes vivem na floresta de Morois; o rei perdoa-os; Tristão deixa Cornualha e esposa uma segunda Isolda. Ferido, pede à sua loura amiga para tratá-lo: um véu branco anunciará sua chegada, um véu preto sua recusa. A segunda Isolda, por ciúmes anuncia um véu preto. Tristão morre. Isolda chega e sucumbe ao lado do seu amante. O rei Marc, conhecendo a causa de sua paixão, perdoa e honra a sua memória. A loucura de Tristão é um episódio desse tema e a síntese do romance. Tristão, disfarçado em louco, quer rever Isolda. As alusões feitas aos seus amores são ousadas e formam um resumo assaz rico da lenda; a evocação de suas aventuras é a parte essencial do poema.

    2. — As fontes

    Os romances de Chrétien de Troyes e de La Chèvre não chegaram até nós. O texto de Béroul (1165-1170) conserva quatro mil, quatrocentos e oitenta e cinco versos (publicados por Muret, 1904 — manuscrito de Beme); o manuscrito do anglo-normando Thomas tem só três mil, cento e quarenta e quatro versos (dos dezenove mil) (publicados por. J. Bédier, 1903 e 1905; manuscrito de Oxford).

    A loucura de Tristão (manuscrito de Oxford) acompanha de muito perto o poema de Thomas (tradução de Joseph Bédier, 1907). Os poemas de Eilhart d’Oberg e de Godofredo de Estrasburgo, os mil e quinhentos versos de um anônimo permitem a reconstituição desse conjunto.

    Para André Mary (Tristan, N. R. F., 1941), a obra seria proveniente de jovens sacristãos letrados de língua francesa, que conheciam as lendas da Grécia (Teseu, o rei Midas) e que tinham lido Ovídio e Virgílio Pode-se discernir o elemento mítico no maravilhoso do filtro e na natureza do herói vencedor de monstros. Esse tema se encontra na Irlanda e Joseph Loth está inclinado por uma versão galesa.

    3. — A obra literária

    Godofredo de Estrasburqo prosseguiu o tema de Thomas e influenciou Friberg. Hans Sachs, dele tirou sua tragédia (1553). 0 conde de Tressan recolhe a lenda no século XVIII e os românticos o enalteceram. Schlegel (1800), Rückert (1839); Walter Scott (1811), Immermann (1839) compuseram poemas. Hermann Kurtz (1844) e depois Simrock (1855) estabelecem em alemão moderno o texto de Godofredo — Hertz completa essa tradução com a análise do texto de Thomas. Francisque Michel reúne os textos ingleses e normandos.

    O drama musical de Wagner escrito entre 1857. e 1859 é interpretado em Munique em 1869 e em Paris em 1899. 0 assunto ainda é encontrado com Joseph Weilen (Breslau, 1860), L Schneegans (Leipzig, 1865), Carl Robert (Berlim, 1871) ou no Le lai du chèvrefeuille de Marie de France.

    O filme de Cocteau (L’éternel retour) pela beleza estática de suas imagens lembra os Visiteurs du soir de Carné no qual o amor de duas criaturas triunfará das ciladas e da ira do diabo.

    4. — Sobre alguns amantes eternos

    Vem-nos à memória Romeu e Julieta, Dafne e Cloé, Paulo e Virginia, Manon e o cavaleiro dos Grieux, Fedro e Hipólito. Porém as desgraças de um par bem real, Heloísa e Abelardo são ainda mais tristes.

    5. — Simbolismo da lenda

    Isolda permanece virgem no adultério; engana o bom rei sem remorso aparente e essa mulher, apesar de tudo, continua simpática. Vemos com indulgência esses amantes que, mais do que os outros, são submetidos à fatalidade. As páginas que relatam seus amores reprováveis tornam-se assim patéticas. A simplicidade primitiva do conto eleva, acima de todas as leis, essa epopéia do amor.

    A velha magia céltica está presente nesse filtro que implica a fatalidade do amor e cria esse liame misteriosamente indissolúvel. O amor, essa polaridade magnética — polaridade devida a Deus, pois Eva, o superior feminino, vem de Adão andrógino e é “sua sensibilidade volitiva” o que significa a separação do ente em dois pólos, o negativo e positivo — explica-se pelos efeitos da bebida. Porém Jean Marx (La légende arthurienne) vê em tudo isso a representação do “geis” imposto pela mulher ao seu apaixonado. Eis a razão por que essa lenda está sujeita ao fatalismo e à melancolia.

    Em conclusão, o ciclo arturiano com sua maravilhosa Demanda do Santo Graal é a confirmação de um longo itinerário poético e espiritual. O esoterismo do Graal é inegável, e se revela nessa transmutacão de uma fábula predestinada num símbolo cristão. Exegese teológica e mística, esse tributo medieval é rico em ensinamentos e nunca morrerá, pois sempre surgirão dele novas interpretações.


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    CAPÍTULO V
    O MARAVILHOSO DA LENDA


    I — Gargântua
    Gargântua evoca Rabelais. Contudo Eloi Johanneau (Variorum, t. I, pág. 37), Ph. Chasles (Tableau de la littérature française, 1829), J. Grimm (Mythologie allemande, 1837), pensam numa tradição antiga. Rabelais criou um herói nacional cujo nome expressivo tornou-se uma imagem popular.

    1. — Origem

    H. Gaidoz (Revue archéologique, set. de 1868), baseando-se na radical da palavra — gar — vê nessa radical uma divindade; o deus da luz Garuda ter-se-ia tornado o Hércules gaulês. Esse principio druídico estaria ainda presente no seu culto das pedras.

    Porém os gigantes são conhecidos; e o nome de Gargântua figura na Légende de maistre Pierre Paileu de Charles Bourdigné (1526). Tiel Ulespiègle legou a palavra “espiègle” mas esse farsante insípido e sem espírito, comparado com Panurge, não tem nem a sua sutileza nem a dicacidado. Rabelais teria se inspirado na Histoire maccaronique de Merlin Cocaie (História macarrônica de Merlin Cocaie). Com efeito, o episódio dos carneiros é também encontrado no primeiro.

    2. — Os gigantes.

    Como os elfos, os anãos ou os ciclopes, os gigantes são a personificação dos grandes fenômenos (furacões. estações, geadas...); quase deuses: Thrym rouba o martelo do deus Thor; Mimir, o gigante das águas, aconselha Odin. São entes poderosos: Egir é o senhor dos mares e sua esposa Ran captura os navegadores.

    Para a Igreja católica, o gigante substitui o diabo. Em 1100 os elementos pagãos e cristãos se misturam; o povo aceita o cristianismo sem contudo rejeitar as crenças tradicionais. E desta forma que Geoffroi de Monmouth faz evoluir Gurgunt em sua epopéia bretã retomada por Wace (Roman de Brut, 1155).

    3. — A obra de Rabelais

    Depois do êxito das Grandes et inestimables chroniques de l’énorme géant Gargantua (Grandes e inestimáveis crônicas do enorme gigante Gargântua) (1532) — devidas talvez a Billon d’Issoudun — Rabelais edita Les horribles et épouvantables faíts et prouesses du très renommé Pantagruel (Os horríveis e espantosos feitos e proezas do mui renomado Pantagruel) na editora Claude Nourry, conhecido por Le Prince (3 nov., 1532); o livro é assinado Alcofribas Nosier; o Almanach pantagrueline pronostication aparece em 1533 (Lião, François Juste).

    A Faculdade de Teologia condena o Pantagruel em 23 de outubro de 1533. Porém, Rabelais, como médico, acompanha o bispo de Paris, Jean de Bellay, que parte para Roma onde vai pleitear os interesses de Henrique VIII excomungado por haver esposado Ana Bolena (1534). Com essa proteção Rabelais publica, em 1534, seu Gargântua (edição definitiva, 1542, Lião, François Juste). Le tiers livre (1546), de gosto mais rebuscado, expõe a questão do casamento, Le quart livre (Lião, 1549) narra as buscas da “Dive Bouteille”. e da passagem do Noroeste.

    4. — Valor dessa obra

    Os romances de Rabelais tiveram imensa popularidade. São os livros de um erudito que, de maneira divertida, num estilo falado, contêm alusões políticas e religiosas. Gargântua é um preito em favor do Renascimento e da Reforma. Apesar de Rabelais ser prudente, de pregar sem falar demais, percebe-se nele o pensamento de Erasmo, célebre pelo seu Institution du prince chrétien. Rabelais também foi um iniciado.

    Saulnier (Mercure de France, 1-4-1954) mostrou que essa filosofia do beber era o símbolo de uma busca da sabedoria. O festim perante Chaneph é erguido com alusões à Ceia e faz pensar na Comunhão Eucarística.

    Les grandes et inestimables chroniques (1532) teriam inspirado Rabelais. Ora, nelas encontramos novamente o mágico Merlin, que dá origem aos pais de Gargântua, futuro servidor do rei Artur. É talvez aí que se deve buscar a analogia que notamos entre a busca da “Dive Bouteille” e alguns episódios do Santo Graal.

    Na verdade a obra de Rabelais, de intenção evangélica, continua profundamente esotérica com seu simbolismo aparente.

    5. — A sucessão literária

    Rabelais foi muito imitado. Os livros transportados pelos bufarinheiros referem-se, em geral, às Grandes e inestimables chroniques de 1532: é o caso de Deckherr em Montbéliard, de Placé em Tours, de Pellerin em Epinal ou de Oudot em Troyes.

    Mas Gargântua — denominado também o Judeu Errante — passeou por todas as regiões. Modelou o solo, formando lagos, córregos e deixando montes de lodo que são verdadeiras montanhas. Uma crônica do século XVI diz que ele “a engendré le fleuve du rosne en pissant trois mois, six jours, treize heures trois quarts et deux minutes”. Essa geografia gargantuesca foi notada por A. Van Genned em Le folklore de Bourgogne, 1934; (0 folclore de Borgonha) por Sébilot (Les Traditions populaires, 1883) (As tradições populares), e por Carnoy (Contes français, 1885).

    6. — Conclusão

    Rabelais, fiel à tradição das crônicas de gigantes, soube exprimir, entre suas invenções burlescas, idéias novas e profundas. Não temeu opor-se à ordem estabelecida e traçou um programa de vida no qual o humanismo evangélico ocupa um lugar preponderante.

    II. — O Judeu Errante
    O judeu Isaac Lequedem da tribo de Levi, denominado também Ahasvero — Sapateiro — recusou qualquer socorro a Jesus supliciado. Por essa falta de caridade, caminhará até o juízo final conforme a maldição divina.

    1. — Criação literária

    Em 1228, um arcebispo da Grande Armênia, ao visitar o mosteiro de Saint-Alban, narrou a lenda de José — ou Cartafilo — porteiro do pretório, que bateu em Jesus e foi condenado a esperar a volta do Senhor. Caindo, de cem em cem anos, em letargia, recupera sua aparência corporal do tempo da paixão (trinta anos). O arcebispo diz ter almoçado com José. Mathieu Paris, recolhe a lenda e registra-a, em 1252, na sua História Major; Philippe Mousket, bispo de Tournai, menciona o mesmo episódio na sua Chronique rimée (em aproximadamente 1243).

    Entretanto, essa lenda não aparece no folclore armênio.

    Gaston Paris (Légendes du Moyen Age, 1912), observa que Cartafilo devia ser romano e não judeu pois que foi empregado por Pilatos.

    A. d’Ancona mostrou (Romania, t. X e XII) que o personagem obsedava a imaginação da Idade Média.

    2. — Evolução da lenda

    Uma carta em alemão, datada de 29 de junho de 1564 afirma que Paul d’Eitzen, doutor em teologia e bispo de Scheleszving, encontrou o Judeu errante em Hamburgo em 1542. 0 redator alemão, protestante, teve que se servir desse nome para autentificar uma narração lendária. A narração de Chrysostornus Duduloeus Westphalus (Leyde, 1602), teve numerosas reedições.

    Em 1575 esse erradio é encontrado na Espanha; apresenta-se aos Magistrados de Estrasburgo; Pierre Louvet o vê em Beauvais (1614). 0 advogado Bouthrays, na Histoire de son temps (t. II, XI, 1604), observa que — toda a Europa se — ocupa com esse personagem que inspira as artes. Depois da .publicação em Bordéus dos Discours du véritable Juif Errant (Discursos do verdadeiro Judeu Errante) (1609), as cartas de Prétendu Espion Turc (Pretenso espião turco) torna-se Michob-Ader (Paris, 1680).

    3. — Origem literária

    Gaston Paris pensa em Caim, o erradio fugitivo, em Samiri que foi condenado por Moisés a caminhar sem descanso por ter adorado um bezerro de ouro. Malc, que esbofeteou o Cristo com sua luva de ferro e gira em torno de uma coluna até o juízo final. Mas a lenda mais notável parece ser a de Jean Boutedieu, conhecida pelas cruzadas estabelecidas na Síria. É encontrada nos mistérios provençais, na canção de gesta de Fierabras (Ferrabras) na qual o leproso Marcos bate Jesus e na Espanha sob o nome de Juan Espera-en-Dios. Philippe de Novare anotou-o no seu Livre en forme de plait (1250).

    4. — Evolução do personagem

    Discípulo bem-amado ou culpado? São João, bem como José de Arimatéia são imortais e entretanto o cristão espera apenas a graça do céu. A vida tranqüila de Cartafilo sucede a vida errante de Ahasvero. Mas o erradio pára nas vilas, professa, toma assento à mesa de Paul d’Eitzen. Esses dois homens são tão diferentes que Droschen (Iena, 1668), Frantzel e uma brochura de 1645 são de opinião de que existem dois testemunhos da paixão.

    Porém, em aproximadamente 1800, o judeu errante não pode mais parar; possui apenas 5 soldos no bolso que se renovam à medida que os vai gastando. É um timorato. Goethe pensa em tratar dessa lenda, mas Fausto, que também pode renascer, é muito mais humano.

    5. — A sucessão literária

    Depois das obras anônimas, as edições tais como La chanson de Béranger, a ópera de Scribe e Saint-Georges com a música de Halevy. Gérard de Ner vai traduziu Schubart numa meditação filosófica.

    Gustave Doré firma esse personagem que permite a Eugene Sue compor o primeiro romance-folhetim. Mélies, em 1904, consagra-lhe uma curta metragem cinematográfica e histórica; lendas relativas à Paixão encontram-se intercaladas nessa obra. Daí as obras de Edgard Quinet (Ahasverus, 1834), de Ed. Fleg (Albin Michel, 1953), de Alexandre Arnoux (Carnet de route du Juif Errant, Grosset, 1931). Depois deste livro vibrante t’Serstevens criou seu encontro com D. Juan (La Légende de Don Juan, Gonet, 1946); num diálogo cintilante D. Juan torna-se o Judeu errante do amor. J. C. Cordeau (Ahasverus, Jouve, 1951) observa os simuladores que vão do desertor (Léopold Delporte, 26 de maio de 1623), aos impostores, tais como o conde de Saint-Germain ou Cagliostro. Outros homens, seguindo a convocação geral do ano 1000, já haviam endossado essa personalidade.

    6. — Conclusão

    O Judeu Errante talvez tenha nascido da imaginação popular. Todavia, o castigo parece desmesurado em relação ao ato e dificilmente se compreende o rigor de Jesus que sabia perdoar. A lenda pode personificar a nação judaica que deve viver entre os outros povos depois da destruição de Jerusalém por Tito. Pode ser o emblema da humanidade que caminha continuamente para um fim imprevisto. É a alegoria da guerra; a explicação mitológica transforma-a no vento que a conduz. É também um tema protestante, um testemunho certo que fortalece a fé, um testemunho em favor da veracidade dos fatos narrados nos Evangelhos, que combate o mito cristão.

    A lenda permite aos autores traçar o quadro dos usos e costumes de cada país por onde passa; ou contar a História Sagrada. Porém, o personagem, vencido por seu erro, não goza das alegrias mortais, as únicas alegrias que poderiam lhe ter criado na obra literária um lugar de destaque.

    III. Roberto, o diabo
    Este belo e doloroso conto da Idade Média francesa canta a esperança de cada homem: qualquer, que seja o grau de nossos pecados, podemos encontrar o caminho da salvação. Roberto, esse ser abjeto e amaldiçoado, torna-se um santo. Obra de moralização e de encanto, sua ação rápida, alerta, acentua os caracteres da cavalaria.

    1. — O assunto

    Roberto nasce sob uma influência infernal. Sua adolescência é marcada pelos seus atos de crueldade; porém, ao saber do segredo do seu nascimento, quer expiar-se. Em Roma, num recanto do palácio do imperador, imita um louco e come com os cães. Porém, quando os sarracenos devastam a região, Roberto, com autorização celeste, combate e expulsa o invasor.

    Depois, no anonimato, retoma o seu lugar de truão. Três anos mais tarde seu feito glorioso se repete e a identidade do “cavaleiro branco” se desvenda; a princesa encontra novamente a palavra para glorificar Roberto que, fugindo às honras, se retira do mundo.

    2. — Os manuscritos

    Um antigo poema de duzentas e quarenta estrofes monorrimas de quatro versos datando do século XIII foi retomado por G. S. Trébutien (Silvestre, Paris, 1837). Outro manuscrito do século XIV (ou começo do século XV) recebeu os cuidados atenciosos de E. Loseth (1903).

    3. — As fontes

    a) Literárias — Um texto em latim — de Etienne de Bourbon, dominicano do século XIII, publicado por Lecoy de la Marche (1877) retoma o mesmo tema, bem como uma redação em alemão do século XV. Um regato atravessa o quarto da princesa: imaginamos o quarto de Isolda.

    Este assunto se repete nos Mistérios de Nostradamus (ll.o milagre) e no Roman de Robert, le Dyable, manuscrito de La Vallière, n.o 80 (edição Frère, Ruão, 1836). Mas “Un miracle de Nostre-Dame d’un enfant qui fu donné au dyable, quand il fu engendré” (33o. milagre de Gautier de Coincy) é publicado pelo padre Poquet (1857; Frère, Ruão, 1836) e Petit de Julleville (t. 149; t. II, 310) contêm textos análogos; Paulin Paris ocupa-se do “Miracle d’un enfant que sa mere donna ao diable à l’eure que son père l’engendra et qui fut porté en enfer”. Mágicos presidiram também a esse nascimento: este tema de iniciação é estudado nos temas do conto de Barba Azul.

    b) Histórico — Nas Chroniques de Normandie pretendeu-se atribuir a paternidade de Roberto, o Diabo, a Aubert, duque e governador, da Normândia no tempo de Pépin le Bref; depois foi Robert Courteheuse, filho de Guilherme; o Conquistador, que teve morte gloriosa em 1134, durante a primeira cruzada. Outros viram nesse personagem o pai de Guilherme, o Conquistador, Roberto, o Magnífico (1035).

    Na verdade Roberto, o Diabo, parece ser uma criação. É o tipo do príncipe salteador da Idade Média.

    4. — Sucessão literária

    Se Liebrecht (zur, Volkskunde) vê nessa lenda a adaptação eclesiástica de um velho conto popular pertencente ao grupo do “Teigneux”, Borinski pensa em Robert Guiscard.

    Realmente, muitas vezes o demônio se interessa pelas crianças para delas fazer suas criaturas. Guillaume d’Orange, as lendas alemãs de Orendel e de Wolf Dietrich, as sagas de Thidrek têm pontos de semelhança estudados por Cosquin nas literaturas do Cambodge, de Zanzibar, da Sibéria, etc. A criança se liberta desse jugo maléfico mas conserva os benefícios da iniciação nos segredos importantes.

    Edelestand do Meril (Etudes d’archéologie), Littré e Gaston Paris (Romania, IX, 523; XV, 260) estudaram essa lenda que Edouard Fournier, depois de uma tradução (Denty, 1879), fez representar no Gaieté, no dia 2 de março de 1879. Fora a ópera de Meyerbeer (Paris, 1831), as obras de Scribe e de Delavigne são interpretações livres.

    5. — Seu ensinamento

    Este conto, cujo texto é de uma pureza exemplar, adotou as idéias do cristianismo medieval. Faz lembrar Saint Alexis que, no dia de seu casamento, para se mortificar, foge às alegrias de sua família. Esta idéia de penitência, de elevação, depois de uma decadência nativa, tem bem um caráter popular e moralizador. Roberto, o Diabo, continua a ser uma das lendas francesas mais recentes.

    IV. — Pierre de Provence
    Obra moralizadora é a narrativa de um amor fiel; sua singeleza transmite-lhe uma graça e uma suavidade bem características dos Romans courtois (Romances corteses) nos quais tudo é encantamento e prodígio.

    1. — O tema

    Pierre de Provence rapta Maguelone, filha do rei de Nápoles. Mas durante a viagem, Pierre, ao perseguir um pássaro que se apoderou de uma jóia, extravia-se. Muito tempo separados, os dois amantes se encontram finalmente e formam o par mais unido.

    2. — As fontes

    a) Literárias — Romance anônimo conhece-se o manuscrito de Coburgo e a edição gótica de Lião, atribuída a Barthélémy Buyer em, aproximadamente, 1477. Parece que esse texto foi escrito nas regiões do sul da França em, aproximadamente, 1442. As edições Le Roy, em Lião (1485) inspiraram-se no mesmo tema muito popular na Idade Média.

    Conforme Gariel (Idée de Montpellier, 1665), o assunto teria sido estudado por Petrarca segundo um texto de Bernard de Tréviez. Esta hipótese é posta em dúvida por Ancona (1889), rebatida por Gaston Paris (Romania, t. XVIII, l889,pág. 511). Parece mais certo ser Tréviez o escultor que ornou o lintel da porta da catedral de Maguelone.

    b) Histórico — Vêm-nos ao pensamento a ilha de Maguelone, perto de Montpellier e nos condes de Toulouse; supôs-se ser o bom rei René o conde de Provença (1435-1480). Mas com mais certeza pensou-se em Pierre de Melgueil que ofereceu o seu condado ao papa Gregório VII, no dia 27 de abril de 1085. Sua esposa era Almodis. Esse generoso conde, glorificado pela Igreja de Roma, tornou-se uma figura popular (estudo de A. Germain, 1854).

    3. — A sucessão literária

    Duas vezes Cervantes citou Pierre de Provence em D. Quixote. As poesias de Tieck, com a música de Brahms, foram editadas em Berlim, em 1911. Mistral trata de Maguelone (Trésor du Félibrige, II, 244) (Tesouro do Felibrige) Esse tema popular inspira numerosos artistas e um sarcófago de mármore existe na catedral de Maguelone.

    Os elementos desse romance se encontram nas Mil e uma noites (história do príncipe Camaralzanam e da princesa Badur), no poema italiano Ottinello e Giulia, no romance francês L’Escoufle. O furto de jóias por um pássaro é um caso comum na literatura.

    O romance persa Histoire des amours de Cofroès (História dos amores de Cofroès) lembra ainda a narrativa francesa.

    4. — Paris e Vienne

    Esse romance terminado em 1443 (conforme Biedermann, em 1427), compara-se a Pierre de Provence.

    É a história de um invencível cavaleiro que cativa o amor de Vienne, filha do Delfim do Vienense. Paris, como Pierre, é aprisionado no Oriente, na Síria e na Alexandria. Finalmente desposa Vienne.

    Esse texto é conservado na biblioteca de Carpentras (n.o 172). Podemos ainda pensar no amor de Flora que corre para o palácio do Sultão na Babilônia a fim de lá arrancar Brancaflor. Aucassin et Nicolette retoma o tema e Aucassin, depois de aventuras cômicas, consegue desposar a filha de Garin de Beaucaire que se opunha aos seus amores.

    5. — Conclusão

    Paris e Vienne dão um lugar importante aos feitos da cavalaria, mas os dois textos são histórias de amor edificantes nas quais a constância dos amantes triunfa. Pierre de Provence continua sendo uma obra mais humana e mais elegante; o estilo é simples, direto. A clareza e a uniformidade dessa narrativa muito sóbria foram a razão do seu êxito.


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    CAPÍTULO VI
    FORMAÇÃO DE LENDAS RECENTES


    CARTOUCHE ET MANDRIN
    Dois célebres bandidos de proezas diferentes que souberam cativar a imaginação popular: Cartouche tornou-se assim o bom ladrão enquanto que Mandrin é um salteador temível que socorre os humildes. Desde a morte desses dois personagens, os livros se apoderaram de suas personalidades.

    I. — Cartouche
    a) Sua vida — Louis Dominique Cartouche, nascido em outubro de 1693 no bairro de La Courtille, em Paris, teve uma educação bastante rudimentar. Aos onze anos foi raptado por um bando de boêmios e aos dezoito já roubava pelos belos olhos de uma pequena roupeira. Recrutador, organizou mais tarde o seu bando de acordo com os principios militares; seus tenentes chamavam-se Duchâtelet, bem como Duplessis d’Entraigues, Louis Marcant, estudante de direito, Pélissier, cirurgião. Como a França estava coberta por uma rede de agentes (teve trezentos e sessenta e seis cúmplices) Pélissier pode atacar o correio de Lião. A audácia desses homens é inacreditável: um pregoeiro proclama a busca de Cartouche, esse se dá a conhecer e apavora a multidão que nada faz para detê-lo. Suas evasões são espetaculares (Fort-l’Evêque).

    Apesar de enriquecido pela rua Quincampoix onde François Le Roux despojava os visitantes do banco Law, Cartouche tornou-se receoso — ele próprio foi delator junto a M. d’Argenson. Duchâtelet vende o seu chefe no dia 14 de outubro de 1721; encarcerado no Chatelet e depois na Conciergerie, sua pena de morte foi-lhe comunicada no dia 26 de novembro de 1721. No dia 27, na praça de Greve, já sem esperanças de ser salvo pelos seus, denunciou seus cúmplices, enquanto que no interrogatório, apesar do suplício dos sapatos de ferro, nada confessou.

    b) Sua popularidade — Esse bandido sanguinário, supliciado na roda aos vinte e oito anos, foi exposto em casa do ajudante do carrasco: cada curioso pagava um soldo. A Confraria dos Barbeiros-Cirurgiões trouxe o corpo para seu hotel e durante três dias os parisienses puderam desfilar para vê-lo. O molde de sua máscara é conservado na biblioteca de Saint-Germain; outra figura no Museu do Homem.

    Sua biografia aparece em 1721, L’Histoire de la vie et du procès du fameux Louis-Dominique Cartouche (História da vida e do processo do famoso Louis-Dominique Cartouche), mas Legrand e Quinault já havia atualizado sua peça quando vieram ver Cartouche na prisão; os italianos seguiram o teatro francês e representaram-no como Arlequim. Uma multidão se formou para assistir essas peças. A aristocracia velo para ver o bandido prisioneiro, o próprio regente saiu das suas comodidades; os gravadores venderam seu retrato, os poetas, entre eles Racot de Grandvai (1725), glorificaram sua coragem, sua inteligência, seu gênio de comando:

    Ainsi finit Cartouche, et la Fleur des Guerriers
    Laisse sur l’Echafaud sa vie et ses lauriers.(4)

    II — Mandrin
    a) Sua vida — Nascido em Saint-Etienne-de-Saint-Geoirs em Dauphiné, no dia 11 de fevereiro de 1725, Louis Mandrin é um contrabandista popular com poses de gentil-homem. Em Chambéry é recebido pela nobreza. Mandrin organiza um bando disciplinado e promove verdadeiras campanhas contra os Fermiers généraux. Sua sexta campanha foi sangrenta. Mandrin não ataca os particulares mas obriga os administradores oficiais e intermediários a comprarem os seus produtos contrabandeados; fornece recibos regulares. Mandrin é o gerente de um estabelecimento comercial; escrupuloso quanto aos pesos, as quantidades, insurge-se todavia contra os impostos descontados por quarenta mil empregados detestados. Malesherbes, primeiro presidente da Corte de Apelação, havia também condenado esse abuso.

    Mandrin retoma as façanhas de Puymoreau que em 1548, com um bando organizado de seis mil homens lutou contra o imposto da gabela e tomou Saintes, Cognac, Bordéus, libertando os contrabandistas arrestados.

    Audacioso, afugenta as tropas de Luís XV que se lhe opõem, ataca cidades inteiras: Autun, Bourg-en-Bresse — (5 de outubro de 1754), Beaune (dezembro de 1754). Liberta os prisioneiros, menos os assassinos e os ladrões; assina libertações e endereça cartas corteses, porém firmes, às mais altas autoridades.

    Depois de uma batalha decisiva contra os hussardos da legião de Fitscher, refugia-se na Savóia. Seis regimentos de infantaria e dois de cavalaria foram mobilizados. Mas na noite de 10 para 11 de maio de 1755, raptado por soldados de La Morliêre, do castelo de Rochefort, em território Sardo, os Fermiers généraux instauram imediatamente um processo. A Corte de Turim manifesta-se contra essa violação de direitos e de seu território, mas, no dia 26 de maio de 1755 era executado em Valença. Em seguida, a França humilhou-se perante a Casa de Sardenha e libertou dois companheiros de Mandrin injustamente aprisionados. Mandrin não denunciou nenhum de seus companheiros, fez supor que não era responsável por nenhuma morte; aos trinta e um anos sua morte foi edificante.

    b) Sua popularidade — Suas aventuras galantes, suas fugas, suas façanhas audaciosas, seu papel de benfeitor para com a população à qual vendia produtos de excelente qualidade a preços muito acessíveis, fizeram com que o nomeassem “capitão geral dos contrabandistas da França”. Seus irmãos Antônio, Francisco e Cláudio, bem como sua irmã Mariana, ficaram incumbidos de continuar a organização do irmão.

    Entre 1755 e 1760, vinte e cinco contrabandistas foram supliciados à roda ou esquartejados e cinco foram enforcados. O povo chorou a morte de Mandrin. O abade Regley criou para os Fermiers généraux uma Histoire de Louis Mandrin (1755) com “detalhes das suas crueldades, dos seus assaltos e do seu suplício”; o que nada mais é do que uma rede de calúnias encontradas em algumas “madrinades”. Os Fermiers généraux pretendiam assim desviar a opinião geral: Mandrin nada mais era do que um salteador. Foi confundido com Cartouche. De fato, a Revolução francesa ia realizar a obra sonhada por esse contrabandista.

    Conclusão — Esses homens, com sua coragem audaciosa, tomaram proporções sobrenaturais. Com os louvores desses homens criou-se a lenda. O mecanismo dessa miragem da imaginação popular é assim bem evidenciado. Mais recentemente lembramo-nos de Bonnot cujas façanhas foram multas vezes comentadas, ou do bandido siciliano Giuliano glorificado nas telas cinematográficas. Mas essas lendas ainda novas já não deixam lugar ao simbolismo, somente ao maravilhoso. A lenda de Santa Teresa de Lisieux poderia ser considerada sob esse prisma.


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    CAPÍTULO VII
    ALGUNS CONTOS DE PERRAULT


    I — Introdução
    Perrault, depois do êxito de Pele de Burro, pensou em transcrever Les contes de la mère l’Oye; suas fontes nos são desconhecidas mas os motivos existem numa literatura coletiva, talvez criada pelo produto inconsciente da imaginação proveniente de fontes multo antigas.

    Se o texto age por encantamento, descobre também um sentido que ultrapassa a simples moralidade devida a Perrault, que aliás se desinteressou pelas fontes iniciais. Bacon escreve: “Confesso simplesmente que desde sua origem as fábulas antigas foram alegóricas e encerravam lições importantes”.

    1. — Valor do conto

    Ora, encontramos de novo o mesmo repertório de contos — com seus temas iniciais semelhantes — em cada país e em cada latitude; essa migração prova um ritual unicamente acessível aos iniciados. Mas essas palavras de encantamento, forma de uma magia vinda até nos Evangelhos, não são apenas simbólicas. Além das cerimônias iniciáticas, o conto interpreta a vida e as tradições regionais. Por suas virtudes místicas, o encanto dessas ficções não pode ser nem pueril nem grotesco. E é preciso abandonar nossa atitude racional de homens que querem ser instruídos e inteligentes para desfrutar o sabor desses contos que nos lembram a alvorada de nossa infância.

    2. — Tese solarista

    Despertou grande interesse a tese solarista de B. Busson. Barba-Azul é uma alegoria do sol que mata cada dia a Aurora, sua nova esposa. A Aurora é curiosa; ela penetra por toda parte. Mas no aposento proibido estará encerrado o trovão; a Aurora é libertada por dois cavaleiros, os Açvins do Rig-Veda, os dois crepúsculos. O Pequeno Polegar relacionar-se-ia com os sete raios do alvorecer. André Lefevre, Frédéric Dillaye compartilham essa opinião. Na mitologia antiga podemos encontrar o sol com o seu emblema de chaves.

    Porém, Barba-Azul pode ser Saturno em luta com o novo ano, sua nova esposa; contudo as pesquisas para justificar a significação do número 7 conduzem a outras interpretações cujo caráter esotérico não poderia nos escapar.

    3. — Valor do algarismo 7

    Se as sete esposas de Barba-Azul, ou os sete irmãos do Pequeno Polegar, as sete fadas da Bela Adormecida no Bosque, as sete filhas do papão, as sete mulheres do gigante podem se assemelhar aos sete dias da semana, o valor desse número é extraordinário. Encontramos as sete solenidades do Judaísmo, os sete ramos do Castiçal de ouro, os sete filhos de Macabeu, enquanto que Tóbis é o sétimo esposo de Sara. O Espírito Santo tem sete dons, a Virgem, sete dores, o evangelho sete demônios e sete anjos planetários. Temos ainda os sete sacramentos, os sete diáconos, os sete selos do Apocalipse, os sete pecados mortais, as sete virtudes, as sete cores do raio luminoso, as sete notas musicais, as sete maravilhas do mundo. Para Anne Osmont cada um dos sete planetas do Pater se aplica a um dos planetas que compõem a antiga astrologia enquanto que para os hindus a terra se dividia em sete planetas.

    Sete seria o símbolo da vida eterna, da ação e da evolução; a própria iniciação tem sete graus. Esse algarismo, que se liga a três e onze, é ainda encontrado numerosas vezes.

    4. — Simbolismo

    O conto — que se reúne à lenda pela transformação do seu tema — reflete, no que concerne sua interpretação, a moda intelectual do dia. Os heróis podem personificar fenômenos naturais, mitos meteorológicos, usos cotidianos de todos os povos. O internacionalismo desses contos nos conduz a pensar numa transmissão oral. Os presentes das fadas podem constituir ritos de aniversários e Pele de Burro torna-se uma rainha de carnaval. Se voltarmos às nossas origens poderemos encontrar novamente o frescor da nossa alma de criança, e assim, num mundo deformado, evoluem esses heróis dotados pela natureza; mesmo sendo os personagens minúsculos, podem realizar grandes feitos pela sua coragem e pelos benefícios da iniciação. Os animais são bons e os próprios objetos tornam-se atributos do poder; o boné torna invisível, o bastão invencível e a sandália é o signo da velocidade.

    Este simbolismo dos objetos é discernível na água de Juvência, nas beberagens de imortalidade e o herói, para alcançar um estado superior, põe-se à busca de um objeto que pode ser um objeto mágico, um tesouro, uma noiva. Na história de Gata Borralheira o herói busca a luz e os três vestidos cósmicos (céu, lua e sol) participam da vida universal.

    O conto representa um mundo sobrenatural no estado de pureza; não mais se ocupa do sentido literal e chega até o absurdo para se preocupar apenas com um simbolismo bastante aparente. O ouro torna-se o emblema da energia solar e os cabelos, símbolos da vida, são de ouro. A Bela Helena, assim como Pele de Burro assemelham-se a Aquiles- e Ménégal.

    Os contos, apólogos religiosos, ensinam, a moderação de nossos desejos na aceitação da nossa condição. (Les souhaits ridicules, Griselidis) (Os desejos ridículos), mas são também uma evasão. Em vista da credulidade popular receber mal o desaparecimento do herói e criar uma lenda que o faz reviver desde o dia da sua morte, alguns desses personagens imaginários podem reviver; da mesma forma como nunca se admitiu a morte de Joana d’Arc, de Napoleão ou de Hitler, não se pode admitir a morte de heróis dotados de qualidades excepcionais.

    É por isso que os contos divertem e instruem ao mesmo tempo.

    5. — Os predecessores de Perrault

    Esses contos de tradições antigas, “memórias coletivas”, como diz Guenon, foram compilados por vários autores.

    Antes da publicação dos contos de Perrault (1697), outras compilações já existiam. Citaremos apenas as mais importantes, sendo as variantes particulares anotadas no seguinte estudo esquemático. Antes de tudo é a engenhosa reunião de contos que parecem engendrar uns e outros: o livro de Mil e uma noites.

    Antes dos Contes du Perroquet (Contos do Papagaio), os Contes du Vampire (Contos do Vampiro), o compêndio mais antigo é o Pantchatantra que se havia multiplicado na forma ocidental do Roman des sept sages (Romance dos sete sábios) e na forma árabe no Le livre de Kabile et Dimna.

    Entre os que tomaram a dianteira de Perrault notemos o Decameron de Bocáccio, Les nuits de Straparole e o Pentameron de Basile. Perrault e em seguida Mme d’Aulnoy, adaptaram essas ficções ao gosto do público francês. Walter Scott fez o mesmo na Inglaterra, os irmãos Grimm na Alemanha, Afanasieff na Rússia e Asblörnsen na Noruega.

    II. — Barba-Azul
    1. — Teses históricas

    a) Alain Bouchard (Les grandes chroniques, 1531) e Alberto Magno (La vie de saint Gildas, 1680), registram que o rei bretão Comorre, tendo um oráculo lhe predito que seria assassinado pelo próprio filho, teria matado suas sete esposas. Influência da lenda grega, sem dúvida mas sua última esposa, Santa Triphime, é ressuscitada por Santo Gildas. O tema aparece nos afrescos da capela de Saint-Nicolas (Bieuzy, Morbihan);

    b) Collin de Plancy, Ch. Giraud, Michelet crêem que Gilles de Rais, marechal de França, fiel companheiro de Joana d’Arc, inspirou a lenda. Entretanto, desposou uma única mulher, Catherine de Thouars, que a ele sobreviveu. Este homem letrado que atemorizava seus herdeiros com suas despesas fastosas, foi condenado e executado em Nantes (26 de outubro de 1440) com a idade de trinta e seis anos por haver degolado trezentas crianças em sessões de magia. Esse processo parece suspeito e S. Reinach e F. Fleuret tentaram reabilitá-lo. Tal como a imaginação popular censurava aos primeiros cristãos sacrifícios humanos, parece que Gilles de Rais tenha sido vítima de sua fortuna e de seus ataques políticos.

    c) Pensou-se em Henrique VIII da Inglaterra que esposou seis mulheres e fez com que duas morressem no cadafalso. Maspero e Gaston Paris fazem dele um vampiro que bebe sangue humano. Doente, neurótico, Barba-Azul é comparado aos grandes criminosos como Landru ou John Christie;

    d) A cor extraordinária de sua barba assemelha-o a Indra, a Bés, o Egípcio, ou a Júpiter. Tem uma barba azul quase preta, ou azul-celeste (Oh!) e Sébillot menciona uma barba vermelha. No simbolismo das cores é preciso ver o símbolo do iniciador, o condutor de almas que faz transpor as portas da morte espiritual.

    2. — Tema da curiosidade. Iniciação

    O tema da curiosidade é comum a todos os países e visa principalmente a mulher. Na. Bíblia achamos Loth, Eva e Sodoma. As Mil e uma noites fazem da curiosidade uma ampla interpretação. Esse segredo conjugal está presente em Parsifal onde a duquesa de Brabante perde seu esposo por lhe haver perguntado quem era ele. Essa curiosidade visa um ritual que nos escapa; talvez o da preparação para o casamento. A jovem é sujeita a uma prova difícil: a tentação do local secreto. Em seguida vem a última prova, o simulacro da morte; ritual de morte e de ressurreição na qual o neófito, despojando o velho, desperta num mundo novo, o do conhecimento. É o caso da religiosa colocada no seu ataúde. Para essa cerimônia de iniciação a mulher pode vestir seus mais belos adornos, ou se impor a nudez ritual do batismo dos primeiros cristãos (forma nivernesa da lenda). A magnificência da morada de Barba-Azul lembra os castelos encantados e esse grande senhor, cortês e feio, não dá a razão dos seus crimes.

    3. — O quarto secreto

    Esse local secreto parece ser o lugar do saber por excelência. É a loja. Um conto de Carnoy L’homme de fer (O homem de ferro), mostra que a criança desobediente não pode conhecer o derradeiro segredo. A forma original do Conte du magicien et son apprenti (Conto do mago e seu aprendiz) parece ser a Histoire du radja Madama Kdma na qual um príncipe instruído por um feiticeiro tenta e consegue escapar-lhe; Cosquin (Études folkloriques) e W. Crooke (North Indian Notes and queries, 1894) narram contos semelhantes.

    Porém o quarto secreto aparece mais claramente na introdução do livro mongol Siddhi-Kûr, no qual o caçula descobre a “chave da magia” espiando pela fresta de uma porta. A curiosidade é pois recompensada. Os contos de Velay (Cosquin), da ilha de Zanzibar, de Bosnia permitem, ao iniciado triunfar depois de haver transgredido um regulamento de interdição. Este último conto, recolhido por Desparmet, assemelha-se ao de Aladin (As mil e uma noites): um jovem sem fortuna quer desposar a filha do rei.

    Contudo, quase sempre, essa curiosidade é nociva.

    O homem é expulso do paraíso pelo seu gesto da desobediência (conto hindu de Somadeva Rhatta; história do Terceiro calendário de mil e uma noites). Sem se instruir nos três estágios impostos (purificação, saber, poder), o neófito quis penetrar no santuário secreto: da mesma forma é enxotado dessa confraria (Roman des sept vizirs (Romance dos sete vizirs), enquanto que o príncipe do Fidèle serviteur (Fiel servidor) (Carnoy) enamora-se de um retrato conservado num quarto interdito.

    L’enfant de la Vierge Marie (O filho da Virgem Maria) (Grimm), Le bénitier d’or (Cosquin), Maria Morewna (Ralston e depois Marnier) e numerosas variantes mencionadas por Saintyves, referem-se ao tema da interdição do Quarto Secreto. Doze quartos corresponderiam aos doze apóstolos, o décimo-terceiro quarto sendo o do Santo dos Santos.

    Carrouges estende esse simbolismo aos romances policiais para interpretar o mistério dos quartos fechados.

    4. — O objeto denunciador

    Um objeto mágico denuncia o culpado que tentou penetrar no local, secreto. É o caso do conto de Perrault, do Oisel emplumé (Pássaro emplumado) de Grimm, de La veuve et ses filles (A viúva e suas filhas) de Loys Brueyre. O objeto pode ser uma chave, um ovo, um pequeno cofre, um retrato e até uma região.

    Depois o próprio objeto mágico tornou-se a representação do quarto iniciativo. Essa “casa dos homens”, esse centro de reunião de iniciados transforma-se num cofre que encerra o saber. Andrew Lang vê nisso tudo a sobrevivência do culto primitivo e acrescenta o anel jogado ao mar e encontrado depois no corpo de um peixe. Mas a chave, símbolo axial, pode ser considerada pelo seu poder de ligar e desligar; seu conhecimento tem então o mesmo poder que a palavra de Ali Babá ou a do Pequeno Polegar. Às vezes o objeto desaparece: um sinal aponta o culpado; são os cabelos de ouro do Homme de fer (Carnoy) ou o dedo dourado de uma criança desobediente (Steele Swahili, Tales, 1870; Contes Cambodgiens, 1868; Conte Chao Gnoh); o ouro é então o emblema das energias solares.

    5. — Auxílios

    Essa luta entre o iniciado e o iniciador implica auxílios exteriores. Esses auxílios provém dos pais, de um religioso, de um sábio, de um jovem (W. Crooke observa o caso de um herói aconselhado pela filha de seu inimigo). Os mortos que aconselham são numerosos (Cosquin, Steele, L’oiseau de vérité (Pássaro de verdade), Les trente-deux récits do Trône (As trinta e duas narrativas do trono) ou Vicramaditia, La légende de la mort (A lenda da morte) (de Le Braz); D. Juan também recebeu os conselhos do comendador. Os animais, aliados do homem, sob a influência da Índia, previnem contra o perigo. Com Perrault essa parte é abreviada e os irmãos chegam inopinadamente.

    6. — Conclusão

    Parece que o conto de Barba-Azul visa a iniciação de um ser; sua curiosidade impede-o de beneficiar do ensinamento desta arte mágica. Os elementos interiores desse tema, conhecido em todos os países, se encontram num ritual que parece reservado aos iniciados.

    III. — A Bela Adormecida no bosque
    1. — Tradição mitológica

    Depois de Hyacinthe Husson que assimila a heroína à luz celeste invadida pela noite ou pelo inverno — sendo a noite, neste caso, representada pela floresta — Charles Ploix (Le surnaturel dans les contes) (O sobrenatural nos contos) nele descobre o despertar matinal. Mas, a primavera livre das correntes do inverno tem numerosos adeptos: Husson (La châine traditionelle) (A cadela tradicional), Max Muller (Essais de mythologie comparde) (Ensaios de mitologia comparada), Bachelin (Sept contes roumains) (Sete contos Rumenos). A versão siciliana (Suli, Perna et Anna, G. Pitre, 1875), ou a versão hindu compilada por Frère no Deccan Days, 1868 (La laitiére et la griff e du Rakshasa (A leiteira e a garra do Rakshasa) se aparentam a essa origem primaveril que reencontramos em Pentamérone (V, 5) ou ao conto alemão Rosa de espinho.

    Para Gédéon Huet (Les contes populaires) é o sono mágico, de aspecto extático que reencontramos no Sept Dormants.

    2. — A presença da fada má

    As Parcas, perto dos berços, prediziam o futuro das crianças. André Lefevre compara a fada má à “Fatumantique” enquanto que Sébillot, Husson e Dillaye pensam numa bruxa (Légendes locales de la Haute-Bretagne, t. II) (Lendas locais da Alta Bretanha). A lenda egípcia apresenta no nascimento de Montemonia em Louqsor, de Ahmasi em Deir e de Cleópatra em Erment, sete fadas madrinhas. Isto faz lembrar os sete Lipikis hindus que anotavam durante a vida dos homens seus procedimentos nos sete planos de suas consciências (sensação, emotividade, inteligência, intuição, espiritualidade, vontade e presciência do divino). Desta forma era determinado o destino do indivíduo na ocasião de sua reencarnação. Suas boas ações anteriores tornavam-se dons inatos. As fadas que assistiram ao nascimento de Ogier, o Dinamarquês, são apresentadas nas Croniques du Roy. Perceforest (século XIII), por ocasião do parto da rainha Zelandina ou na Heurcuse peine (Mme. Murat, 1698). No La biche au bois (A corça do bosque) e Le serpentin vert (A serpentina verde) encontramos duas fadas que foram esquecidas. As vezes, as fadas, ao invés de adormecer, petrificam-se (La reine des abeilles (A rainha das abelhas) de Grimm, (L’arbe qui chante) (A árvore cantante), L’oiseau qui dort, (O pássaro que dorme), Le fidèle Jean (O fiel João) de Carnoy. Em A bela e a Fera as duas más irmãs tornam-se estátuas.

    3. — Simbolismo do fuso

    Na maioria desses contos, a virgem adormece depois de uma picada, quase sempre, de um fuso. Loeffler-Delachaux, notando que nas tribos primitivas e atualmente na África equatorial, a educação das crianças é confiada a pessoas idosas, geralmente estranhas à família acha que a fiandeira inicia a adolescente perturbada com a sua metamorfose. A teoria freudiana interpreta o fuso como um emblema fálico.

    Loeffler-Delachaux (Symbolisme des contes de fées, 1949), observa as prostitutas sagradas doa templos de Afrodite que se apresentavam com a cabeça cingida por um fio; esse penteado foi adotado por Ariadne cujo nome significaria fuso, e depois baseando-se na palavra fenícia Khr, demonstra que a palavra cruz (de onde provém cruzamento) relaciona-se à atividade sexual; e em inglês arcaico Rod significa ao mesmo tempo, cruz ou pênis. Depois de sua curiosa demonstração, o autor conclui que o fio representa a perpetuação da espécie.

    É exato que em L’adroite princesse (A hábil princesa), as rocas de fiar das duas princesas Nonchalante e Babillarde se quebraram quando elas foram seduzidas e que o rei soube que só “a roca de Finette permanecera intacta”. Laideronnette, instruída pela sua boa fada, acalma sua repugnância pelo Serpentin vert. Brynbild mergulha num sono letárgico com a picada de um , espinho. (Beauvois, Histoire légendaire des francs, V) (História lendária dos francos).

    Loeffler-Delachaux dá também uma significação cósmica ao fuso que simbolizaria “o começo do dia ou a origem de um mundo no momento em que os átomos que o constituem são polarizados pelo magnetismo cósmico”.

    4. — As interdições

    Para Saintyves essas interdições eram no princípio do ano, pois fiar é ligar e o bobinamento podia frear o movimento do renovamento. É um ritual mágico que muito se aproxima da superstição.

    5. — As Belas adormecidas

    Além da Valkyrie Brynhild adormecida por Odin, lembramos também o sono de Adônis e Osiris, a inatividade da virgem Perséfone.

    O conto dinamarquês da compilação de Svend-Grundvjg (H. Husson) menciona o sono de uma jovem mulher que durou sete anos; Loys Brueyre (Contes populaires de la Grande-Bretagne), cita La princesse grecque et le jeune jardinier (A princesa grega e o jovem jardineiro); Vieillesse d’Oisin (Velhice de Orsin); L’Enchantement du comte Gérald (O encantamento do conde Geraldo), Musique du ciel (Música do céu); Les escaliers du géant Mac Mahon (As escadas do gigante Mac Mahon). Uma jovem camponesa adormece assim na floresta e desposa o terceiro cavaleiro (Bujeaud, Chanson populaire de l’Ouest, 1866). 0 filho do pescador desperta a princesa Tournesol (Luzel, quinto relatório dos Arquivos das missões científicas). A história de Suria Bai (Frère, Old Beccan Days) é mais completa. Filha de uma leiteira, raptada pelas águias, é arranhada pelo filho de uma bruxa e adormece. O rajá desperta-a e a esposa; a primeira esposa do rajá afoga-a e Sourya se transforma então em várias plantas para enfim encontrar sua mãe e o amor do rajá.

    Branca de Neve (Grimm) assemelha-se com Suria Bai; as águias são substituídas pelos sete anões, a unha venenosa por um pente venenoso. Branca de Neve não se transforma em flores mas deitada no seu esquife de vidro recebe os lamentos dos animais. Bidasari, poema malaio (Backer, Plon, 1875), retoma esse tema. Grimm com Rosa dos bosques se aproxima de Perrault, bem como o conto siciliano Bull, Perna et Anna Pitré, 1875.

    Le coffret volant (O cofrinho voador) de Andersen é de influência asiática.

    No Roman de Perceforest, Zelandina acordada, se desespera por ser mãe; ela se casará finalmente com Troylus seu amante, mas à brutalidade desse conto segue-se a suavidade do jovem que se ajoelha diante da princesa ou dá-lhe um casto beijo.

    Com o Pentameron (o sol, a lua, e Tália), o príncipe é casado; a jovem que se torna mãe sofre a cólera da esposa que quer mandar matar os filhos de sua rival. No conto francês tudo se ameniza e idealiza. O sono letárgico aparece no Tapete mágico, Le bonnet invisible (O barrete invisível) (Glinski, Hachette, 1864), no qual um país inteiro é adormecido por castigo celeste como em Mil e uma noites (História do cavalo encantado).

    João, o Urso, liberta Pomme d’Or (Conto de Provença) e o cavalo encantado nos Contes français de Carnoy, 1885).

    O poeta cretense Epiméride, menciona, seiscentos anos antes de Jesus Cristo, o sono de um jovem que penetrou numa caverna, onde dorme durante cinqüenta e sete anos.

    A caverna dos sete adormecidos é célebre no Oriente; murada por ordem do imperador Décio em 251, os irmãos mártires lá dormiram cento e cinqüenta e sete anos. Finalmente o imperador Frederico Barba-Roxa dorme ainda debaixo da montanha de Kyffhoeuser na região de Turíngia.

    As princesas dormem “como as lembranças no fundo de nosso inconsciente” e o príncipe encantado que as desperta é “nosso consciente chamando as imagens ancestrais necessárias à sua ação“ (Loeffler-Delachaux). Algumas dessas princesas são apenas encerradas numa torre, um poço “postas à margem da ação”. É o caso do conto tártaro Ac-Beiaz, filha de Abdala Yusuf (edição Lehoucq, 1783).

    Esses fatos sugerem as cerimônias iniciáticas — sala de reflexos, esquife — onde o neófito se recolhe fora de todo o contacto humano. Essa forma de lenda se assemelha talvez aos misteriosos poços das igrejas onde os penitentes deviam ser mergulhados antes da absolvição (Gosselin); diz-se ainda “a Verdade vem do poço”. Este gesto é tão simbólico quanto a água, é purificadora.

    Quanto aos despertares, corresponderiam à lei cíclica de periodicidade.

    6. — A floresta

    Nos hinos védicos o oficiante deve ser isolado e garantido. As portas desse local, rodeadas por uma paliçada, só se abrem nas horas de festividade (Abri-vos, portas eternas, cantava o ritual). A proteção e o isolamento do taumaturgo são feitos ainda por um traçado intransponível para os poderes ocultos nocivos. Nesse caso a floresta forma esse isolamento ritual. Sigurd substitui essa floresta por um círculo de chamas. Saintyves nela descobre a árvore de Suria Bai, a árvore sagrada aos pés da qual Buda foi iniciado. Realmente é na Índia que se encontra esse símbolo de uma vegetação que é preciso afastar a fim de poder penetrar a nova civilização. Loeffler-Delachaux observa (Symbolisme des Contes de fées) que o sono coletivo da corte marcaria o tempo de repouso entre duas encarnações e que essa inextricável vegetação substitui o gigante enterrado, no corpo do qual é preciso se introduzir para penetrar no segredo (lenda finense, o-Kalevala). Mas encontramos mais certamente nessa narrativa um aspecto do quarto interdito. Para esse autor, a penetração no corpo da pessoa adormecida representa, num sentido profano, a cópula, num sentido sagrado, a imagem da invasão do consciente no inconsciente, num sentido iniciático, a descoberta de arcanos de uma civilização desaparecida.

    IV. — Gata Borralheira e Pele de Burro
    1. — Motivos

    a) Esses dois contos têm grande analogia. Loys Brueyre (Contes populaires de la Grande-Bretagne) observa duas tradições nas quais se confundem. O anel e o chinelo desempenham o mesmo papel e Miss Mariam Roalfe Cox estuda as suas trinta versões (Cinderella, Londres, 1893).

    b) Pele de Burro — O rei promete à rainha moribunda só desposar uma mulher mais bela do que ela (Perrault) ou aquela em cujo dedo servisse o anel da rainha (Sicília, 159, 186; Rússia, 171, 172; Noruega, 181; Portugal, 184); ou que pudesse vestir os mesmos vestidos (Grécia, 176; escocês, 151) ou os sapatos (italianos, 134, 150). Ora, só a filha do rei preenche as condições. Para fugir a essa união criminosa, a princesa formula três desejos que o rei consegue satisfazer. Disfarçada, foge e serve miseravelmente em casa de um príncipe que descobre quem é a pretensa serva e esposa-a.

    c) Gata Borralheira — Tratada por suas irmãs como uma empregada, Gata Borralheira, por uma ajuda exterior — fada, animais — consegue ir três vezes ao baile onde encontra o príncipe; mas terminando o encantamento numa hora definida, a heroína, na fuga, perde seu sapatinho que permite ao príncipe encontrá-la e esposá-la.

    2. — Variantes

    a) Pele de Burro — O incesto forma o ponto de partida desse conto. Por esse motivo Deulin pensa em Prajapati, senhor da criação, que violentou sua filha Uchar. Em 1550, com Straparole (primeira noite, conto IV), o príncipe Thibaut quer desposar sua filha Doralice. Na Histoire de Sainte Dipne (História de Santa Dipne) (Ribardeneira, Fleur des vies de saints, 1616) (Flor das vidas de santos), o rei pagão da Irlanda tenta desposar sua filha Dipne e finalmente mata a fugitiva; é Pele de Burro sem seu maravilhoso. Se Luzel (5o. relatório das Missões Científicas), Schleicher (Litaüische Màrchen), relatam lendas semelhantes, Deulin cita outras variantes tais como a Belle Hélène de Constantinople (Bela Helena de Constantinopla), onde o suposto parto de animais lembra o Chevalier au cygne (Cavaleiro do cisne).

    Num conto hindu (Le trône enchanté) (O trono encantado), a princesa casa com um burro que se metamorfoseia em príncipe. Pernette, conforme Bonaventure de Perriers (Nouvelles Récréations et Joyeux Devies) veste uma pele de burro para enojar um amigo. Se Pétriosa (O Pentameron) se transforma em ursa, Noel du Fail (1547) e Grimm aproveitam a idéia (La reine dos abeilles) (A rainha das abelhas), La gardeuse d’oies (A guardadora de gansos), La vrai fiancée (A verdadeira noiva). Enfim a extraordinária cozinheira enegrecida com sebo de Peau de toutes les bêtes (Pele de todas as feras) (Grimm), que casa com o príncipe depois de aparições que se assemelham às de Roberto, o Diabo.

    b) Gata Borralheira — A sandália da cortesã Rodopis foi levada por uma águia e caiu subitamente diante do faraó admirado; Rodopis descansa agora sob a terceira pirâmide (Estrabão, liv. XVII). Ellen (Histoires diverses, XIII) reproduz essa anedota para glória do rei Psametico. Cosquin regista dois contos anamitas nos quais gralhas levam os sapatos dourados da Gata Borralheira ao palácio real. Mas geralmente a heroína perde os sapatos fugindo. Lembramo-nos de Penélope, de Berta dos pés grandes (Henry Pourrat, Marie Cendron, t. I). Ei-la num conto malgaxe (Ferrand, 1893, n.o 35), mas depois de Finette Cendron, Landes relata contos anamitas (Saigon, 1886) e Leclêre, versões tjame e cambodgeana. Se Miss Cox anotou essas variantes, Cosquin firmou algumas versões cabilas, silesianas, islandesas (Contos Populares, t. II). Realmente esse ensaio do sapatinho constituiria o rito da eleição, a posse de um novo lar. Temos um exemplo em Rute (IV, 7-10) no qual Booz recebe dessa maneira Rute, a Moabita.

    3. — Interpretações

    a) Para Gubernatis, a aurora, perseguida por seu pai, veste o casaco da noite; para H. Husson, Ch. Ploix, a aurora se oculta sob a bruma a fim de se entregar ao sol levante. Conforme versões nórdicas, Loys Brueyre vê nessas versões, o casamento ritual do ano com o novo sol. Saintyves pensa na evocação do carnaval, liturgia primaveril na qual as duas heroínas vestem os trajes e os atributos de uso.

    b) O traje — Esse revestimento de peles de animais consta do Gênese (III, 21). “E Deus fez para o Homem e para a Mulher roupas de peles e com elas os vestiu”; ora, conforme o esoterismo, toda matéria universal é viva. Esse disfarce que muda a personalidade assemelha-se ao fenômeno da reencarnação que encontramos na Índia. Se Gata Borralheira usa vestidos que se assemelham às estações ou ao tempo (Rússia 153; Grécia 176), Miss Frère refere-se a um conto hindu no qual uma jovem disfarça-se em mendiga (retomado no conto toscano 285). No folclore italiano as virgens encerram-se em estátuas de velhas e algumas vezes em sua pele (Cosquin). O sapatinho de veiros denota a pureza e a beleza. Encontramos essa transformação em Riquet à la Houppe. c) O nome de Gata Borralheira — Mine d’Aulnoy e Perrault referem-se às cinzas da lareira e o Pentameron à Gata das Cinzas. Saintyves, ao estudar essas variantes, é de opinião que as cinzas desempenham papel degradante; é a humilhação, a penitência. Ulisses, humilhado por Areté e Alcínoo, senta-se nas cinzas; os hebraicos cobrem a cabeça com cinzas em sinal de luto. Para Loeffler-Delachaux, Gata Borralheira é uma vestal presa ao culto do Sol, da Luz e do Fogo; ora, o fogo é o símbolo da Vida e do Amor.

    d) A madrasta — Freqüentemente a madrasta é representada por uma feiticeira (Cox Bulgária 127; Irlanda 9 e 10; anamita 68 e 69); às vezes por uma mágica (Cox Eslováquia 33; Grécia 17; Noruega 67, 110, 70); Luzel (Contes de Basse-Bretagne,- III (Contos da Baixa-Bretanha); Le chat noir (O gato negro) e Saintyves — confundem-na com o ano velho.

    e) As ajudas — As ajudas que vêm socorrer são fadas, animais — muitas vezes pássaros — e até a defunta mãe (Cox, Contos dinamarqueses 38, 43, 64; norueguês, 87; Grimm 2); algumas vezes cultuam-se os ossos dos animais protetores (contos tjames 69). Desparmet (Contes populaires) menciona ajudas semelhantes.

    f) As carruagens — Passeiam os deuses no Olimpo e conduzem as fadas aos batizados. Os coches são os veículos das forças cósmicas e da alma durante o decorrer. da reencarnação (Arjuma no Bagavad-Gita). — Os animais têm significação alegórica; Loeffler-Delachaux diz que o carro do sol é puxado por cavalos brancos e que as fadas podem ter carruagens de paz ou de cólera (La biche au bois de Perrault). Na Finlândia, a carruagem é substituída pelo trenó; o garanhão representa a energia sexual libertada; esses raptos de mulheres figuram na Calevala, Le joyeux Lemmikaïgen. Os corcéis não podem ser emprestados (Gracieuse et Percinet de Perrault, La gardeuse d’oies de Grimm.; o Pentameron.

    g) Objeto denunciador — Gata Borralheira e Pele de Burro são reconhecidos graças a um objeto perdido (sapatinho), ou dado como penhor (anel, colar, alfinete, relógio, chave). O anel sem começo nem fim, liame mágico da vida, talismã, como a pulseira ou o colar, simboliza ritualmente o encadeamento de duas vidas. É encontrado numa iguaria e permite o descobrimento da heroína disfarçada.

    V. — O pássaro da verdade
    Vimos anteriormente que a ajuda sobrenatural vem muitas vezes de um pássaro. Totem individual ou gênio protetor, esses animais alados são agentes de união, confidentes; em Florine., Serpentin vert, puxam a carruagem da bela que vai ao encontro de seu príncipe encantado. Simbolizam os sonhos ternos, os beijos, as carícias; são prestativos, permitem encontrar a coroa de ouro do rei (Grimm, Les deux compagnons en tournée) (Os dois companheiros em tournée); procura distrair os prisioneiros (Andersen, Les cygnes sauvages) (Os cisnes selvagens). Prince et princesse (Príncipe ou princesa), ou previnem dos perigos (Carnoy, Le fidèle Jean; tema do aprendiz feiticeiro). L’oiseau bleu (O pássaro azul) (Mme. d’Aulnoy) e ele próprio é o príncipe encantado amado por Florine.

    O pássaro muitas vezes branco — desempenha papel primordial no tema de o pássaro da verdade. Para curar uma rainha; para defender uma pessoa, é preciso encontrar três objetos encantados: a árvore que canta, o pássaro que fala e a água de ouro (Carnoy, Contes français). Madrastas impelem crianças nessa aventura perigosa e num mundo desértico — o do Graal — moços foram transformados em pedra por não serem capazes de respeitar o pacto; o malefício desaparecerá assim que o herói conseguir apoderar-se dos objetos maravilhosos. Para atingir a Árvore da vida é preciso atravessar uma região desértica; ora, essa árvore está no centro do Paraíso terrestre, no centro de Jerusalém celeste; tem doze frutos e talvez devamos ver a concordância que há com os doze Aditias. Esse tema aproxima-se muito do. da demanda do Graal e aliás, conforme Orígenes, o próprio Cristo é a árvore da vida. “O Cristo que é a virtude de Deus, a Sabedoria de Deus é também a árvore da vida pela qual devemos ser tentados,”

    Muitas vezes esse tema liga-se ao do Chevalier au cygne, romance da Idade Média. A mãe do rei anuncia falsamente que sua nora deu à luz cães e gatos com o intuito de mandar matar as crianças e repudiar a esposa detestada. Mas um vassalo condoído não pode cometer esse crime horrível; entrega as criancinhas a um eremita e apenas tira-lhes o colar de ouro. As crianças que perderam assim o poder de um pentáculo mágico, se transformam em cisnes. Depois de muitas tribulações, encontram novamente sua forma primitiva com a posse do seu colar.

    Cosquin menciona essas variantes nos seus Contes lorrains (Contos lorenos). Mais conhecido do que o conto siamês (Asiatic Researches, 1836), é o de duas irmãs que têm ciúmes da irmã caçula nas Mil e uma noites, que se assemelha ao conto caucasiano traduzido por Schiefner (Mémoires de l’Académie des Sciences, t. XIX). Este último tema é o que mais liga ao tema inicial de Pássaro da verdade.

    Pois finalmente toda a verdade é revelada por esse pássaro falador. Muitas vezes esse papel é desempenhado por um ancião (Grimm 96; Gubernatis; Carnoy). Mme d’Aulnoy retoma esse tema em La princesse Belle-Etoile (A princesa Bela-Estrela) e Henry Pourrat (Trésor des Contes, t. I (Tesouro dos Contos) aproveitou um conto semelhante.

    Observemos que muitas vezes é uma jovem que leva a bom termo essa busca perigosa. Pela sua vontade, maior do que a sua força, ela fará com que cesse o malefício que reina na região e restitui dessa forma a vida a esses cavaleiros malogrados que foram transformados em pedra. O paralelo com o Graal é evidente. As vezes, porém, a jovem muito frágil, serve-se de um ardil: é o artifício de tampar os ouvidos com cera a fim de não ouvir o horroroso tumulto; o tema não é novo. A heroína se apodera de três objetos maravilhosos e ao voltar esposa o ancião compadecido, o que estava encarregado de aconselhar; é o eremita iniciador de João, o Urso. Com esse casamento o personagem é libertado e o ancião se transforma num príncipe encantado.

    VI. — O chapeuzinho vermelho
    1. — O motivo

    Collin de Plancy descreve a história de uma camponesa de Finistère que deu ouvidos aos propósitos de um desconhecido; volta com o rosto enegrecido e macilento; encontrou o diabo, o espírito da astúcia. No conto de Grimm (26) e na maioria das outras versões a menina devorada pode ser retirada do ventre do lobo. Em Perrault o fim trágico é um castigo desproporcional ao erro.

    2. — Interpretações

    Se Perrault vê nesse conto uma moral que proibe às moças conversarem com desconhecidos pelo caminho — tema da proibição violada — Husson pensa no mito védico de Vartica, no qual o Acvins são os crepúsculos e a adolescência, uma aurora interceptada pelo “sol devorador sob a forma de um lobo” Essa escuridão pode ainda ser o inverno (Lefèvre, Dillaye). Para Ploix o lobo é o inverno. Saintyves nele vê uma rainha de maio: a cor vermelha sugere a alegria, atemoriza as feiticeiras enquanto que o bolo e o vinho — o vinho de maio seriam oferendas rituais. Essa alegria mágica envolvendo o sol novo teria sido resumida na versão francesa onde o clima é mais sereno. As versões nórdicas são mais completas. Depois da permanência no corpo do lobo — espécie de aprisionamento que encontramos no conto O lobo e os sete cabritinhos, de Grimm — O chapeuzinho vermelho sai da barriga do lobo graças ao auxílio de um caçador. Pretendeu-se ver nessa lenda a interpretação do ciclo estacional.

    VII — O Pequeno Polegar
    Esse conto de origem iniciática interpreta a luta de uma criança franzina contra o papão.

    1. — Interpretações

    Para Husson, o Pequeno Polegar é a luz da manhã; — na floresta — durante a noite — ele joga seixos — as estrelas; o sol — o papão — devora suas crianças, os primeiros raios do alvorecer Saintyves pensa nas provações de iniciação; o Pequeno Polegar, franzino antes da iniciação, torna-se poderoso. Essa transformação para a virilidade efetua-se nesse recinto sagrado representado pela floresta. As fontes védicas são, desta forma, aparentes para Cosquin e P. Régnaud (1897).

    2. — Os temas

    É um anão ou uma criatura franzina; sua inteligência ativa permite-lhe triunfar do gigante de espírito lento. É também, Tom Ponce, cavaleiro do rei Artur (Brueyre); em Grimm, (37, 45) na Dinamarca, na Áustria, é pequeno como um dedinho. Prudente, o Pequeno Polegar demarca o caminho com o auxílio de pequenos seixos ou com um rasto de cinza (contos de Mekidech, Cabilia).

    Graças à substituição de objetos, consegue fugir com seus irmãos. O papão — ou o diabo -. enganado mata a sua progenitora. Saintyves observa numerosas variantes deste tema que é encontrado nos contos berberes (H. Basset), ou nos de Lorraine (Histoire de Courtillon).

    Finalmente, por meio de uma falsa inépcia, de uma fingida ignorância, o herói consegue livrar-se do próprio papão: por exemplo, pergunta ao feiticeiro como poderia penetrar num forno; o papão nele penetra e fica trancado. É o tema da caldeira que aparece nas variantes de Barba-Azul. Saintyves evoca desta forma a iniciação dos guerreiros, nas tribos do Sul da África, por ocasião da cerimônia da circuncisão.

    3. — O papão

    Pretendeu-se ver no papão o símbolo das devastações húngaras; mas para Gaston Paris, ele herdeiro dos racsas da Índia. O papão — ou diabo — Saintyves nele vê uma sobrevivência dos ritos de antropologia e refere os contos zulus, malgaxes (Renel). Para Loeffler-Delachaux ele é Saturno que devora seus filhos à medida que Cibele (a Terra) os põe no mundo.

    4. — Os objetos mágicos

    Os pantufos mágicos permitem a Chao Gnoh (Cambodge) viajar no ar. As botas de sete léguas são novamente mencionadas em Sébillot (Mélusine., III), Cosquin; os sapatos mágicos nos contos de Cachemira (Brihat-Katha), Madagascar (Capa), Pérsia (Tutiname); são da mesma natureza que o chapéu da invisibilidade ou a espada do poder. Hermes era o deus das sandálias aladas e ocultava os bois de Apolo como freqüentemente o faz o Pequeno Polegar (Gastão Paris).

    A troca de trajes, túnicas, anéis, penteados, induz o papão ao erro (Saintyves, Deulin). No Ino de Eurípedes, Temisto mata seus filhos tendo Ino, sua rival, trocado as túnicas. L. Brueyre menciona uma variante escocesa, bem como Carnoy (Courtillon) e Sébillot (La Perle e le Petit-Peucerot) (A Pérola e o Pequeno Peucerot).

    VIII — João, o Urso
    Existe, assim, grande número de contos nos quais um grupo de crianças perde-se, intencionalmente, na floresta. O tema do Pequeno Polegar se aparenta ao do Cavaleiro do cisne, no qual os filhos do rei, perdidos intencionalmente por ordem de sua avó ciumenta, encontram um auxílio protetor antes de retornarem ao meio a que têm direito. Perseu, Édipo, Ciro, Páris, Rômulo são, da mesma forma, expostos à morte, mas salvos, cumprem, sozinhos, a prediçâo anunciada. Essas crianças solitárias são muitas vezes salvas por animais selvagens ou pastores, como Mowgli, o menino-lobo, imortalizado por Kipling. Houve, contudo, casos muito mais pungentes e precisamos nos lembrar particularmente daquelas pobres criaturas humanas, Amala e Camala, que viveram com animais e morreram em, aproximadamente, 1930. Moisés foi recolhido por uma princesa egípcia e João, por uma loba ou por uma ursa. O leite colhido desse animal compassivo deu-lhe uma força excepcional. Esse adolescente leva uma vida vegetativa até o dia em que encontra o primeiro homem, o iniciador; é a adolescência de Parsifal no Graal ou o de um dos numerosos heróis do Pássaro da Verdade. João, o Urso pode tornar-se um cavaleiro cortês e instruído, cuja força sobre-humana faz com que seja classificado acima dos seus companheiros,; ascende assim aos mais altos graus; contudo, continua um jovem de espírito estreito. Esse pesado gorducho vive nos contos de Cosquin (Contes lorrains), Grimm (Le jeune géant) (O jovem gigante), Asbjoernsen e essa estupidez aparece ainda no conto caucasiano Oreille d’ours (Orelha de urso). Geralmente, esse jovem que cresce em força e beleza executa trabalhos extraordinários; pode ter tido um nascimento comparável ao de Roberto, o Diabo; mas João, o Urso consegue triunfar continuando bom para os seus semelhantes; por fim desposa uma princesa (Carnoy, Contes français, 1885).

    IX. — Riquet à la Houppe
    Ritual nupcial, Riquet mostra o poder mágico do amor sobre o ente amado.

    1. — As variantes

    Saintyves analisa esses contos nos quais o amor transforma a cônjuge. A mutação animal pode ser completa e constante (Le crapaud ) (O sapo) ou episódica (Le loup gris, L’homme Crapaud) (O lobo cinzento, O homem-sapo). O marido pode deixar sua mulher que não soube guardar um segredo (Le roi de Pietraverde). O homem, transformado em bicho, torna ao seu estado assim que uma mulher se decidir a beijá-lo ou a desposá-lo. (A Bela e a Fera, O Pentameron). As vezes a esposa é o personagem encantado (Perceval, La chaise de crapauds) (Parsifal, A cadeira dos sapos).

    2. — Interpretações

    A bela — a aurora — desposou o Sol que obscureceu; mas ao tornar-se cintilante ela deve segui-lo do Oriente ao Ocidente até a porta do palácio da noite.

    Essa proibição de interrogar o ente amado significa para Saintyves o respeito de tabus nupciais. La veuve et ses filles torna-se ma das variantes de Barba-Azul: a história do casamento infeliz. Essas metamorfoses se referem às práticas de sociedades secretas pagãs ou religiosas: os membros, durante sua iniciação, revestiam peles de animais ou máscaras de animais.

    É assim que essas narrativas mágicas de metamorfoses deram origem aos Pururavas, a Psiquê, a Riquet à la Houppa ou aos contos de Mme Leprince de Beaumont (Kusa le prince spirituel) (Cusa, o príncipe espiritual).

    X. — O gato de botas
    1. — Variantes

    Se encontramos um conto semelhante em Pentameron (Gagluso), o conto de Zanzibar Sultant Darai assemelha-se muito ao nosso Gato de Botas. Mas quando a gazela benfeitora adoece, Darai esquece o que lhe deve; somente o povo lhe dedicará funerais públicos.

    2. — Interpretações

    A raposa da versão mongol é, sem dúvida, esse animal sagrado da Ásia mediterrânica, o gato é um animal feiticeiro (Europa); os gatos pretos acompanham as feiticeiras (Bodin). O gato calçado como os oficiantes persegue ritualmente a raposa e sem dúvida liga-se à liturgia egípcia: é o servidor do Sol.

    Esse papel de proteção relaciona-se ao ritual da instauração dos antigos padres-reis das sociedades primitivas. Saintyves observa que o casamento prepara a ascensão ao trono e o futuro esposo troca de nome bem como o futuro rei.

    Purificado pelas águas do rio, o herói veste novos trajes, é o cerimonial do coroamento; os súditos encontrados prestam obediência ao novo rei que toma posse do seu palácio: ritual de instauração real. Na maior parte dos contos o homem é ingrato; mas o animal pode demitir o rei que tem obrigações para com o seu povo.

    A água é o emblema da ressurreição e da vida eterna. Com as águas maternais adquire-se um corpo novo que é o ritual do batismo. A água, essa fonte de Juvência, permitirá que Hera volte à virgindade depois de cada imersão na fonte de Canatos em Nauphie; eis ai uma reencarnação da qual aproveita o nosso marquês de Carabas.


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    BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA


    LANGLOIS, Monuments littéraires de l’Inde (Lefêvre, 1827).

    Ernest FALIGAN, Histoire de la légend de Faust (Hachette, 1887).

    A. VAN GENNEP, La formation des légendes (Flamamarion, 1910).

    MENENDEZ PIDAL, L’épopée Gastillane (Colin, 1910).

    GENDARME DE BEVOTTE, La légende de Don Juan (Hachette, 1906 e 1911).

    J. LOTH, Romans de la Table Ronde (Paris, 1912).

    Gaston PARIS, Légendes du Moyen Age (Hachette, 1912).

    Joseph BÉDIER, Les légendea épiques (Champion, 1914).

    Emmanuel COSQUIN, Etudes folkloriques (Champion, 1922).

    BOISSONNADE, La chanson de Roland (Champion, 1923).

    PAUPHILET, Quête du Graal (Champion, 1923).

    SAINTYVES, Les contes de Perrault (Nourry, 1923).

    A. VAN GENNEP, Le folklore (Stock, 1924).

    GUENON, Le roi da Monde (Paris, 1927).

    LORENZI DE BRADI, Don Juan (Librairie de France, 1930).

    Genevieve BIANQUIS, Faust à travers quatre siècles (Droz, 1935).

    SAINTYVES, Manuel de folklore (Nourry, 1936).

    Henri DONTENVILLE, La mythologie française (Payot, 1949).

    LOEFFLER-DELACHAUX, La symbolisme des légendes (L’Aréhe, 1950).

    Jean MARX, La légende arthurienne (Presses Universitaires de France, 1952).

    Micheline SAUVAGE, Les cas Don Juan (Le Seuil, 1953).


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    NOTAS


    (1) et moi-même. Si Peau d’âne m’était conté. J’y prendais un plaisir extrême

    (2) A obra da carne não desejarás a não ser no matrimônio.

    (3) Deus! Como é belo o assassino de meu pai!

    (4) Assim morre Cartouche, e a Flor dos Guerreiros. No cadafalso deixa sua vida e seus louros.


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